Arquivo do mês: dezembro 2013

Luta Insana

luta-livre

Eu sei que posso incomodar algumas pessoas, inclusive algumas que gosto muito e que apoiam este tipo de “espetáculo”. Entretanto, o que mais falta acontecer para – pelo menos – pararmos de incentivar a selvageria? Não fossem as suspeitas de fraude na primeira luta (que acabou propiciando uma revanche multimilionária, com muito dinheiro rolando para todo lado), agora o pobre lutador estraçalha sua perna na frente de milhões de espectadores do mundo inteiro. Quem sabe – baseados na mesma lógica mercadológica do “tem público para isso” – não passamos a televisionar execuções, cadeira elétrica, enforcamentos e brigas de gangues. A violência explícita e crua dessas lutas é um sinal de que as nossas pulsões destrutivas mais primitivas ainda não encontraram sublimação mais elevada do que pauleira e quebra-perna.

Eu nunca consegui assistir lutas porque acabo me identificando com os lutadores e ficando tenso, raivoso e até com dor de cabeça. Mas vejam: os esportes são TODOS sublimações das pulsões agressivas. Ao invés de atacar a aldeia vizinha e roubar propriedades e mulheres nós jogamos contra o time do outro bairro. Isso produz uma vazão da agressividade sem precisar matar ou ferir, o que é inteligente e admirável. A criação das disputas propicia esse nobre desvio nas nossas mais perigosas tendências. Como pode-se ver, o impulso é o mesmo, apenas modificado pelo processo civilizatório. Pois curiosamente, o mundo atual depois de civilizar as lutas através do pugilismo, com regras, pesos, limites e – principalmente – luvas deu uma guinada em direção à selva instintual, com a brutalidade explícita testosterônica dos lutadores lesados de MMA.Parece mesmo que produzimos na cultura uma metamorfose ao contrário, como diria Geroge Galloway: passamos da borboleta à lesma, da sublimação ao enfrentamento sem limites.

Alguns filmes, como Mad Max, anunciavam um apocalipse com octógono, onde as lutas, ao estilo gladiador,  só terminavam com a morte de um dos contendores. Porque não liberamos logo este tipo de espetáculo? Público pra isso não seria difícil encontrar…

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Agenda Positiva

Apontar dedos

Participei de um debate há alguns dias – e que terminou ontem – sobre uma placa colocada no portão da frente de uma clínica veterinária a qual considerei abusivamente agressiva para as pessoas. Tratava-se de um aviso sarcástico e ameaçante para aqueles que deixavam animais na porta (ou abandonavam) para serem atendidos pela profissional que lá trabalha. Não vou repetir os dizeres, mas eram agressivos, uma espécie de xingamento misturado com uma ameaça fictícia.

O debate seguiu com algumas pessoas legitimamente clamando que o abuso contra pobres e indefesos animais precisaria de um contraponto violento como aquele, e que seria um absurdo criminalizar a atitude de uma médica veterinária, a qual estava movida por uma genuína indignação com os maus tratos dados aos animais. Sua “fúria”, portanto, se justificava pelo somatório de frustraçôes e pelo excesso de abusos que se acumulavam no que diz respeito à forma como são tratados os animais domésticos.

Acabei, como de costume, escrevendo muito sobre o tema a ponto de me exceder um pouco, para o quê peço desculpas aos debatedores. Por outro lado, creio que a minha ideia – mesmo reconhecendo que a forma como a transmito seja excessiva por vezes – ainda tem valor. Minha tese é de que “os fins não justificam os meios”, e jamais construiremos uma sociedade mais digna e respeitosa com violências, agressões e respostas desmedidas. Acredito que a veterinária tinha razões para se indignar com a crueldade que testemunhava todos os dias, mas sua reação foi desrespeitosa, violenta e totalmente desproporcional.

