Arquivo do mês: setembro 2019

1200

Há exatos 20 anos, 1999, nos umbrais do século XXI, eu comecei a escrever. Velho mesmo, quase quarentão. De pronto deixo claro que não acredito em nenhum sujeito que começou a escrever depois de ser oficialmente ancião, mas eu não escrevia porque queria, apenas porque precisava. Não se tratava de prazer, mas de compulsão. Antes disso eu apenas lia, e com exceção de raros esquetes humorísticos (entre eles um chamado “O círculo do gelo”), eu não me interessava em escrever. Foi a dor, a angústia e a noção cada dia mais intensa de que me resta pouco tempo de vida que me fizeram colocar no papel tudo o que me passa pela cabeça. Literalmente tudo: pensamentos, histórias, chamamentos, citações descobertas e histórias. Histórias tristes ou bizarras. Piadas em profusão, inobstante serem engraçadas ou não – na minha família a regra é “o importante é a quantidade e não a qualidade”. Tenho medo de morrer e guardar comigo uma história que apenas eu sei.

Sei que me resta pouco tempo e gostaria de deixar em algum lugar todas as histórias que eu porventura tomei conhecimento. Fico triste ao saber que dezenas delas não podem ser contadas, pois as pessoas que dela participam poderiam se ofender. Por vezes eu penso em um parto, uma expressão de alguém, uma piada, uma historieta ou o projeto de um grande romance (como o do homem que lia na prisão, ou a história de Eneida, a mulher que fumava e fazia do sexo sua arma mais poderosa) e me apresso a escrever antes que os detalhes evaporem de minha memória.

Hoje escrevi o texto de número 1200 no meu blog, que comecei a organizar apenas em 2012. O que escrevi antes disso está soterrado nas listas de discussão das “Amigas do parto”, ou no “Parto Humanizado”. Outras poucas recuperei e usei como material para os meus dois primeiros livros, o “Memórias do Homem de Vidro” e “Entre as Orelhas”.

Sei da desimportância do que eu escrevo, mas realmente a qualidade da escrita nunca foi o meu objetivo máximo. Eu comparo esta compulsão com a árvore genealógica que meu pai me deu de presente há alguns anos. Era, em verdade, um pedido singelo para ser lembrado, poder ver o seu nome num quadradinho que, ao mesmo tempo que tinha suas raízes num passado distante, oferecia sementes para os que vinham abaixo. Um desejo ilusório, quase pueril, de imortalidade.

Também estou ciente do amargo que aguarda minha senectude, e sei o quanto será difícil para um velho ter que suportar o que virá. Outrossim, reitero que tudo faria de novo e que esta vida é curta demais para ser encarada com temor.

Evoé!!!

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Conhecimento

Existe um projeto claro de restringir a educação e o pensamento crítico de vastas porções da população para que o modelo opressivo capitalista se mantenha intocado. A mesma razão possuíam os padres na idade média ao realizar as missas em latim, pois dessa forma o conhecimento dos “segredos” se mantinha apenas entre eles, e a ninguém cabia questionar os desígnios da Igreja. Restringir o conhecimento, obstaculizar a educação, elitizar o conhecimento sempre foi um projeto das elites, para que a essência libertadora do saber se mantivesse constrito nos segmentos mais abastados e detentores do poder político

A proibição do ensino formal às meninas cumpre o mesmo roteiro: mantê-las ignorantes e dependentes para exercer domínio sobre elas. Não é à toas que os países mais fixados no modelo patriarcal tentam de todas as formas manter as mulheres acorrentadas à própria ignorância. Negros aprendendo apenas o necessário para exercer ofícios simples e subalternos também cumprem esse desígnio, e por isso as universidades sempre foram ambientes onde eles só entravam para fazer a limpeza.

O objetivo é sempre o mesmo: manter as castas sociais intocadas. O capitalismo e o patriarcado mantendo a ordem social. Oprimidos agradecendo as migalhas enquanto os opressores disseminam o medo de se criar um país mais justo e igual. Mas, como toda a historia nos ensina, não há opressão que dure para sempre, e o trem da história não é “carroça abandonada em uma estação inglória“. Pelo contrário, “ela é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente, todo aquele que a negue“, como já havia nos ensinado Pablo Milanés.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Pensamentos

Liberdade

A fantástica história de Jack e Emmet, e o homem que lia livros para se tornar livre…

Jack sabia do amor que Emmet nutria pelos livros. Não era sequer necessário que ele houvesse descrito a pequena biblioteca que tinha em sua casa antes de chegar aqui. Sua forma por vezes rebuscada de descrever os cenários ou os episódios de sua vida mostravam o apreço que nutria pelas palavras. Ah, os conceitos, as nuances, as filigranas. Nenhum objeto existia na descrição de Emmet que não merecesse uma metáfora. Esse seu jeito sofisticado de descrever a vida só podia ter surgido pelo exercício continuado de apreender seus significados folheando incansavelmente as páginas com a avidez erótica da curiosidade.

