Arquivo do mês: julho 2018

Meritocracia

E se ninguém chorar por nós? E se nossa falta não se fizer notar? E quando o manto na morte apenas aquece um corpo já frio pelo sopro gelado do esquecimento? Se a morte vier hoje te buscar estás preparado para o fato de que a vida vai vicejar mesmo na tua ausência?

Sim… envelhecer é preparar-se para ser esquecido. Muitos poucos são aqueles que deixam seu nome na história; a maioria recebe destaques e honrarias sem sequer merecer. Canalhas, mercenários, genocidas, pedófilos e escroques de todo o tipo ornamentam placas nas ruas, nomes de ruas e escolas, enquanto sujeitos de imenso valor são apagados da nossa memória, na injusta meritocracia da cultura humana.

Malcolm Hedges, “The Smart Shot”, Ed Calamar, pag 135

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Posturas e Posturas

Há mais de três décadas passadas tive a iniciativa de oferecer partos na posição de cócoras para pacientes em período expulsivo após a instigante leitura do livro do mestre Moysés Paciornick. Ainda estava cursando a residência médica e esta atitude recebeu o seguinte comentário de um professor (que ainda está na ativa):

“Você precisa respeitar as abordagens sem dissociá-las das suas culturas. Parto de cócoras só funciona com índios assim como acupuntura só funciona no Japão”.

Esse era o nível. Todavia, eu era mesmo um teimoso e resolvi continuar oferecendo às pacientes a posição de cócoras como padrão de atendimento. Caso elas se negassem poderiam deitar, mas muito poucas pediam por isso. Minha postura, evidentemente, se prestou ao escárnio, ao deboche e ao bullying. “Como assim subverter a ordem? Com que autoridade você pretende mudar a forma como nós médicos atendemos partos há mais de um século?”

Herege e traidor. Exibicionista. “Joãozinho do passo certo“. Romântico. Burro. Louco, arrogante e perigoso – “e se uma criança cair no chão?“. Como não se incomodar com a presença de um sujeito chato como esse?

Depois da residência comecei a atender como plantonista de um hospital de periferia e mantive minha proposta de mudar a posição das mulheres durante o período expulsivo. Intuía que “mudar a postura poderia mudar a…. postura”. Se as mulheres se verticalizassem para parir isso poderia ter um efeito empoderador, equalizando a disputa por espaço e deixando mais justa a luta de poderes na arena das salas de parto. De objeto “inanimado” e contêiner fetal poderiam passar a agentes ativas no processo de nascimento.

Entretanto, nada seria fácil. Ficava claro para mim que a posição supina, estilo “frango assado“, não era utilizada apenas para fazer a intervenção médica mais fácil e acessível. A operacionalidade explícita poderia nos obstruir a visão do simbolismo implícito. Havia uma questão de gênero envolvida e, portanto, de poder e submissão. Algo que se escondia por detrás do meramente manifesto na posição de parir. O parto deitado era uma mensagem clara do patriarcado sobre corpos que deveriam se manter dóceis e submissos.

A pesquisa “Nascer no Brasil” de 2012 mostra que 91% dos partos normais no país ainda ocorrem sob o signo do anacronismo das posições supinas. Isso nos mostra que, mais do que um “hábito”, o parto assim “conduzido” simboliza uma relação de poderes que determina que a mulher se mantenha imóvel, alienada e não participativa no processo; sua condição será de objeto, não de sujeito.

Três décadas se passaram desde a minha postura desaforada. Meu atrevimento já foi punido, com as regras corruptas de uma corporação em crise. Entretanto, a posição de parir ainda é tabu. Ainda temos 9 entre cada 10 mulheres parindo numa posição ruim, perigosa, danosa, incômoda, desagradável, humilhante e alienante. Pouco se fez para modificar essa realidade.

Todavia, sou um otimista incurável e ainda espero ver o escândalo se institucionalizando nas atitudes combativas de enfrentamento. Sonho com o dia em que, ao abrir o jornal, possa ler a manchete em letras chamativas:

“Num movimento coordenado, mulheres do Brasil inteiro se ergueram e impediram seus médicos de atendê-las na posição deitada. Conselhos de Medicina realizam reuniões de emergência para debelar a crise. Guarda Nacional de prontidão”.

Deixe-me sonhar; deixe-me acreditar, eu sou o que tenho a vencer…

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Free Birth

“Free Birth” se refere às mulheres no mundo ocidental que voluntariamente abandonam o sistema de saúde e decidem parir livremente, por sua conta e risco. Minha ideia é de que tal abandono dos recursos médicos (com o qual não concordo) é consequência da negligência do modelo biomédico contemporâneo para com as necessidades básicas (fisicas, psicológicas, sociais, emocionais e transcendentais) das mulheres, algo que os médicos sequer conseguem perceber em função de estarem à deriva no oceano paradigmático da tecnocracia.