Ok, mas qual a relação desta história com a questão do parto no Brasil? Creio que esta discussão me tocou porque é exatamente este o estado atual do debate sobre humanização do nascimento no Brasil, e sobre isso já tratei algumas vezes.

Passado o furor inicial deste movimento social, que se caracterizava pela profunda indignação com a forma como as mulheres são tratadas no momento de parir, e com acusações de violências aparecendo por todo o lado, é importante que criemos espaço para o que chamo de “agenda positiva”.

Por este termo, que não é novo e sequer me pertence, me refiro a um movimento que vi acontecer há alguns anos conversando com Robbie Davis-Floyd. Dizia ela estar um pouco cansada das acusações contra o modelo patriarcal, machista, agressivo e acusatório existente em seu país e que partiam dos membros e das instituições ligadas à humanização do nascimento nos Estados Unidos. Havia muita tristeza no ar, um sentimento de raiva surda, que se expressava nos textos, livros, crônicas e discursos das ativistas. Era tempo de fazer uma virada no foco, “mudar o lado do disco”, e mostrar uma “agenda de positividade” ao invés de apontar dedos para o que existia (e ainda existe) de negatividade no cenário do nascimento.

Dessa ideia surgiu seu último livro “Birth Models that Work” (Modelos de Parto que Funcionam) em que ela lista experiências positivas na atenção ao parto no mundo, falando das coisas que ela admira, que dão certo e que, em última análise, “funcionam” no terreno da assistência às mães e bebês. O livro foi um sucesso, e continua inspirando ativistas no mundo inteiro a construir algo de positivo para a assistência mais humanizada e centrada nas necessidades da mulher, da família, comunidade e sociedade como um todo.

É assim que eu vejo o futuro da assistência ao parto no Brasil. Reconheço a importância dos esforços pela erradicação da violência institucional que estão ocorrendo no Brasil, a força das ONGs de proteção à mulher gestante, a importância de levar adiante as queixas de maus tratos das mulheres em unidades de saúde e a premência de escutar as mulheres, para que as suas vozes sejam levadas em consideração e não caiam no vazio. Chega de indiferença contra o arbítrio e a violência. Chega de agressões inaceitáveis contra a mulher em seu momento de maior fragilidade.

Entretanto, essa é uma parte apenas deste movimento social, e não pode ser a cara da humanização. Não podemos nos tornar Torquemadas do parto humanizado, mandando para a fogueira aqueles que ainda não foram tocados pelas teses do nascimento com amor. Se nos posicionamos contrários à violência temos que dar o exemplo e tratar esta questão de forma compreensiva, amorosa e superior. Se existe espaço para a justiça, existe um ainda maior para a compreensão das dificuldades em se adaptar a um novo ordenamento social, que jamais se processa da noite para o dia.

Nosso discurso deve ser em torno do que amamos e nos apaixona, e não centrado na indignação e no rancor. Não podemos fazer do nascimento humanizado uma bandeira de vingança e ódio, mas de lenta sedução para os nossos pressupostos. Como dizia meu colega Max, “Precisamos fazer do parto um momento tão gratificante e belo que a escolha por uma cesariana será a mais tola das decisões”.

Precisamos falar mais da beleza do nascimento em paz, e menos do terror de parir de forma violenta, entendendo que “falar menos” não significa calar-se. Mostrar o erro também faz parte das nossas obrigações como ativistas, mas esta ação não pode ser mais evidente e clara do que apontar caminhos para uma atenção gratificante, respeitosa e digna para todas as mulheres.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Violência

Exercícios Natalinos

conhecimento1

Ok, então está combinado. Feliz Natal, abraços, tudo de bom, lembranças pra família.