Ele, entretanto, não possuía livros em seu poder. Os poucos que eu tinha Zora os entregava mensalmente durante as visitas, os quais ajeitava com carinho debaixo do meu catre simples, mas sempre limpo. Para meu olhar clínico era fácil entender esta ausência nele. Emmet ajeitava os óculos com cuidado diante de qualquer tarefa, mas este esmero mais se mantinha por um cacoete do que pela justeza dos focos. Pouca diferença fariam os ajustes das lentes por sobre o nariz vermelho e anguloso. Emmet praticamente nada enxergava, mas tentava disfarçar ao máximo sua dificuldade na frente dos outros prisioneiros.

Por ser o mais velho da cela lhe coube a única cama que recebia uma tímida nesga de sol nas manhãs de inverno. Seu rosto magro recebia a carícia do sol apenas por breves momentos, exatamente quando recebíamos o sinal de deixar as celas para o café matinal. Emmet esperava que todos saíssem do cubículo para só então tatear suas roupas e calçar as botinas velhas e escuras. Perguntava por mim, e quando lhe respondia o cumprimento sorria dizendo “ora, que tonto, nem vi que ainda estava aí”. Meus anos na medicina me permitiam saber que Emmet estava há muitos anos lutando contra o diabetes. Suas injeções diárias de insulina eram feitas à noite, escondido em sua cama, quando a cortina de panos encardidos lhe oferecia uma benfazeja, porém curta, privacidade. Mas eu sabia. Apesar disso, nunca comentei com outros detentos e sequer lhe disse que tinha conhecimento de sua doença.

Uma certa noite, antes do “black out”, Emmet me perguntou o que estava lendo. Por certo que ouviu o folhear lânguido das páginas ao seu lado. Talvez esse tenha sido um daqueles momentos transformadores na vida de um sujeito, mas que em geral passam despercebidos quando ocorrem. A pergunta de Emmet tinha um som estranho, que carregava mais do que uma simples curiosidade; era também mais do que uma forma de preencher o vazio cheio de silêncios entre nós, ou para se livrar do desconforto que tais momentos representam. Sua dúvida tinha a triste melodia de uma súplica. Coloquei o dedo entre as páginas do livro como um marcador e o fechei. Olhei para Emmet que permanecia com o olhar fixo na parede suja à frente.

– A República…

“Plato!!!” disse ele sorrindo, antes que eu pudesse completar a informação. Havia uma emoção triste e genuína em sua face emagrecida. “Em que parte está?”, perguntou ele.

– Quer que eu leia? perguntei, sem me dar conta de que esse era o desejo inconfesso de Emmet fantasiado de frugal curiosidade. Abri o livro novamente e li a partir de onde meu dedo, ainda preso entre suas páginas, apontava.

“Sócrates? Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância…”

Depois de poucos minutos levantei os olhos da leitura daquele parágrafo apenas para comentar alguma banalidade sobre o gênio de Platão, ou sobre sua influência no pensamento ocidental, mesmo após milênios passados de sua morte. Entretanto, minha voz foi interrompida antes da primeira palavra. Com as mãos espalmadas sobre os joelhos pontiagudos Emmet jazia imóvel. Seus olhos marejados se fecharam num piscar reflexo, de onde brotaram duas lágrimas que percorreram com morosidade os sulcos de seu rosto. Sem abrir os olhos, ele segurou meu braço com delicadeza e de seus lábios uma voz quase apagada sussurrou:

– Obrigado, meu amigo Jack.

