Arquivo do mês: abril 2019

Notre Dame

Em apenas dois dias 1 bilhão de euros foram arrecadados para consertar e reerguer uma igreja na França. Peço que imaginem o quanto isso ajudaria a minorar o desespero dos desabrigados no Haiti ou Moçambique em seus recentes desastres. Entretanto, a morte de negros miseráveis não afeta o coração destes ungidos. O êxtase da exaltação artística é mais importante que a dor e a morte dos excluídos.

Notre Dame é um ícone da religião é do catolicismo francês, mas também do colonialismo cruel da Europa durante séculos. Talvez esse segundo ponto seja o que nos leva a preservá-la e reergue-la, mais do que os aspectos místicos e religiosos. Precisamos preservar os símbolos da dominação branca no mundo e a velocidade dos milionários brancos para recuperar esta obra nos mostra como somos ágeis quando nosso poder precisa ser reforçado.

E não se trata de contrapor uma coisa à outra. Arte é essencial, assim como a fé das pessoas precisa respeito. Todavia, morte, fome, frio e doenças são muito mais importantes e a escolha feita pelos bem nascidos serve para nos mostrar como funcionam as prioridades no capitalismo desumano e racista.

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Drama no vagão

Entro no metrô em São Paulo na estação da Sé (vim errado para o Siaparto) e observo que os bancos estão todos ocupados. Grudo minha mão no ferro que paira sobre minha cabeça e equilíbrio o corpo quando o vagão arranca de súbito. Encaro as pessoas sentadas cuidando de suas próprias vidas e deixo meu pensamento se esvaziar. Assim, desatento, me assusto ao sentir as leves batidas sobre meu ombro direito e quando volto a cabeça para trás vejo um rapaz corpulento e sorridente apontando para algo ao seu lado. Ainda sem entender, percebo-o insistindo e, só bem depois, me dei conta do desastre que acabara de acontecer.

Ninguém falou nada, não houve protestos, entre os presentes. Todos em silêncio foram cúmplices. O jovem continuava apontando para o canto do vagão e eu, sem saber o que fazer, me encaminhei para lá. Não havia como fugir.

Dois passos adiante vejo o assento azul reservado aos idosos. Sentei-me conformado ao lado de uma senhora. Ao jovem só pude dizer um constrangido “obrigado”, mas tive vontade de esganar sua boa educação e sua absurda gentileza. Tentei explicar, em pensamento, que estou muito longe de merecer esta deferência. Afinal, 6 meses não são 6 dias!!!!

Preferi resignar-me e chorar em silêncio. “Maldita barba branca”, disse eu em pensamento. Pensei que ficar parecido com o Alexandre Frota traria alguma vantagem. Ledo engano!!! A senhora no banco ao lado, ao me ver soluçar, apenas segurou minhas mãos e disse:

– Sei o que voce está passando. Já sofri isso também. Agradeça por ele não ter lhe chamado de “vovô”.

Segui em silêncio fúnebre vislumbrando à frente o lúgubre primeiro dia do resto da minha vida.

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Entrevista Juiz de Fora

1- Como a equipe interdisciplinar pode contribuir com assistência ao parto e nascimento?

A ideia de equipe interdisciplinar foi criada a partir da própria institucionalização do parto. No passado, estas atribuições de atenção à mulher e ao recém-nascido eram assumidas pela parteira e suas auxiliares, mas uma série de mudanças na estrutura básica da atenção ao parto forçaram a diversificação destas funções. Nosso modelo passou a ser centrado no médico, e não mais na parteira. O local do nascimento passou a ser o hospital, um local construído para manter e tratar pacientes extremamente incapacitados, até para deambular (os mais saudáveis iam para “ambulatórios”) e a própria forma como encaramos o nascimento humano modificou-se profundamente. – de um processo natural para um evento médico. Os médicos são formados por 6 a 9 anos dentro da universidade para tratar doenças e oferecer intervenções que possam tratá-las, mas fica claro para qualquer observador que as gestantes NÃO são doentes e sequer precisam de quaisquer intervenções na maioria das vezes. Assim, o modelo “iatrocêntrico” (centrado na figura do médico) coloca no centro da cena do parto um técnico em intervenções que, via de regra, tem pouca ou nenhuma conexão emocional e afetiva com as pacientes a quem atende. Mais ainda, seus conhecimentos são relacionados à intervenção – que deveria ser a exceção e não a regra – e suas habilidades para lidar com as questões emocionais e psicológicas do parto estão ausentes ou são muito frágeis. Nesse contexto, percebeu-se a necessidade de que aparecesse no cenário da humanização um novo-velho personagem que pudesse oferecer os aspectos mais femininos e acolhedores que a institucionalização e a medicalização do parto nos sonegaram. Com isso surgiram as doulas em meados dos anos 80 nos Estados Unidos, e inundaram o mundo com suas habilidades de contornar os desafios emocionais que o parto reserva. Para além disso, se inicia no mundo ocidental a migração do modelo de atenção ao parto centrado no médico para as enfermeiras e obstetrizes, mas ainda assim uma atenção transdisciplinar terá sempre que contar com a presença do médico para tratar os desvios da fisiologia e a sombra da patologia.