Talvez. Esse Natal eu fiquei pensando em exercícios necessários. Pensei em duas coisas. Na primeira, lembrei do meu pai me perguntando a respeito do falsificacionismo. Dizia ele: “Pense nas suas convicções mais sérias e profundas, nas coisas em que você acredita com mais fervor. Pense, por exemplo, no poder da mulher de gestar e parir com dignidade, ou na sobrevivência da alma após a falência do invólucro carnal. Pense nessas “verdades” profundamente. Agora, depois de regozijar-se com o conforto que tais certezas oferecem, imagine que elas são em verdade falsas e que há como comprovar, basta que você escute os argumentos que eu lhe oferecerei em contrário. Responda com sinceridade: você os escutaria?

Será que eu os receberia como um contraponto válido ao meu modo especial de ver tais fenômenos ou fecharia meus ouvidos às coisas que não desejo escutar? Ficaria concentrado e confortado em minhas certezas ou aceitaria a relatividade das verdades que acalento? Teria a coragem de encarar a possibilidade de estar errado, ou me iludiria eternamente com a confiança em fatos que não suportam uma análise mais profunda?

A necessidade de questionar minhas certezas sempre me perseguiu, desde que escutei Raul Seixas cantando “Eu prefiro ser esta metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo“. Se aquilo que acredito não pode ser questionado é por que não passa de um dogma, e os dogmas cristalizam o pensamento e congelam a criatividade. O livre pensar não aceita a petrificação dos conceitos, pois a dinâmica do conhecimento não permite paradas. Mesmo causando dor e muito medo, questionar seus próprios valores e crenças é tão essencial quanto crescer ou respirar.

Se você acredita demais em algo, que tal questionar suas crenças mais intensas? Quem sabe não seja mais honesto relativizá-las e encará-las como o que verdadeiramente são: partes de um mosaico infinito, pedaços passageiros de um caleidoscópio que muda a cada movimento minúsculo do conhecimento, fragmentos de algo indizível e desconhecido chamado “verdade”.

A segunda coisa que pensei me serve de ideia para o segundo exercício. Então é isso aí, Feliz Natal para você e sua família, felicidades e boa sorte, um ano cheio de realizações e que o menino Jesus possa iluminar sua vida, e bla, blá, blá… Tudo bem, não há nada de mal em desejar o melhor para os que nos amam e nos querem bem. Mas e os outros? O que fazer com aqueles que nos magoaram e feriram? O que desejar a eles nesse período? Nada? Desejar o “mal”? Ignorar? Maldizer?

Ok, este é o exercício. Pense nas pessoas que lhe fizeram mal, que falaram mal de você, que lhe agrediram, que ignoraram, que caluniaram ou perseguiram, que se ocuparam de denegrir a sua imagem perante os outros, que mentiram para tirar vantagens e com isso te prejudicaram. Feche os olhos e pense nessas pessoas.

De novo. Olhe no rosto dele(s). Olhe profundamente nos seus olhos. Imagine cada detalhe de sua face.

Pronto…

Agora imagine que ele é seu filho ou sua filha. Que por mais que tenha feito coisas erradas você jamais deixará de perdoar, pois que suas almas foram conectadas até antes mesmo dela nascer. Olhe para seu inimigo como se ele fosse da sua carne, tão próximo que você pode até sentir o que ele sente.

Pensou? Percebeu que, assim tornados próximos, os inimigos se humanizam? Desta maneira fica mais fácil entender a sua mágoa e o que os fez atacar e agredir. Quem sabe entender e perdoar seus desafetos seja o maior presente de Natal possível de ser oferecido.

Podemos tentar, ao menos…

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

O humor e seus limites

jesus-manero

Muitas pessoas me falam sobre a “indecência” de fazer piadinhas com Jesus. Dizem que deveria haver mais respeito com a religião e com o “pai”, e que tais chistes deveriam ser proibidos ou, no mínimo, sofrer uma dura recriminação.