Ou, nas palavras da antropóloga Wenda Trevathan, este afastamento está baseado “na falha do sistema médico de muitas nações industrializadas em reconhecer e suprir as reais necessidades das mulheres que atravessam o rito de passagem chamado parto”.

“Parto Livre” é o sintoma; a distância do sistema médico do que desejam as mulheres para si e para seus filhos é a doença.

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Médicos e Política

“As posturas dos profissionais da medicina são mais do que conservadoras e vocês não deviam se surpreender com este fato. Conheço muito bem pois convivi com essa turma durante 40 anos. Posições de vanguarda, à esquerda, solidárias, inclusivas, garantistas, distributivas ou meramente proponentes de reparação e justiça social são uma raridade absoluta. Quando expressas publicamente são sujeitas ao escárnio e ao deboche. “Vai pra Cuba”, “Vagabundos e ladrões”, “Ralei muito para chegar onde cheguei” são lugares comuns dos debates nas salas de “conforto médico”.

Por outro lado os posicionamentos elitistas, dinheiristas, punitivistas, meritocráticos são mais do que a tônica nas conversas de centro cirúrgico ou ambulatórios; eles são exaltados como a única posição possível e admissível pelos profissionais. Mais do que a maioria, as posições que tendem ao fascismo e à exclusão são uma espécie de passaporte para adentrar nos círculos autoritativos da comunidade médica.

A medicina precisa uma revolução inclusiva. Temos uma profissão médica que, a exemplo da magistratura, é dominada por setores da elite branca mais atrasada e retrógrada, a mesma que odeia uma mulher presidente e um nordestino torneiro mecânico como chefe da nação.”

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Barbarismos

Defensores da barbárie dentro dos mais humanos e gentis projetos. Muito amor e muita sombra.

A ideia de justificar atitudes bárbaras e violentas como “reação do oprimido”, fazendo um mau uso da frase de Malcolm X, é uma proposta de acabar com qualquer projeto civilizatório em nome da institucionalização da vingança. Assim, uma camponesa aterrorizar uma mãe inglesa e seu filho e ameaçá-los de morte por um motivo fútil (não aceitar pagar o preço abusivo de um chá) passa a ser uma “bela atitude” que deveria ser seguida por todos os “povos colonizados”.

Esse tipo de lógica, que coloca o oprimido como juiz de seus sofrimentos e executor de sua sentença reparadora, misturando as dívidas sociais históricas com os embates pessoais, é carregado do mais puro oportunismo. Um elogio aos linchamentos e justiciamentos.

As pessoas que aplaudem a barbárie de ameaçar de morte uma mulher acompanhada do filho menor de idade num país inóspito são as mesmas que reclamam e vociferam quando os negros, pobres e oprimidos, a assaltam tentando por conta própria fazer uma reparação de suas dificuldades históricas e conjunturais.

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Enfermeiras

“Enfermagem é o pelotão de frente da atenção à saúde. O trabalho é árduo, complexo, multitarefa, humano, conflituoso e desafiador. O que existe de complicado na atenção à saúde não é essa fantasia de Dr. House, a aventura intelectual de achar diagnósticos brilhantes ou fazer cirurgias incríveis que duram horas e separam xifópagos. Tais eventos são raridades e, apesar de serem espetaculares, não produzem nenhum impacto sobre a saúde de uma população. O que é verdadeiramente difícil na arte de atender é olhar os pacientes nos olhos, encarar suas dificuldades e paradoxos e encontrar a SI MESMO nas falas de quem nos procura.

Eu lembro de um colega envolvido com pesquisa de infertilidade e que dizia, com ar de arrogância e superioridade, que “nem todos podem ser cientistas“, mas no meu íntimo eu achava que os “médicos cientistas” eram os mais frágeis, aqueles que se escondiam nos laboratórios para não ter que encarar as feras, os demônios de si mesmos, transformados em falas e dores que brotavam do discurso dos pacientes.

Para a enfermagem não há escolha, pois faz no cotidiano essa batalha. Não existe descanso. O acolhimento e o cuidado – elementos centrais do paradigma da enfermagem – não permitem o afastamento da pessoa real. Não há “carinho in vitro”, e nem consolo “virtual”. O olhar que afaga e a palavra de ânimo de uma enfermeira são essenciais para a resposta de cura que pode (ou não) surgir a seguir.