2- Há um novo movimento que aborda a descentralização do modelo centrado no médico para dar força ao modelo de equipe interdisciplinar. Como funciona? Quais benefícios traz para o momento do parto?

Existem vários modelos aparecendo no mundo baseados na mesma premissa: a desmedicalização do parto, mudando a lógica da intervenção para a lógica do cuidado. Podemos também dizer que o que se pretende é a troca de um paradigma assistencial, deste modelo tecnocrático a que estamos sujeitos para o modelo humanizado, que se baseia em três elementos constitutivos:

  1. O protagonismo garantido à mulher, sem o qual teremos apenas um humanismo de fachada, sem profundidade;
  2. Uma visão abrangente e interdisciplinar, retirando da assistência ao parto da condição de “procedimento médico” para evento humano, sobre o qual vão incidir múltiplos pensamentos e propostas, vindas da psicologia, psicanálise, sociologia, antropologia, medicina, enfermagem e qualquer outro aspecto do conhecimento humano que se depare com as questões de nascer;
  3. Uma vinculação “umbilical”, consistente e dinâmica com a Saúde Baseada em Evidências, demonstrando que as ideias que norteiam este movimento são garantidas pelas descobertas cientificamente determinadas.

As vantagens da adoção desse modelo são inúmeras. Para além da participação efetiva da paciente nas decisões sobre seu corpo – uma questão para além da ciência, e que tem a ver com direitos humanos reprodutivos e sexuais – existem inúmeros indicadores que nos mostram que as intervenções para além da necessidade aumentam a morbimortalidade materna e neonatal. Portanto, regular estas intervenções e colocá-las dentro de limites razoáveis é uma questão que tangencia tanto os direitos humanos quanto a saúde pública.

3- Como você chegou à conclusão que o modelo atual de parto e nascimento está defasado?

Minha trajetória pessoal acabou me colocando em contato com as mulheres que davam assistência às gestantes em trabalho de parto sem serem médicas: as arteiras profissionais e as doulas (fui um dos introdutores do modelo de doulas no Brasil no início deste século). Isso pôde me mostrar o quanto existia de falha na assistência tecnocrática que eu oferecia, e que seria de enorme vantagem trabalhar com parteiras profissionais (enfermeiras ou obstetrizes) juntamente com doulas, para que o trabalho pudesse contemplar não apenas os aspectos médicos e fisiopatológicos, mas também as questões emocionais que afetam o parto. As enfermeiras e as doulas conseguiram, portanto, me mostrar que o parto é muito mais do que um evento medicamente controlado, e que em verdade é bem mais rico e abrangente do que eu jamais supunha. Além disso, meu contato com modelos de assistência ao parto de países tão díspares quanto Uruguai, Argentina, Portugal, Estados Unidos, Bulgária, México, Holanda e recentemente a China me mostrou que o caminho para um nascimento mais seguro e mais satisfatório estava ligado a aplicação de modelos humanizados ligados à garantia de protagonismo às mulheres. O mundo inteiro, na esteira das transformações sociais do final do século XX e no início do atual, nos mostram que não é mais possível tratar as mulheres como contêineres fetais e “bombas relógio” prestes a explodir, e que sua dignidade, assim como sua fisiologia, deveriam ser respeitadas.

4- Quais atitudes e mudanças devem ser realizadas pela equipe interdisciplinar para que o parto seja mais humanizado?