Mas qual a alternativa? Criar uma instância de fé intocável pelo humor? Pois eu ainda prefiro que Jesus seja zoado a “protegido”. Não esqueçam que até os reis permitiam que os menestréis fizessem chacota com o reino e a corte. E se Jesus for mesmo o que dizem que é deve até se divertir com a criatividade dos seus “filhos” em criar piadas e chistes com seu santo nome. Ficar chateado com as brincadeiras denuncia certa insegurança nossa com o valor da mensagem, a exemplo dos islâmicos que até juram de morte quem profanar o nome de Maomé.

Não tenho religião e respeito todas as crenças, mas não coloco nenhuma delas num local inatingível pelo humor, pois isso significa admitir que ela é frágil demais para ser ameaçada. JESUS, seja quem for, deve dar barrigadas intermináveis com algumas boas piadas surgidas em seu nome…

Eu digo isso porque as piadas com Parto Humanizado – minha especialidade é a obstetrícia – devem ser respeitadas. Eu realmente não me importo e acho algumas engraçadíssimas. Certa vez assisti um stand up do Bill Cosby chamado “Natural Birth” – em que ele debocha do método Lamaze – que é simplesmente espetacular!!!

Não existe limite para o humor, e ele é a grande ferramenta contra a opressão. Nem todo o humor precisa investir na humilhação e no escárnio; podemos fazer dele uma arma contra os poderosos. Onde houver poder, haverá humor para relativizá-lo. Fazer troça com Jesus eu não vejo nada demais. Aliás, Monty Python fez isso com maestria… E é muito importante criticar todas as figuras históricas, pois isso as humaniza e até enaltece.

Deixe um comentário

Arquivado em Religião

Robert Bradley e a desmedicalização do parto

Husband Coached Childbirth01

Uma questão pertinente:

Robert Bradley, que trabalhou nos Estados Unidos nos anos 50 e introduziu o conceito de “Husband Coached Childbirth“, e a prática do “parto desmedicalizado”, atendeu mais de 14 mil partos durante sua carreira obstétrica. Estes partos, quando avaliados, mostram números absolutamente impressionantes. Mais de 90% dos partos ocorreram sem uso de medicação alguma, apenas com suporte emocional e a ajuda do marido (que na época atuava como uma “doula”), e a taxa de cesarianas foi de apenas 3%. Sim, 90% de partos totalmente fisiológicos e apenas 3% de intervenções cirúrgicas, algo absolutamente impensável hoje em dia.

Minha pergunta é: se Robert Bradley vivesse em São Paulo, Rio ou Porto Alegre nos dias de hoje, ele conseguiria estes índices, carregando consigo apenas as suas convicções e atitudes? Ou o mundo em que ele viveu (os Estados Unidos dos anos 50) é substancialmente diferente do mundo de hoje, a ponto de pressioná-lo a ter condutas diferentes? Que tipo de pressões ele sofreria, dos colegas e dos clientes, para ter uma atitude mais intervencionista?

Minha mãe tem 1.49m e teve 4 filhos de parto normal, nascimentos fisiológicos e desmedicalizados, apesar de serem no hospital. Ganharia ela os filhos dessa maneira se os tivesse hoje? Ou teria sido apavorada desde o nascimento pela sua “bacia estreita”, pela “baixa estatura” ou pelos riscos imensos de ter um bebê “esmagado” pelo canal vaginal.

Melhorar os profissionais (e o modelo de atenção) é suficiente para esta revolução, ou só teremos melhoria REAL quando a cultura como um todo se transformar?

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto

Tempos Modernos

Chaplin-Tempos-Modernos-trabalho01.

Se há uma coisa que me arrependo na juventude é não ter investido pesadamente nos momentos de lazer e alegria com meus filhos. Eu era muito jovem quando fui pai, e o acúmulo de atividades (faculdade de medicina e sete empregos simultâneos) aliada à escassez de recursos me dificultavam o convívio com os pequenos. Eu sei, são desculpas, mas é o que me resta e me dá conforto. As férias eram sempre entremeadas com trabalhos fora de hora, plantões que pagavam bem mas que ninguém queria fazer (carnaval, Natal, etc..), e eu sempre me sentia compelido a aceitá-los. Hoje em dia eu tenho um remorso danado dos momentos que poderia ter usufruído, mas que deixei passar por me preocupar com coisas menores e muito menos importantes do que estar ao lado dos filhos.

