Há muitos anos eu imaginava que a verdadeira revolução na assistência ao parto seria uma modificação da estrutura da sociedade, em seus aspectos mais profundos. As condutas médicas durante o parto nada mais eram do que a ponta final de um processo que emergia das profundezas da estrutura social. A violência obstétrica era, no meu ver, como um osso de dinossauro na superfície do deserto, que tanto nos permitia perceber o gigantismo do animal quanto a tarefa hercúlea de desenterrá-lo.
Muito cedo me dei conta que a tarefa de reescrever a história do nascimento jamais se daria através da simples ampliação da consciência dos profissionais, seja pela alteração nas “práticas médicas” ou pela transformação das estruturas hospitalares. Isso seria reconhecer os poderes instituídos e tão somente suavizar sua opressão. Na época eu chamava este modelo de “sofisticação de tutela”.
Eu sabia que para mudar a forma de nascer precisávamos mudar a sociedade. Essa sociedade, assim consciente dos sentidos profundos do nascer, não mais permitiria que o parto se tornasse um foco disseminador de violência, exclusão e opressão, envolto na dura carapaça da misoginia. Sabia também que as vias de transformação se dariam através da medicina baseada em evidências e da interdisciplinaridade para enfim chegarmos ao pleno protagonismo do parto garantido às mulheres.
Para isso acontecer deveríamos contemplar 4 pontos essenciais:
A sociedade
Os profissionais
A mídia
Os operadores do direito
Nossa luta com junto à sociedade se dá há quase 30 anos, não só pela nossa ONG mais importante – a Rehuna Humanização Do Parto – como por tantos outros organismos surgidos espontaneamente. Citarei a Parto do Princípio e o GAMA como exemplos dessas instituições. Assim a sociedade – em especial as mulheres – sempre foram o foco primordial de nosso ideário. Se uma revolução no nascimento pode acontecer só será se forem as mulheres a conduzi-la.
Os profissionais humanizados se reúnem há mais de 20 anos para debater, questionar, construir um novo paradigma e disseminar sua visão renovadora através de artigos científicos e livros “à mancheia”, mostrando que temos, sim, muito a dizer e oferecer para esta luta. Dos encontros da Fadynha Doula, até os grandes congressos internacionais e o Siaparto, construimos uma rede segura e forte de disseminação de conhecimento embasado em evidências, reunindo profissionais de vários campos nesse debate.
A mídia ao poucos “vira o fio”. Se antes nos tratava como “malucos” ou “românticos” aos poucos reconhece que os partos humanizados são a ponta de lança da atenção qualificada. Os meios de comunicação hoje reconhecem que o combate ao intervencionismo é uma batalha que rompeu todas as fronteiras, que o excesso de medicalização prejudica a saúde da população e que o caminho é pela suavidade, pela “slow medicine” e pelo respeito aos direitos reprodutivos e sexuais. O sucesso de “O Renascimento do Parto”, a espera “angustiante” pela sua continuação e a produção de tantos outros documentários mostram que a visão da mídia sobre nossas palavras está mudando de uma forma bastante positiva.
O último elemento, o qual me motivou a escrever esta resenha, é a participação dos operadores do direito. Hoje a ReHuNa fez-se ouvir na Organização dos Estados Americanos, em Buenos Aires – através da brilhante advogada Ana Lucia Keunecke – que foi levar aos delegados desta instituição a voz dos ativistas do parto do Brasil junto com nossas denúncias de violência obstétrica. Tivemos a oportunidade de mostrar às Américas como se dá a perseguição sórdida protagonizada por corporações contra médicos, enfermeiras obstetras e doulas que lutam por partos mais dignos e menos violentos. Pudemos sensibilizar os delegados de muitos países irmãos para a nossa luta contra a violência institucional aplicada às gestantes, numa violação inaceitável de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Importante também salientar a importância da Artemis como participante das lutas pela dignidade garantida às gestantes, mostrando que nossa paixão invadiu o universo do direito e lançou sementes que aos poucos mostram seus frutos.
Assim, minhas previsões todas estão se cumprindo. Entretanto, erra quem pensar que esta tarefa está próxima de seu término. “Longo é o caminho de quem deseja trazer luz e discernimento“. Humanizar o Nascimento é garantir o protagonismo à mulher e, enquanto nossa missão não for cumprida, haverá sempre razão para continuarmos firmes nesta trajetória.