São muitas ações, mas todas se baseiam em uma ATITUDE diante do parto. Respeito à fisiologia, reconhecimento das necessidades ancestrais de suporte físico, psíquico, emocional, social e espiritual das gestantes. Proporcionar um ambiente adequado para a sacralidade do nascimento. Oferecer à família a possibilidade de participar do evento, quando a mãe assim o desejar. Restringir as intervenções o mais possível, dentro de limites de segurança. Cuidar a ocorrência de “verbose”, que é a doença produzida pelas palavras mal colocadas durante o processo de parto. Criar uma “psicosfera” positiva e criativa no local onde tantas transformações estão ocorrendo. Cuidar do uso exagerado de medicações, todas elas potencialmente perigosas. Respeitar os profissionais da equipe, pois deles também depende o sucesso do atendimento. Respeitar a cultura, as vontades e os desejos de quem vai parir.

5- Em um momento de reflexão você cita que “humanizar o nascimento é garantir o lugar de protagonista à mulher”. Como este ato deve ser realizado?

Sempre, durante todo o caminhar, do diagnóstico da gestação até o nascimento a mulher deve ser respeitada em suas decisões. Esta é em verdade a parte mais difícil para os profissionais que atendem: olhar a parturiente como sujeito e não mais como objeto de nossas intervenções e determinações. Sabemos que existe o que se chama de “humanismo superficial” que trata de elementos locais, arquitetônicos e de palavreado como pintar as paredes do hospital com cores agradáveis, treinar os profissionais em determinados procedimentos – como parto de cócoras ou na água – e evitar a “verbose” de termos inadequados como “mãezinha” e a infantilização do discurso dirigido à futura mãe, cheia de diminutivos e vozes melodiosas. Entretanto, todas estas ações – que são inequivocamente positivas – serão apenas “sofisticação de tutela” caso o protagonismo do nascimento não seja garantido à mulher. Sem que ela possa ser a figura principal de nossas atenções e do nosso cuidado teremos tão somente arranhado a superfície do controle patriarcal sobre o parto. Sem que seus desejos e visões de mundo sejam reconhecidos e respeitados não faremos uma verdadeira revolução no parto e ele continuará a ser o propagador de um modelo social anacrônico. “Mude o nascimento para mudar a humanidade”, já dizia o mestre Michel Odent.

6- Em um dos seus artigos você aborda a banalização da cesariana. Quais riscos as mulheres enfrentam a escolher esta modalidade de parto?

A banalização da cesariana demonstrou ser um risco à saúde das mulheres em todo o mundo, mas em especial nos países em desenvolvimento. Em um recente artigo (de algumas semanas) ficou demonstrado que, as cesarianas realizadas fora dos países desenvolvidos (do primeiro mundo), tem cem vezes mais possibilidade de produzir danos profundos à mãe. Os estudos até hoje publicados demonstram sem sombra de dúvida a potencialidade danosa das intervenções, em especial a mais radical delas: a cesariana; as dúvidas se concentram apenas no quanto de risco é associado ao procedimento. Isso não significa a demonização desta cirurgia, mas um chamado à moderação, para que ela seja somente utilizada quando houver real necessidade. Por isso mesmo é importante que busquemos nos aproximar dos exemplos de países desenvolvidos onde a atenção ao parto é colocada nas mãos de especialistas em parto vaginal: as parteiras profissionais, enfermeiras ou obstetrizes (de entrada direta), e que os partos com complicações sejam reservados aos médicos com pleno treinamento nas intervenções.

7- Quais recomendações você daria para as mulheres que estão grávidas ou pretendem ter filhos algum dia?

Informem-se sobre os seus direitos. Nunca entrem num hospital sem saber exatamente o que é garantido aos pacientes e, em especial, às grávidas e seus companheiros(as). Procurem profissionais que entendam a importância da humanização do nascimento, que conheçam e trabalhem com o suporte essencial das doulas. Investiguem o trabalho dos profissionais para saber se eles respeitam a fisiologia do nascimento – ou não. Não se deixem iludir por consultórios cheios e clínicas luxuosas; a humanização do nascimento está quase sempre vinculada à simplicidade, à sinceridade e a conexão pessoal e afetiva entre profissional e paciente. Procurem hospitais que tenham a humanização como proposta. Pesquisem sobre segurança de partos em casa de parto e domiciliares, para ver se são habilitadas para estas escolhas. Tenham confiança em sua capacidade de gestar e parir, mas mantenham uma porta aberta para a necessidade de uma intervenção. Discutam com seu cuidador, obstetra ou parteira, sobre as alternativas possíveis. Solicitem que todas as ações realizadas sejam explicadas e orientadas antes de serem feitas. Tenham fé, mas tenham cuidado.

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