Vivemos em um mundo em que o trabalho desempenha um papel central em nossas vidas. Era assim que eu o via. Estudar para me qualificar, me qualificar para trabalhar, e trabalhar para “ser alguém na vida”. O trabalho define e mostra quem a pessoa é, e como se situa no mapa social. Entretanto, eu vejo com preocupação na sociedade contemporânea uma supervalorização do trabalho como tendo o “sentido mais importante na vida de um sujeito”.

Eu creio que esta questão é complexa, e não pretendo esgotá-la em meia dúzia de frases. Se posso entender o significado da função social do trabalho, também posso entender que as relações afetivas e as responsabilidades que temos com aqueles que por nós se afeiçoam não podem ser desprezadas. E na sociedade em que vivemos, trabalhar de forma ininterrupta tornou-se uma meta acima de todas as outras. Não só trabalhar, mas ser fanático pelo trabalho, doente por ele, obcecado pela produtividade e pela excelência, mesmo que esta função social assuma a posição de destaque, acima dos outros objetivos de nossa vida. No mundo atual “workaholic” – aquele que trabalha em excesso e de forma insana – passou a ser um elogio, uma marca indefectível oferecida para os “vencedores”.

Pois eu vejo de forma diferente. Acredito que trabalhar demais é para os pobres de espírito. A cultura do “workaholic” é uma mitologia para burros de carga, que valoriza e coloca em um pedestal o indivíduo que situa seu trabalho acima das relações pessoais ou de seus afetos. É uma forma sutil de escravidão moderna, onde os grilhões não são mais de ferro, mas de mitos e preconceitos urbanos. “Fulano é espetacular, um workaholic obstinado, determinado e incansável” Não, em verdade ele não passa de um tolo!!! Trabalhar acima da conta é um desrespeito consigo mesmo e com a família. Trabalhar acima do que é razoável é para trouxas ou escravos. O trabalho deve ser gratificante e produtivo, lúdico e desafiador. Ele não pode ser um FIM, mas um meio para ser útil ao mundo que nos cerca. O dinheiro que dele advém deve servir apenas para oferecer segurança, tranquilidade e conforto, e não para ser um brinquedo perverso de colecionadores de moedas.

Adrenalina sim, mas jamais sem o contraponto da ocitocina. Se é importante a influência fálica e desafiadora no mundo, onde o trabalho o esforço e a criatividade terão destaque, também serão fundamentais a placidez, o compartilhar, o descanso e o prazer. Sem essa dualidade, em que ambos os aspectos de nossa vida tem espaço para se expressar, seremos autômatos infelizes, semelhantes ao pobre operário de Chaplin em Tempos Modernos.

1 comentário

Arquivado em Pensamentos

Manifesto

mão-escrevendo

“Algumas pessoas dotadas de muito rancor e pouca informação acusam-nos de sermos refratários ao uso de tecnologia. Enganam-se, pois somos abertos a toda aplicação de recursos que possa auxiliar mães e bebês. Entretanto, nos posicionamos contra quaisquer abusos praticados em nome de uma lógica mercantilista e corporativista na atenção ao parto. Da mesma forma temos uma posição firme e bem fundamentada quanto ao direito de escolha sobre o local de parto como um DIREITO HUMANO fundamental. Para isso usamos medicina baseada em evidências para fortalecer nossas posições, e não mitologias urbanas ou ideias preconceituosas. Não somos movidos por fantasias ou crenças religiosas, mas acreditamos no potencial transformador da liberdade, da autonomia e do conhecimento. Sabemos que a escolha de um modelo de parto pertence à mulher e sua família, e que nossa posição é de suporte e auxílio, jamais de expropriação de um evento sagrado, cuja expressão é parte essencial daquilo que nos constitui como humanos.”

