Participei de um debate há alguns dias – e que terminou ontem – sobre uma placa colocada no portão da frente de uma clínica veterinária a qual considerei abusivamente agressiva para as pessoas. Tratava-se de um aviso sarcástico e ameaçante para aqueles que deixavam animais na porta (ou abandonavam) para serem atendidos pela profissional que lá trabalha. Não vou repetir os dizeres, mas eram agressivos, uma espécie de xingamento misturado com uma ameaça fictícia.
O debate seguiu com algumas pessoas legitimamente clamando que o abuso contra pobres e indefesos animais precisaria de um contraponto violento como aquele, e que seria um absurdo criminalizar a atitude de uma médica veterinária, a qual estava movida por uma genuína indignação com os maus tratos dados aos animais. Sua “fúria”, portanto, se justificava pelo somatório de frustraçôes e pelo excesso de abusos que se acumulavam no que diz respeito à forma como são tratados os animais domésticos.
Acabei, como de costume, escrevendo muito sobre o tema a ponto de me exceder um pouco, para o quê peço desculpas aos debatedores. Por outro lado, creio que a minha ideia – mesmo reconhecendo que a forma como a transmito seja excessiva por vezes – ainda tem valor. Minha tese é de que “os fins não justificam os meios”, e jamais construiremos uma sociedade mais digna e respeitosa com violências, agressões e respostas desmedidas. Acredito que a veterinária tinha razões para se indignar com a crueldade que testemunhava todos os dias, mas sua reação foi desrespeitosa, violenta e totalmente desproporcional.
Ok, mas qual a relação desta história com a questão do parto no Brasil? Creio que esta discussão me tocou porque é exatamente este o estado atual do debate sobre humanização do nascimento no Brasil, e sobre isso já tratei algumas vezes.
Passado o furor inicial deste movimento social, que se caracterizava pela profunda indignação com a forma como as mulheres são tratadas no momento de parir, e com acusações de violências aparecendo por todo o lado, é importante que criemos espaço para o que chamo de “agenda positiva”.
Por este termo, que não é novo e sequer me pertence, me refiro a um movimento que vi acontecer há alguns anos conversando com Robbie Davis-Floyd. Dizia ela estar um pouco cansada das acusações contra o modelo patriarcal, machista, agressivo e acusatório existente em seu país e que partiam dos membros e das instituições ligadas à humanização do nascimento nos Estados Unidos. Havia muita tristeza no ar, um sentimento de raiva surda, que se expressava nos textos, livros, crônicas e discursos das ativistas. Era tempo de fazer uma virada no foco, “mudar o lado do disco”, e mostrar uma “agenda de positividade” ao invés de apontar dedos para o que existia (e ainda existe) de negatividade no cenário do nascimento.
Dessa ideia surgiu seu último livro “Birth Models that Work” (Modelos de Parto que Funcionam) em que ela lista experiências positivas na atenção ao parto no mundo, falando das coisas que ela admira, que dão certo e que, em última análise, “funcionam” no terreno da assistência às mães e bebês. O livro foi um sucesso, e continua inspirando ativistas no mundo inteiro a construir algo de positivo para a assistência mais humanizada e centrada nas necessidades da mulher, da família, comunidade e sociedade como um todo.
É assim que eu vejo o futuro da assistência ao parto no Brasil. Reconheço a importância dos esforços pela erradicação da violência institucional que estão ocorrendo no Brasil, a força das ONGs de proteção à mulher gestante, a importância de levar adiante as queixas de maus tratos das mulheres em unidades de saúde e a premência de escutar as mulheres, para que as suas vozes sejam levadas em consideração e não caiam no vazio. Chega de indiferença contra o arbítrio e a violência. Chega de agressões inaceitáveis contra a mulher em seu momento de maior fragilidade.
Entretanto, essa é uma parte apenas deste movimento social, e não pode ser a cara da humanização. Não podemos nos tornar Torquemadas do parto humanizado, mandando para a fogueira aqueles que ainda não foram tocados pelas teses do nascimento com amor. Se nos posicionamos contrários à violência temos que dar o exemplo e tratar esta questão de forma compreensiva, amorosa e superior. Se existe espaço para a justiça, existe um ainda maior para a compreensão das dificuldades em se adaptar a um novo ordenamento social, que jamais se processa da noite para o dia.
Nosso discurso deve ser em torno do que amamos e nos apaixona, e não centrado na indignação e no rancor. Não podemos fazer do nascimento humanizado uma bandeira de vingança e ódio, mas de lenta sedução para os nossos pressupostos. Como dizia meu colega Max, “Precisamos fazer do parto um momento tão gratificante e belo que a escolha por uma cesariana será a mais tola das decisões”.
Precisamos falar mais da beleza do nascimento em paz, e menos do terror de parir de forma violenta, entendendo que “falar menos” não significa calar-se. Mostrar o erro também faz parte das nossas obrigações como ativistas, mas esta ação não pode ser mais evidente e clara do que apontar caminhos para uma atenção gratificante, respeitosa e digna para todas as mulheres.