
Meu pai visitou a França pela primeira vez em 1964, exatamente na época em que um golpe militar acontecia no Brasil. Foi enviado pelas centrais elétricas do Rio Grande do Sul – a CEEE – para estudar na escola de Gurcy-le-Châtel, a convite da Eletricité de France. Para um funcionário de nível médio, e pertencente à classe média de uma cidade provinciana como Porto Alegre, isso era um acontecimento espetacular, fora do esperado. Nos anos 60 uma viagem à Europa era considerada algo reservado aos ricos, aos milionários, e jamais ao acesso de um mero professor de eletrotécnica.
Esse fato, a viagem de 6 meses do meu pai à França, foi o grande acontecimento da minha infância. Enquanto ele esteve fora, nossa família – minha mãe e meus dois irmãos – esteve na casa da minha avó, que há pouco havia ficado viúva. Lembro de perguntar todos os dias “Vovó, é hoje que meu pai volta?” e via ela mostrando nos dedos o quanto faltava para sua chegada. Quando o vi retornando de viagem, chegando em um fusca-taxi no portão da velha casa no bairro Moinhos de Vento, lembro bem de tentar segurar sua mala – estilo Mazzaroppi – e escutar suas palavras: “ela é pesada demais para você”. Fiquei com a imagem do meu pai forte o bastante para carregar aquela mala, e também a sua família inteira. O resultado prático mais evidente deste retorno foi o nascimento do meu irmão caçula, que veio na esteira da recuperação do tempo perdido.
Minha mãe já era uma francofílica – era assim que eu a chamava – há muitos anos e tinha uma fantasia vibrante sobre a cidade de Paris. Era uma dona de casa que tinha livros em francês na estante de casa e um “Petit Robert” todo rabiscado, onde aprendia a língua de Victor Hugo por conta própria. Era capaz de descrever as ruas de Paris pela memória das fotos que meu pai trouxera na bagagem pesada. Já havia visitado centenas de vezes a Avenida dos Campos Elísios, a Torre Eiffel, o Père Lachaise, o túmulo de Kardec, a Ilha da Cidade e a Notre Dame de Paris apenas pelas palavras doces e requintadas do meu pai. Era seu sonho juvenil que se manteve vivo durante a vida inteira
Em meados dos anos 70 meu pai foi chamado para um novo curso, na mesma escola em Gurcy-le-Châtel. Desta vez economizou suas poucas economias para levar minha mãe assim que o curso tivesse findado, para passar com ela duas semanas na “cidade luz”. Hoje eu posso apenas imaginar o que minha mãe sentiu ao fazer esta viagem. O sonho de uma vida inteira, todas as suas fantasias, os lugares, os bares, as alamedas e ao lado do grande amor da sua vida. Lembro de dizer ao meu pai do valor desta viagem para uma pessoa simples como ele, ao que ele me respondeu: “Quando vocês tiverem a minha idade uma viagem como essa será tão simples quanto ir até o Rio de Janeiro”. Ele anteviu a “aldeia global” de MacLuhan, e o encurtamento das distâncias que aconteceria.
Minha mãe voltou exuberante de Paris. Adorava me contar os passeios, os lugares, as esquinas (Saint Michel – Saint Germain), os cafés, a ponte Alexandre III, o Sena. Continuou durante toda a sua vida apaixonada por aquela cidade e pela cultura francesa. Quando tive aulas de francês na escola ela corrigia meus cadernos e me ensinava a pronúncia das palavras. Certa vez, eu mostrei a ela as minhas aulas sobre colóquios simples e cotidianos em francês e ela resolveu “ajudar”, desenhando personagens de palitinhos que conversavam entre si. Quando, ao final do mês, a professora pediu os cadernos de todos os alunos para avaliar ela falou:
– Eu ia elogiar os cadernos de vocês todos, mas quando vi o caderno do Ricardo eu percebi que nunca havia visto algo mais bonito em toda minha vida.
Fiquei vermelho e constrangido. Por minutos fiquei brabo com a minha mãe por me deixar tão encabulado, mas não tive coragem de confessar que a ideia – e os desenhos – eram dela. Afinal, minha mãe merecia que seu amor pela França e seu idioma recebesse ao menos essa singela homenagem da minha professora.



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