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto

Homens, “doulos” e barreiras

Homem Doulo

As mulheres adoram “desvirtuar” os papéis historicamente determinados aos gêneros pelo patriarcado. Hoje em dia pilotam aviões, jogam futebol, praticam box e luta livre, andam de asa delta e até namoram outras mulheres.

Pior ainda: ousam abster-se de gestar e parir, sua função biológica por excelência, clamando que “uma mulher não se resume à maternidade”.  E de nada adiantam as queixas dos homens, invadidos em suas pretensas (e ilusórias) especificidades testosterônicas.

A invasão feminina sobre os espaços historicamente destinados aos homens sequer aceita contraditórios: o direito de romper as barreiras impostas pelos gêneros está acima de qualquer consideração essencialista. Não cabe mais restringir a ação das mulheres a uma “cartilha” e muito menos falar dos limites da ação das mulheres na cultura. Elas invadiram as universidades, a Academia, os juizados, a política e o espaço público. Não enxergamos mais nenhuma fronteira inexpugnável à invasão feminina.

Lembro que durante a minha época de estudante as meninas da faculdade de medicina resolveram que também fariam plantões em um pronto socorro privado da cidade. Porém, foram orientadas a não solicitar o ingresso no grupo de internos porque não havia dormitório feminino, apenas um quarto para todos os médicos e estudantes. Seria “indecente” colocar homens e mulheres dormindo no mesmo recinto durante as noites de plantão. Elas responderam: “Pois dormiremos aqui também, qual o problema?”. A reação dos colegas – fácil imaginar – foi truculenta: durante a noite trafegavam pelo quarto sem camisa e de cuecas, apenas para agredir, reforçando a ideia de que aquele era um espaço masculino, invadido por “novatas” que careciam de brio e coragem para assumi-lo.

Inútil. As meninas simplesmente viravam para o lado quando as grosserias aconteciam. Mostraram sua força e determinação, sem retroceder na luta por espaço. Mantiveram-se firmes diante do ataque machista, e venceram a guerra. Passaram a fazer parte do corpo de internos do Pronto Socorro.

Digo isso por uma questão de justiça e reconhecendo que a questão de gênero, nos últimos 30 anos (a partir da “queda de Stone Wall” em 1982), tornou-se crescentemente complexa e produziu modificações importantes na estrutura social. O mundo muda; não compre mais roupinhas cor-de-rosa para a sua filha; talvez ela queira usar azul, e talvez seu filho ache mais interessante acarinhar as bonecas do que chutar uma bola.

Entretanto, mais uma vez, vejo que a contrapartida também é complicada. Bastou que os homens tentassem “invadir” um território historicamente restrito às mulheres – a ação das doulas no cuidado com as gestantes – para que as próprias mulheres tragam de volta a discussão essencialista de que “isso é coisa de mulher”. Ora, sejamos coerentes. Quando falávamos que pilotar um caça e jogar bombas em asiáticos só poderia ser coisa para a fração da sociedade provida de hormônios viris, as mulheres vociferaram contra este determinismo biológico, algo entendido como um “encarceramento social” que impedia a livre expressão de suas vontades. “Não existem limites biológicos, apenas cerceamento cultural machista”, diziam elas, com força e disposição.

Pois então faz-se necessária a mesma postura libertária quando a ideia de “doulos” – homens atuando no suporte ao parto – emergir na cultura. Se os limites não valem mais para aprisionar as mulheres em sua ação social, porque tais barreiras seriam justas se aplicadas aos homens?

Deixemos que as gestantes decidam sobre a questão. Se elas aceitam a presença masculina nessa atividade – que implica proximidade, toque e encorajamento – então que a elas seja dada a última palavra. A nós cabe apenas compreender, analisar, respeitar e…. aceitar.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto