Cena banal…
A xícara de café fumegante assiste ao meu lado a derradeira pirueta desconcertante da ginasta gringa quando um grito corta o ar e faz a funcionária de cabelos oxigenados correr para a porta. Virando meu corpo em sua direção pude ver os derradeiros movimentos de um balé macabro.
Um rapaz bem vestido rouba a bolsa de uma mulher e sai em disparada. Descoberto por um taxista que testemunhou a cena faz uma escolha da qual se arrependeria, entra na rua errada e acaba alcançado por um passante e um motoboy. Cercado, levanta os braços, deixa cair a bolsa e se ajoelha, ainda mantendo as mãos para o céu. O silêncio que se seguiu ao grito é substituído por uma profusão de vozes, berros e exclamações. Muitos correm para a cena, mas eu me limito a me erguer da cadeira da cafeteria e, sofregamente, me dirijo à porta.
O motoboy, jaqueta de couro e botinas, mimetiza uma jogada de futebol americano. Com seu capacete reluzente enquadra o corpo forte e, como um “kicker” desfere um violento chute no corpo do rapaz. Pelo acúmulo de pessoas que agora envolvem a cena, não pude ver onde o impiedoso pontapé o atingiu. Escuto um grito surdo, seguido de gargalhadas e comentários jocosos e histéricos. Mais de 20 pessoas agora cercam o menino, cujo corpo desapareceu, envolto pela turba.
Passam-se alguns minutos e uma senhora tenta me explicar os detalhes do roubo, mas é interrompida por um senhor de uns 65 anos que, com um sorriso nos lábios, dispara: “Esse aí não rouba mais”.
“Quebraram a perna dele, continua. Chutaram a perna do ladrão até quebrar. Partiram ela no meio“. Era indisfarçável o prazer estampado em seu rosto ao relatar a pequena chacina, o linchamento que ofereceu um pouco de diversão às pessoas de bem que circulavam no entorno da cafeteria.
O povo continuava em volta, e por vezes eu escutava os gritos do rapaz. As pessoas se amontoavam em torno do seu corpo roto, enquanto esperavam a polícia, paradoxalmente a única esperança que o pobre ladrão tinha de estancar o linchamento.
“Tá lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto a foto de um gol
Em vez de reza a praga de alguém
E um silêncio servindo de amém.”
A barbárie, entre gritos e sussurros, espreita em qualquer esquina, bastando para isso que o mundo lhe ofereça uma forma de pegar carona no ódio alheio.