Entretanto, a sobrecarga e o peso da responsabilidade desse contato são fatores que podem desestabilizar. Quando não metabolizados adequadamente estes sentimentos podem resultar em raiva e ressentimento, que são respostas sempre possíveis no horizonte. Por esta razão, creio que toda enfermeira devia ter suporte psicológico para dar conta dos choques inevitáveis que sua ação profissional propicia.”

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Lógica sexista

No mundo contemporâneo é necessário ter muito cuidado quando usamos uma determinada lógica para apoiar nossas convicções e sustentar nossos argumentos. Quando usada em uma situação específica – oportunista, eu diria – ela pode ser de utilidade considerável e pode nos valer alguns pontos em qualquer debate. O problema é que se esta lógica contiver elementos de preconceito ela será usada contra nós no futuro, de forma inexorável. Um exemplo ocorreu ontem quando uma pessoa da internet publicou um trabalho que insinuava que países governados por mulheres (ou com mais mulheres na política) são menos corruptos. A insinuação seria de que “aumentar o número de mulheres na política poderia combater a corrupção”, deixando implícita uma tese marcadamente sexista: mulheres são menos corruptas que homens.

Vi mulheres comemorando esse “achado”, sem se darem conta de que o uso de uma lógica sexista tem seus reveses imediatos. Acreditar que um gênero tem mais qualidades morais e intelectuais que o outro é o mais puro e cristalino sexismo. Se aceitamos para um lado teremos que admiti-lo para outro. As lógicas sexistas acabam, depois, cobrando um preço muito alto e que não é nada legal de pagar.

Há poucos meses foi revelado o maior escândalo de corrupção em um país extremamente rico, como a Coreia do Sul. Isso causou a queda de todo o governo e a prisão do chefe de estado. Neste caso, uma mulher, a presidente Park. Ser mulher não livra ninguém das tentações do poder, e a corrupção está na alma humana, não nos testículos.

O que leva uma sociedade ser menos corrupta não é a presença de mulheres. Também não será a presença de negros, travestis, transexuais ou qualquer religião. Em verdade, a presença desses atores sociais são o RESULTADO de uma maior consciência social. A relação entre mulheres na política e honestidade com a coisa pública não é vertical – de causa e efeito – mas horizontal.

Podemos entender essa relação como a nossa genealogia. Nós NÃO somos descendentes dos macacos, como alguns ingenuamente pensam, mas de um ancestral comum entre a nossa linha evolutiva e a dos grandes macacos. A esse elemento damos o nome de “Proconsul” e surgiu há 12-14 milhões de anos. Nosso parentesco com os chimpanzés não é de pai filho para pai, mas de primos distantes por eras.

Com a diversidade na política o mesmo. A diversidade de gênero e a condução honesta dos assuntos públicos não são causa e efeito, mas são filhos dos mesmos pais: a equidade/ justiça social e a educação. Portanto, AMBOS (pouca corrupção e diversidade) são “primos”, surgidos do mesmo “ancestral comum”: uma sociedade com mais justiça, equilíbrio e educação.

Quando usamos argumentos que tentam colocar um gênero como moralmente ou intelectualmente superior ao outro corremos o risco de autorizar e referendar TODOS os argumentos sexistas e essencialistas que por séculos os homens usaram para diminuir as mulheres. Não há como se calar diante desse argumento, pois eles contém o gérmen da separação e do preconceito, mesmo quando aparentemente nos beneficiam.

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Razão e emoção

Nenhuma filiação a um grupo de ideias respeita ordenação racional. Você apenas assume suas crenças mais primitivas e as veste com uma roupagem racional. Somos um núcleo de medos cobertos por crenças e envoltos em uma tênue película de razão, uma fachada intelectual, que nos confere a suprema ilusão de sermos comandantes de nossa consciência.

Almirante Henry Mulder, “Vignettes de la Voyage au Fin du Monde”, Ed. Printemps, pág 135

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Galaxie

O ano era 1984 e a aula recém havia terminado. Enquanto meus colegas se dirigiam para a porta da velha sala de aulas da Santa Casa eu ainda conversava com meu professor sobre temas da aula de ginecologia. Recém concursado para a vaga de monitor da cadeira de GO da faculdade de medicina eu era uma “esponja”, aflito por absorver todas as informações possíveis sobre o universo da obstetrícia. Resolvi fazer ainda aquela última pergunta, enquanto o professor guardava papéis dentro de uma pasta de couro. “Vamos indo para o estacionamento enquanto lhe explico“. Segui meu professor enquanto ele discorria sobre um assunto que se perdeu na poeira das décadas, e quando chegamos no estacionamento ele perguntou para onde eu ia. “Para o Hospital de Clínicas“, respondi. “Bem, disse ele, é para lá que eu vou. Quer uma carona?