James G. Higgins, “Freedom”, Ed. Lasseter, pág 135

James Garret Higgins é um jornalista e escritor americano nascido em Tulare na Califórnia em 1939. Fez sua formação universitária na California State University em Sacramento, tendo cursado Jornalismo e posteriormente Ciências Sociais. Depois de trabalhar na Nigéria por 3 anos como correspondente da Guerra de Biafra, de 1967 a 1970, voltou para os Estados Unidos e escreveu vários romances nos quais descrevia as condições que testemunhou na guerra brutal e fratricida que ocorria em uma das regiões mais miseráveis do planeta. O bloqueio imposto pelo governo nigeriano aos grupos rebeldes que se isolaram na região de Biafra levou a uma crise humanitária especialmente causada pela fome, mas piorada por doenças endêmicas. Estima-se que durante a guerra civil, mais de 100 mil mortes entre as forças militares foram devidas diretamente à inanição. Entre 500.000 e 2 milhões de civis da região de Biafra morreram devido a falta de comida. Esses fatos descritos por James Higgins para os jornais americanos produziram marcas profundas em sua alma. Em seus livros posteriores, como “Freedom”, ela fala da busca de sentido para vidas completamente destruídas por tragédias pessoais e pela privação de liberdade. James Higgins mora em Sacramento com sua esposa Margareth e tem duas filhas, Abayomi e Fayola.

Deixe um comentário

Arquivado em Citações, Contos

Greta

As atitudes de Greta incomodam o “establishment” por servirem de contraponto às posições hegemônicas. Greta ataca o cerne do capitalismo destruidor e autocida. Esta é a origem do “backlash” às suas palavras e atos. O que incomoda em seu discurso não é o fato de ser mulher, autista ou jovem, mas por representar uma vertente política que se contrapõe ao modelo de desmonte da natureza que agora está em curso. As ações de Greta são muito mais importantes do que seu gênero, idade ou condição. Ela é atacada por trazer evidências incontestes da nossa estupidez e egoísmo e jogá-las na cara dos poderosos. Seu rosto infantil e sua figura miúda funcionam como um potente veículo para transmitir a ideia de que, como ela, o meio ambiente é frágil e delicado e, por isso mesmo, precisa ser protegido.

Não é difícil entender a revolta de setores conservadores, nem sua natural virulência.

Por muitos anos testemunhei o peso que representa pensar fora das caixas estreitas da corporação. Atender em hospitais com 90% de cesarianas e ainda assim lutar pela autonomia das mulheres e seu direito de escolha pelo parto normal sempre foi visto como uma grave ofensa. As atitudes dos “diferentes” os “do contra” são tomadas como agressões a um modo de pensar que é assumido pela maioria, mesmo quando ilegal ou agressivo.

O parto humanizado no ambiente da cesariana oportunista, o respeito aos direitos humanos no universo policial, a lisura na política e a postura ecológica e sustentável no trato do meio ambiente ofendem aqueles que lucram com as posturas violentas, agressivas e desrespeitosas, em especial para os que estão em posição de poder.

Como o debate racional se torna perigoso – pois os argumentos e as evidências sustentam as posturas em oposição aos modelos atuais – a forma mais eficaz de combater as ideias incômodas – verdades inconvenientes – é atacar os mensageiros e destruir sua reputação. Com Greta não seria diferente.

Entretanto, seria ingenuidade imaginar que alguém tocasse na ferida exposta do capitalismo predatório e suicida sem receber os ataques inevitáveis do paradigma moribundo. Greta terá o mesmo tratamento cruel que muitos recebem quando decidem expor suas paixões e suas propostas.

Sua resiliência será posta à prova.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Violência

Streptococcus

Sobre a pesquisa de streptococcus.

A primeira vez que ouvi falar disso foi de uma enfermeira num hospital que eu estava visitando em Cleveland, no início deste século. Depois das minhas palavras sobre o projeto de humanoização do nascimento no Brasil ela me perguntou:

– Como é a rotina de vocês com pesquisa de strepto? Usam Penicilina em todos os casos positivos?

Eu fiquei confuso com a pergunta e respondi que não havia pesquisa nos hospitais nos quais eu trabalhava e sequer protocolos de cultura para streptococcus no pré-natal referendados pelo Ministério da Saúde.

Ela sorriu e disse: “Apenas aguardem que em breve chegará lá“.

Ela estava certa, da mesma forma como estava correta uma amiga enfermeira americana que me perguntou há uns 25 anos “se já haviam chegado Pokemóns no Brasil“. Com a mesma surpresa eu respondi que não sabia se isso era produto pra comer ou pra passar no cabelo.

Ela deu risada, mas me avisou: “A onda vai chegar, e tanto como aqui, será devastadora. Aguarde…

Pokemóns e novidades médicas são ondas, movimentos de mercado, novidades. Acontecem em ciclos: nascem, alcançam o apogeu e morrem. A partir de um determinado tempo é preciso algo novo, um novo brinquedo, uma nova ferramenta; algo que nos dê esperança. Pokemóns foram deixando o espaço depois de gerar milhões em lucros. Streptococcus espalharam pânico e gastos imensos para o sistema de saúde sem que a antibioticoterapia apresentasse qualquer solução. Produziu-se o medo para vender uma esperança.

Há alguns meses uma amiga americana, também do Norte, me escreve perguntando se já temos Cannabis medicinal para vender nas farmácias. Desta vez eu apenas disse que ainda não…

“Aguarde, disse ela. Será a nova panaceia.”

Se você acha os gurus e salvadores da pátria soluções infantis e paliativos isórios para questões complexas, por que continua acreditando em drogas para solucionar os dramas de sua vida?

Para as novas descobertas sobre a inutilidade do rastreio de streptococcus vaginais e perineais, clique aqui.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Medicina

Cabeça de baixo

“Homem só pensa com a cabeça de baixo”

A frase é usada, em geral, para entender (e não justificar) atitudes irracionais que homens cometem em função da pulsão sexual. Tipo, se envolver com uma mulher “perigosa” apenas por atração irresistível. O que eu acho injusto é dizer que os HOMENS agem assim, quando na verdade mulheres são conduzidas por esta mesma força e com igual volúpia. Eu não acho o termo pejorativo e nem o vejo sendo usado desta forma. Ele é usado como uma confissão do gigantismo de um e a pequenez de outro. Creio ser este seu sentido verdadeiro: reconhecer a potência do desejo diante da insignificância da razão como forças motrizes da humanidade

Eu sempre escutei a frase como um lamento e o reconhecimento de uma espécie de maldição do espírito humano, e nunca como forma de justificar atrocidades. Assim, acho essa frase errada, e acima de tudo injusta. Na verdade ambos, homens e mulheres, quase nunca pensam com a cabeça de cima, como nosso racionalismo arrogante propõe. Somos feito por um núcleo pulsante de temores atávicos, rodeados de crenças irracionais e cobertos por uma fina camada de frágil racionalidade, que mais nos ilude do que orienta.

Somos coordenados pelas “cabeças de baixo”, do submundo de nossos sentimentos de onde brotam nossas pulsões mais profundas, sombrias e egoísticas. Não creio que um gênero esteja menos condenado do que o outro a este aprisionamento.

Por outro lado, de uma certa forma isso é bom. Não fosse por essa brutal irracionalidade nossos encontros seriam muito mais insípidos e nossa população muito menor. O poder do desejo é o que ainda nos mantém por aqui…

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Habilidades precoces

Há alguns dias me envolvi em um debate (nome culto para “treta”) por causa da imagem de uma criança de menos de 3 anos que foi treinada para dar saltos mortais para trás (back flips). Nas imagens estava acompanhada por um treinador, que poderia ser seu pai. (vide acima)

Eu sempre me incomodo quando aparecem “crianças prodígio” no Facebook ou no Youtube. Fico pensando o quanto essa criança não foi forçada a apresentar uma performance que não faz parte do repertório normal da infância. Já pararam para pensar como essa criança foi treinada para fazer essa “micagem”?

Penso que esse tipo de treinamento é o mesmo usado para treinar um cachorro para fazer essas coisas no circo. Pode ser até uma atividade lúdica, mas qual o sentido de uma criança dessa idade fazer saltos mortais? Para quem? Apenas para o nosso aplauso? Será que essa escolha é consciente? Será que ela não se submete a treinamentos não compatíveis com sua idade – a exemplo de muitos virtuosos da música – apenas para ser explorada como um “mico amestrado”? Eu nunca vejo habilidades especiais em crianças com bons olhos; sempre penso que muitas vezes existe abuso para fazer a criança se tornar um performático por obra de adultos.

Eu pergunto: dá para afirmar que estas crianças escolheram livremente um regime alimentar e de exercícios para se tornarem acróbatas ou fisiculturistas? Para quem? Certamente que eu não posso afirmar isso (que teria sido forçada), mas eu prefiro ver criança se comportando como criança e me choca ver agindo como adultos em miniatura.

Para aqueles que argumentam que a criança “escolheu livremente uma atividade penosa e difícil”, eu pergunto como é possível diferenciar isso de estimulação precoce para se adaptar a um desejo – em verdade uma pressão velada – por parte dos pais? Como saber se a criança realmente deseja uma tarefa – via de regra árdua e penosa – ou apenas tenta se adaptar a uma expectativa dos adultos que a cercam?

Nenhuma criança de menos de três anos de idade se interessa por saltos mortais para trás sem que haja por trás dessa escolha um exemplo que ela adquiriu em casa e um estímulo para além do que seria lúdico. Tais manobras não fazem parte do nosso desenvolvimento normal. Crianças dessa idade nadam por diversão, correm muito, fazem exercícios, dão saltos, contam histórias, cantam… mas não fazem acrobacias como saltos mortais. Esses saltos acrobáticos são originados de um treinamento específico que, que quando impostos nessa idade, não são naturais. Foram incentivados pelos pais ou por quem cuida delas. Exercícios e brincadeiras ocorrem desde que o mundo é mundo, mas acrobacias precoces ocorrem a despeito do real desejo ou da necessidade de crianças pequenas.

A diferença entre praticar natação e dar saltos mortais é que somos “homo sapiens aquaticus” e nos desenvolvemos como espécie perto de mananciais e rios por causa do nosso sistema de resfriamento cerebral à base de água. Somos atavicamente ligados à água, mas criança tem que ser criança. Aqueles que são muito jovens e não passaram pela fase – por volta dos anos 80 – de ensinar crianças a escrever e ler com 3 ou 4 anos não participaram do debate decorrente dessa corrida desenfreada pela precocidade. Hoje em dia muitas publicações relacionam a precocidade do letramento com graves problemas de dislexia e outras questões psicológicas. É a mesma lógica.


Um argumento recorrente é quando dizem que este tipo de estímulo seria fundamental em um mundo competitivo em que, para se alcançar o sucesso, as crianças precisam adquirir habilidades especiais e serem os melhores em seu campo de ação. Diante desse tipo de argumento eu digo que eu jamais desejei que meus filhos tivessem “sucesso”. Eu apenas me esforcei para que meus filhos fossem felizes. “Sucesso” é um conceito capitalista que tentei afastar dos meus filhos e não quero que influencie meus netos.

Estimulação precoce infantil é um erro que por muito tempo foi disseminado por behavioristas e comportamentalistas e causou grandes estragos. Não é à toa que as escolas mais modernas não se ocupam mais em ensinar escrita ou habilidades especiais – como cambalhotas sofisticadas – e insistem que crianças sejam apenas crianças e desenvolvam suas potencialidades junto com outros iguais a si. Não só escolas adotam essa postura, mas SISTEMAS DE EDUCAÇÃO de vanguarda (vide o norte europeu) apregoam isso ao abolir até as provas para crianças pequenas.

Crianças tem o direito de serem tratadas como são: crianças, sujeitos em formação, criativas, curiosas e que devem ser estimuladas a construir seu mundo de acordo com seu desejo, sem imposições externas e sem serem obrigadas a performances que apenas servem para a admiração (muitas vezes exploração) de adultos.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos, Violência

Objeção de consciência

Caríssima Melania Amorim, eu não sei até que ponto o argumento da “objeção de consciência” pode ser usado, mas acho que esta discussão pode ser levada adiante. Talvez seja o momento de se debruçar sobre o tema.

Eu entendo que a situação atual das cesarianas a pedido também é responsabilidade do movimento de humanização e do nosso discurso (justo) de garantir autonomia para que as mulheres façam suas escolhas. Nosso esforço foi mostrar que o parto precisa levar em conta direitos reprodutivo e sexuais, e que o olhar sobre as gestantes não pode mais ser objetual, onde elas não passam de meros “contêineres fetais”, desprovidas de protagonismo e autonomia.

Entretanto, todos sabemos que as opções pela “cesariana milagrosa e indolor” não são verdadeiras pois tais escolhas são condicionadas fortemente pelo ambiente cultural onde estão inseridas. Numa sociedade sob a vigência do “imperativo tecnológico” e onde as opções pelo natural (comida, ambiente, sexualidade, nascimento, morte) são vistas como “reminiscências de um passado de primitivismo e privação“, é compreensível que mulheres façam escolhas baseadas na (des)informação que recebem de seu entorno. Mais ainda; como já dizia Simone Diniz, muitas mulheres optam pela cesariana para fugir do desamparo e da humilhação a que são submetidas no sistema de saúde. “Partos violentos para vender cesariana“.