Respondi afirmativamente, claro. Afinal, isso me garantiria meia hora a mais de descanso antes de começar a aula da tarde e um tempo a mais para almoçar.

Cheguei ao carro e senti uma sensação estranha. Um susto. Na verdade meu professor não tinha um carro, mas um Galaxie Landau azul, com estofamento em “jacquard” inglês e direção hidráulica. Fiquei estupefato de ver na minha frente um carro de cinema, que eu só conhecia da TV, ou de ver ao longe nas ruas.

Tive o cuidado dos pobres ao entrar no veículo, sabendo que se eu derrubasse alguma coisa jamais teria dinheiro para pagar. Ele me perguntou “Está quente. Quer que ligue o ar?

“Ar”? Como assim? Então ele ligou o ar condicionado do carro e o frescor súbito foi a sensação tecnológica mais impressionante da minha vida, só rivalizando com a primeira vez que falei num celular. Ar condicionado em carros era coisa de ricos, de gente “de bem” ou “grã-finos“. Tudo isso em um Galaxie Landau era a imagem do glamour. O presidente Sarney tinha um, e o meu professor também.

Nossa viagem durou os 10 minutos que separam a Santa Casa do Hospital de Clínicas, mas a sensação me acompanha até hoje, mesmo depois de 34 anos. Nos despedimos e nunca mais conversamos de novo. Este professor foi um dos pioneiros em clínicas de diagnóstico por imagem e ficou rico com suas ecografias. Para meus vinte e poucos anos de vida ele parecia uma luz, um exemplo de excelência.

Escrevi essa lembrança porque o impacto que a vida de luxo de um médico que investiu numa área charmosa e rica da medicina poderia ter me encantado a ponto de querer seguir seus passos. Os estudantes não aprendem muito com as aulas, mas com os exemplos de seus mestres. Um médico, professor na universidade, ligado às tecnologias de ponta e com sinais evidentes de sucesso é um exemplo difícil de não seguir.

Todavia, meu caminho foi no sentido oposto. Tecnologia nunca me seduziu e sempre acreditei que o verdadeiro desafio estava nos mistérios que se escondiam no vão que separa as palavras. Agora que aos poucos entendemos melhor os limites das ultrassonografias e reconhecemos seu impacto pífio nos resultados obstétricos, penso na força que estes exemplos produzem nos estudantes. Para os jovens que olham para o futuro com medo e excitação, o sucesso emoldurado por um estofado em “jacquard” inglês produz uma inequívoca fantasia de futuro radiante.

Menos de um ano depois comprei meu primeiro automóvel, que guardava de semelhança com o carro do meu professor apenas o número de rodas girando. Era um Fusca 1972.

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O parto de cada uma

A foto acima causou furor na internet ao mostrar uma mulher que recém havia parido tomando um refrigerante enquanto mexia no seu celular. Aos seus pés o bebê, com poucos  minutos de vida. A fúria de algumas pessoas causa espanto. Talvez tenham dificuldade para encontrar coisas realmente relevantes para se “enfurecer”. Tomar uma Coca Cola e a avisar os amigos pelo celular do nascimento de seu bebê está entre as milhares de atitudes que já testemunhei imediatamente depois do parto.

Entretanto, o comportamento das pessoas ao rejeitarem a imagem é revelador do conceito subjacente que os anima: a puérpera como um ser divino, angelical e puro, onde o mundano não tem vez e a química do refrigerante não passa de um veneno mortal a ameaçar seu leite sagrado.

Tolice. Basta ver mulheres recém paridas para perceber como suas perspectivas de mundo permanecem únicas. Se há aquelas que obedecem o ordenamento delas exigido (amor incondicional, lágrimas, promessas de amor, etc) existem outras cuja tranquilidade e senso prático tomam corpo e determinam seu comportamento. Aceitar que as mulheres possam ser diferentes do que esperamos delas é sinal de maturidade cultural na busca por equidade.

Por outro lado, essa foto é um artefato altamente pedagógico. Faz lembrar aquelas imagens de parto orgásmico, cheias de alegria esfuziante, onde as pessoas atônitas se perguntavam: “Como assim? Prazer? Não… isto está errado!!!”

Eu digo agora, jocosamente: “Como assim beber refrigerante e falar com os amigos? Não…. isto está errado!!!”

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