Por isso estas escolhas NÃO SÃO livres, mas constrangidas pelas vozes de autoridade de profissionais tecnocráticos que baseiam suas decisões muito mais em função do seu próprio conforto e sua auto proteção do que no bem estar de mães e bebês e com base em evidências científicas.

Oferecer a escolha entre cesarianas e partos violentos conduzidos por profissionais despreparados e impacientes é a demonstração mais cabal da perversidade do nosso sistema. A mesma mão que autoriza a escolha pela cesariana (em nome da liberdade) é aquela que proíbe partos fora do controle patriarcal da medicina, ataca parteiras e doulas e persegue obstetras humanistas (em nome de uma pretensa “segurança”).

Talvez seja necessário agora reforçar um velho adágio que eu usava há muitos anos: “O empoderamento das gestantes não significa o desprezo à autonomia do profissional.” Sem um parteiro livre para tomar decisões embasadas trocaremos uma opressão por outra, com resultados igualmente ruins. Objeção de consciência pode ser um caminho e uma alternativa a este dilema.

Não há nenhuma liberdade quando somos obrigados a escolher entre duas imposições violentas e ruins. A pior face da opressão é quando ela vem travestida de autonomia.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto

Sectarismos conservadores

Na verdade o fundamentalismo radical é igual em qualquer parte do mundo, é semelhante em TODAS as seitas. Da mesma forma que um fanático de futebol não pode ser diferenciado de pelas cores do seu clube o mesmo se dá nos extremistas de qualquer orientação religiosa. As religiões sempre atuaram na história da humanidade como poderosas forças conservadoras. A igreja católica sempre esteve ao lado dos conquistadores espanhóis patrocinando todos os genocídios que temos conhecimento na América Latina. Hoje os evangélicos são a força por trás dos neofascistas no poder, aqui e nos Estados Unidos.

Apesar de ser válida a generalização, por certo não seria justo esquecer as pastorais surgidas nos últimos anos que tentam verdadeiramente se colocar ao lado dos pobres, mesmo sendo movimentos (ainda) claramente minoritários.

As igrejas assumem, via de regra, o lado do poder e do dinheiro. Os evangélicos e pentecostais, da mesma forma, aliam-se às candidaturas mais à direita, mais vinculadas ao poder econômico e mas explicitamente racistas, mesmo quando a imensa maioria do seu público é composto de negros, pobres, oprimidos e excluídos. Não deveria, portanto, causar qualquer espanto o fenômeno americano, onde mais de 80% dos “white evangelicals” americanos apoiam Trump, um sujeito cuja trajetória pessoal e política é um exemplo de vida OPOSTO aos preceitos cristãos. Com Bolsonaro ocorre o mesmo: um racista condenado e um homofóbico confesso recebe apoio irrestrito de sua última trincheira: a massa de pobres do universo evangélico e pentecostal, mas também de católicos “carismáticos” de direita (Canção Nova) e até de judeus e espíritas.

É importante notar que, apesar do imenso suporte que Trump obtém entre os evangélicos brancos, esse suporte desaba para menos de 30% entre os evangélicos negros. Essa equação nos mostra que por trás dessa vinculação está o racismo, um traço que une Estados Unidos e Brasil numa linha de preconceito e atraso.

Estes dados de apoio a Trump e Bolsonaro demonstram que as religiões “desmoralizadas” – isto é, onde o foco é menos MORAL e espiritual e mais político e pragmático – são as barreiras mais urgentes e complexas a serem conquistadas. Como as esquerdas e os democratas vão lidar com isso será a tônica principal das próximas eleições

Deixe um comentário

Arquivado em Política

Revolução pelo parto

A explicação para a obscenidade das nossas taxa de cesarianas – e também para a sobrevivência da violência obstétrica em nosso meio – não se resume em culpar os médicos, a ganância, a formação deficiente ou a falta de enfermeiras. Apesar de ser uma constatação fácil e evidente, o problema não se esgota no lado profissional. Para garantir o acesso a um parto mais seguro e que garanta autonomia às mulheres é necessário uma revolução cultural que só poderá se iniciar pelas próprias mulheres.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto