Arquivo do mês: junho 2013

Consumismo e Superficialidade

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Uma conhecida colunista de minha cidade escreveu uma matéria no site de uma grande empresa jornalística cujo título era “Rodrigo Faro me fez adiar a maternidade”. A palavra “maternidade” me despertou a atenção, e instintivamente procurei saber do que se tratava.

Ao clicar no link aparecia a foto acima, em que um apresentador de televisão aparecia capitaneando a primeira festa de aniversário de seu filho ao lado de uma esguia esposa e de duas outras filhas vestidas com fantasias “rosa choque” de gosto duvidoso. (Ok, eram apenas fantasias de Miss Piggy, dirão alguns…).

Interessado pelo teor e curioso pelo título resolvi investigar o conteúdo da crônica, até porque me interesso pelas questões dos ritos de passagem e a questão do consumismo exagerado à que são expostas nossas crianças. Muito mais do que uma festa as celebrações de um ano de vida, principalmente entre as celebridades (ou aspirantes a famosos) tais eventos costumam ser festivais de exageros, breguices, apelações e exibicionismo descarado.

Claro que a festa do Sr Faro não fugiu à regra, pelo que ficou demonstrado na foto. Mas para mim foi muito pior o comentário da colunista de minha cidade.

O aniversário das filhas do Rodrigo Faro me fez ter insônia essa noite.

Eu nunca imaginei que se tratasse de um texto tão superficial. Achei que que a chamada da crônica pudesse me levar a uma crítica ao consumismo sem freios, ao desejo incontido de “coisas” ao invés de momentos para serem lembrados ou talvez uma análise mais profunda sobre a importância dos ritos no desenvolvimento emocional infantil. Achei mesmo que a referida coluna se ocupasse de uma apreciação da glamorização de figuras desimportantes do cenário artístico nacional e de suas festinhas suntuosas. Tais eventos que são produzidos com esse formato exuberante e extravagante apenas para que os enxerguemos como diferentes de nós. Colocam-se como seres superiores, uma espécie de “nobreza republicana” que olha para nós com o mesmo olhar de desprezo que a realeza olhava para a plebe faminta.

Todavia, o texto que encontrei é superficial e até infantil. Com um tema tão complexo, intrigante e até estimulante a jornalista conseguiu construir uma história boba de “como arranjar dinheiro para fazer uma festinha igual”. Uma pena, pois poderia ter feito algo muito mais interessante com este fato.

Mas… vai ver eu entrei mesmo na porta errada, e o blog da referida colunista é para quem curte preços de vestido de noiva, enxoval chique para bebês, onde fazer a cesariana mais chique, a numerologia do nome daquele que vai nascer e os obstetras operadores de barriga da moda. Resolvi escrever para ela a criticar a forma inadequada de abordar o consumo infantil, as festinhas suntuosas e os gastos com tamanhas futilidades.

A resposta à minha crítica, por parte da jornalista, foi a seguinte:

(…) várias pessoas comentaram aqui sobre gente que faz festa mais para si do que para os filhos. Eu, modestamente, acho que quem tem dinheiro faz a festa do tamanho que quiser (que graça tem ser rico se não puder usar a grana?). Só me preocupa – e foi esse o sentido do meu post – que esteja se estabelecendo um padrão. Festa de criança é de arromba ou não é. Daí tem gente que se mata pra poder dar uma para o filho. Meu medo é justamente esse: que a coisa descambe de tal forma que meu filho não pense em festa a não ser assim. Mas aí vai da criação que eu vou dar pra ele, como bem pontuou uma mãe aqui. Um beijo!

Voltei para o post que ela havia colocado e resolvi reler, a seu pedido. Tinha esperanças de ter lido de má vontade e não ter entendido o “sentido oculto”.
Foi em vão.

Normalmente quando o autor pede para “lerem de novo” é porque não conseguiu comunicar adequadamente o que desejava ou porque se arrependeu e está suplicando uma interpretação diferente e mais condescendente. É clássica a desculpa “Vocês não entenderam que eu estava sendo irônico(a)?

Não, ela não estava. Havia mesmo um desejo de glamorizar as festinhas perdulárias de astros desimportantes da TV brasileira. E não é à toa que escreveu em uma das respostas sobre o “corpão da mulher do Rodrigo” (elogiando a silhueta esguia da mulher do apresentador), por que isso está no pacotão da futilidade do post.

Veja bem, aqui não há nenhuma ironia na sua fala: “Ver as fotos da festinha da família me fez abrir uma poupança para o primeiro aninho do meu piá. O dinheiro ficará no banco como garantia: se sobrar, eu e o pai dele partimos para uma viagem romântica.”

Isso não foi ironia: foi uma ameaça de entrar de cabeça no modelo exibicionista de criação de filhos. Só depois que fui ler outras crônicas desta jornalista e percebi que uma festa deste tipo faz todo sentido em sua trajetória. Ok, se isso satisfaz o ego da moça, nenhum comentário. Cada um glamoriza sua vida como quer, colocando glacê sobre o bolo da vida.

Mas precisava mesmo envolver o seu futuro filho em algo tão tolo e comercial? Ao invés de questionar a importância de uma maternidade consciente, de uma gestação sadia, de um parto humanizado para fugir da carnificina do modelo cesarista e para LIVRAR seu filho do consumismo que destrói a mentalidade infantil, ela ressaltou EXATAMENTE o que existe de mais fútil no desenvolvimento de um sujeito: a festinha de primeiro ano de uma criança que sequer participará (menos mal) do absurdo exibicionismo de seus pais.

Cheguei a ficar constrangido e até culpado por ter dado audiência para crônicas fúteis e que ressaltam o consumismo e a deseducação de crianças, colocadas como troféus parentais e bichinhos de estimação, com roupas ridículas para “enfeitar” a festa dos pais. Mas o grande número de críticas que eu vi, de pessoas maduras e que levam o nascimento de uma criança a sério, me fez ver que provavelmente esta crônica cafona e fora de lugar é que prestou um desserviço ao amadurecimento de uma maternidade e uma parentalidade maduras. Ao falar de forma tão frívola das festinhas de “exaltação do dinheiro”, ela trouxe à tona a importância de exigirmos um jornalismo mais responsável e maduro.

Tenho certeza que a jornalista não escreveu nada disso por “mal”, e nem com más intenções, mas por descompromisso com a seriedade na educação das crianças e uma falta de noção sobre a importância de livrá-las da doença do consumismo.

Recomendei a ela o brilhante documentário brasileiro “Criança – A Alma do Negócio”.
Talvez ela consiga ver o estrago que este tipo de atitude pode produzir em um ser em desenvolvimento.

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Papo de Homem

Cafeteria
A velha fofoqueira não conseguiu se controlar…

Saí da loja de componentes eletrônicos e senti a súbita compulsão de tomar um café. O shopping estava “bom” hoje, e com isso me refiro ao fato de que não estava lotado. Procurei uma mesa e chamei o garçom. Ele se aproximou e, antes que pudesse me estender o cardápio, eu disse “Um expresso, por favor?”. Ele guardou o menu embaixo do braço e respondeu “Pois não. Só um expressinho?”

“Sim”, respondi eu, mas com a clara sensação de que minha condição de pobre, miserável e incapaz foi descaradamente revelada. Afinal, só isso poderia explicar que, podendo comprar um “Extra-supreme café italiano com chantilly e canela” que custa 15 reais, eu me resignei a pedir apenas um mísero expressinho de 3 reais e cinquenta centavos. Para disfarçar a minha vergonha abri meu tablet e conectei com o Facebook, vício do qual me considero irrecuperável. Encontrei Kalu on line, que falou sobre o estatuto do nascituro e me disse da necessidade de debatermos mais sobre esta questão. Ponderei com ela que este documento pretende transformar o feto em sujeito, colocando o pátrio poder abaixo das determinações do estado. Falei para ela do perigo que significa o extermínio do protagonismo feminino sobre seu corpo, que ficará sacramentado como algo tutelado pelos poderes estabelecidos. Em outros países iniciativas como essa, capitaneadas por grupos religiosos, produziram aberrações terríveis, como o “advogado do feto” e as cesarianas por demanda judicial. Veja também esse excelente artigo, que tem mais de 25 anos sobre o tema, escrito por Susan Inwin e Brigitte Jordan.

Repentinamente fui atraído pela conversa que se desenrolava na mesa ao lado. Alguns fragmentos de frases soltas acabaram despertando minha atenção. “A cesariana”“O médico disse que…”, “Então ela foi para o centro cirúrgico…”. Dois jovens, por volta dos 30 anos, conversam sobre… partos. Sim, o assunto era sobre os nascimentos dos filhos deles, ambos ocorridos recentemente. Um deles estava sentado, e é um cabeleireiro. Sei disso porque ele estava de uniforme, e a cafeteria fica exatamente em frente a um famoso Salão de “Haute Coiffure”. O outro, que se mantinha de pé, era provavelmente um amigo que o havia encontrado tomando um café no intervalo de suas tarefas.

O cabeleireiro toma a palavra e dispara, fazendo minha xícara de café chacoalhar. “Meu médico disse que marcou a cesariana para eliminar os riscos, e eu concordei com ele. Por que deixar passar do tempo e se arriscar?” O rapaz nada mais fez do que reproduzir os preconceitos arraigados no imaginário popular, centrados na “mitologia da transcendência tecnológica” que Robbie nos alertava. O conhecimento autoritativo do profissional conquista, na alienação do marido, um aliado importante. Eliminar riscos através de cirurgias só pode ser entendido se acessarmos as questões ideológicas que estruturam a nossa cultura. O que é do feminino e da natureza não é confiável, mas o que vem da razão e da ciência é digno de total apreço e respeito.

A resposta do seu amigo, o que se mantinha de pé, foi surpreendente. “Pois é, mas uma cesariana é uma cirurgia. E ela abre sete camadas. Existem riscos inerentes em realizar um procedimento assim, não é?” Havia, pelo que pude perceber, pelo menos um pouco de discernimento e informação no seu questionamento sobre as cesarianas.

A conversa rolou mais um pouco sobre o tema e continuei a espichar o ouvido, no melhor estilo “velha fofoqueira”. Que me perdoem os rapazes, mas precisava saber o que dois jovens homens adultos, e que acabaram de passar por esta experiência, tinham a dizer. Na conversa que se seguiu pude perceber que as duas esposas tiveram filhos através de cesarianas. Ambos pequenos, um de 2600g e o outro 2900g. Como saber se não saíram muito antes do que deveriam? Não havia nenhuma justificativa clara nos discursos de ambos, apenas a determinação autoritativa de profissionais que gozavam da confiança de ambos. Não percebi nenhuma indignação, estranhamento e muito menos revolta, apenas resignação com os fatos. O cabeleireiro o tempo todo reforçava as palavras do seu médico, com frases do tipo “Quando ele me disse eu imediatamente concordei…”, ou “realmente não há porque arriscar”, entre outras expressões de concordância.

Tive vontade de levantar, puxar os dois pela gola da camisa e gritar: ”Meninos, ACORDEM!!!!!”

É um pouco triste, e um pouco trágico.

Pensei no que Maximilian, com sua positividade e otimismo, me diria ao ouvir o diálogo dos rapazes. “Olhe pelo lado positivo, Ric. Quando é que você se sentou com um amigo e pôde debater o parto de seus filhos? Achas que o seu pai um dia conversou com alguém sobre o seu nascimento?”

Está certo, Max. Prefiro ver a conversa que se estabeleceu ao meu lado como um sinal de que os homens estão se interessando mais por partos, nascimentos e amamentação. Mesmo sabendo que se trata de escolhas tolas, como cesarianas sem justificativas, ainda é melhor isso do que a suprema alienação de tempos idos. Tristemente, ainda hoje presenciamos inversões de valores que nos agridem os sentidos. Os casais grávidos ainda se fixam em detalhes desimportantes do nascimento ao invés de procurarem um atendimento com as características fundamentais da humanização: o protagonismo da mulher, a visão interdisciplinar e as condutas baseadas em evidências. Infelizmente muitos ainda querem um parto no “Sheraton”, muito chique, com piso de mármore e enfermeirinhas de tailleur. Procuram a tecnologia explícita como um artigo de consumo que o dinheiro pode comprar, e não como um recurso extremo, usado em situações limite. O atendimento ainda é equivocado e violento, do ponto de vista humano e médico, mas tem aparência de produto sofisticado.

O amigo em pé coloca um pouco de dúvida sobre a correção das escolhas feitas. “Sabe que a mulher do leito a lado da minha esposa estava dando banho no bebê no mesmo dia em que aconteceu o seu parto, pois para ela foi normal. Isso me chamou a atenção, pois quando olhei para a minha mulher percebi que ela não podia nem se mexer na cama.”

O cabeleireiro ainda respondeu: “Pois é, quando puder ser normal é melhor, não? Infelizmente no nosso caso não foi possível”. Até eles perceberam as diferenças, mas o medo da autoridade médica ainda impera. Como diria Maximilian: ”Ignorantia stercore est” (A ignorância é uma merda)

Mas, não há razão para ser pessimista. Muito conquistamos nos últimos anos. Veja só que beleza essa ultima publicação holandesa sobre parto domiciliar. Há poucos anos ninguém falava desta questão no Brasil, e hoje em dia há uma legião de ativistas questionando local de parto, violência institucional, lei do acompanhante, obstetrícia baseada em evidências e tantas outras questões.

Em 1999 estive em um congresso de humanização do nascimento no Rio de Janeiro e até entre os humanistas o assunto parto domiciliar era tabu. Ninguém atendia, ninguém tinha ideia dos equipamentos essenciais, não tínhamos a proposta de equipes interdisciplinares, e muitos achavam que este era um assunto menor, que sequer merecia ser debatido. Naquela época a gente achava que Casa de Parto era uma pequena clínica fora do hospital, com bloco cirúrgico, e com atendimento feito por médicos. Chegamos a fazer uma assim, que acabou fechando. O modelo de parteria, com a proposta centrada na atenção pela enfermeira obstetra e na obstetriz, só veio muito depois, com o amadurecimento do debate o fortalecimento ideológico, principalmente pelo trabalho da professora e antropóloga Robbie Davis-Floyd. Essa primazia, sou obrigado a reconhecer, é dela. Antes dos seus livros – em especial “Birth as na American Rite of Passage” – ninguém sabia exatamente o que fazer, apesar de já sabermos o que não queríamos mais continuar fazendo.

Robbie estruturou, a partir do seu modelo antropológico, a humanização do nascimento. Ela deu consistência e direcionamento à nossa indignação.

Assim, quando vejo a conversa de dois homens falando sobre o nascimento de seus filhos percebo o alvorecer de um novo tempo, onde a participação masculina ficará cada vez mais intensa e constante. Mesmo que a fala deles seja ainda recheada de equívocos e inconsistências, ainda prefiro encarar como um avanço. Talvez ambos tenham voltado para as suas casas com uma semente de dúvida. A farpa, “ardente e corrosiva”, como me dizia Max. “Será mesmo que era necessário?

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Nós e a Internet

Fazemos mobilização social pela humanização na Internet desde 1998, ainda no tempo dos modens de 4.8 e da conexão discada, quando iniciamos os debates cibernéticos contra a violência institucional e a barbárie das cesarianas no Brasil. Naquela época a crítica que recebíamos era de que o meio – a Internet – produzia um movimento tímido, sectário, apenas para “mulheres burguesas” que tinham tempo para “perder” na frente de um computador. A proliferação da Internet para todas as classes sociais mostrou que nossos críticos estavam errados. No tempo em que iniciamos a luta através das listas de discussão não havia parto domiciliar no Brasil, e hoje este debate ganha as ruas. Não havia um movimento de doulas, quanto menos instituições que lhes dessem respaldo. Não havia lei do acompanhante e nem obstetrizes formadas pela mais prestigiosa universidade brasileira. Não havia uma consciência de que o parto se expressava de forma violenta, numa assimetria de poderes em que as mulheres tinham a sua voz abafada, seus corpos manipulados e os profissionais faziam deles objetos sobre os quais aplicavam uma ciência cada dia mais questionável.

Igualmente não existia conexão com as outras lutas, como a amamentação, e não tínhamos contato com grupos de fora do Brasil. Éramos “ilhas”, isolados em nossas indignações e sonhos. Começamos como um grupo pequeno de internautas que acreditavam em suas ideias e utilizavam uma ferramenta nova e estranha. No mesmo dia eu falava com meninas sonhadoras em São Paulo e com um colega humanista em Florianópolis. Criamos um espaço sem distâncias, uma proximidade até então jamais experimentada. Essa realidade parecia a nós uma fantasia louca, devaneios de ficção científica. O longe desapareceu. Um artigo criticando as episiotomias era publicado em um dia e no outro já estava impresso em minhas mãos. Logo após, era espalhado pela rede, nas nossas valorosas “list servers”. As oportunidades de difusão de ideias e propostas tornaram-se realidade ao alcance da ponta de nossos dedos.

Imediatamente o conservadorismo percebeu que a Internet era uma arma poderosa e ameaçadora para acordar mentes morfetizadas. Como reação, iniciaram uma campanha de ataque a estes projetos. “Você não pode acreditar em tudo que lê na Internet, minha filha”, nos dizia o velho profissional, acostumado com uma retórica em que suas “verdades” não podiam ser questionadas. Quem abriria um livro de medicina para se contrapor à autoridade do profissional à nossa frente? Tornaram-se jargões entre os profissionais frases como “Não existe essa coisa de violência institucional. Isso é coisa de Internet”. Ou então diziam, com um supremo desprezo, “Quem te falou isso das episiotomias? O Dr. Google?”.

Não há mais como desprezar o poder da mobilização da Internet e das redes sociais. Ano passado em questão de poucas horas o NuPar – Núcleo de Parteria Urbana da ReHuNa – mobilizou milhares de pessoas em 32 cidades (31 no Brasil e uma na Itália) contra um ato de terrorismo de uma corporação do centro do país, que desejava impedir a livre manifestação de opinião, agredindo um dos pilares da democracia. Milhares marcharam contra a arrogância e a prepotência e a favor das escolhas informadas, o protagonismo feminino no nascimento e o embasamento das condutas em boa ciência.

Os movimentos de conscientização na Internet mudaram a face da democracia. Ela não se expressa mais apenas através dos modelos partidários e da união em torno de megaprojetos. Não temos apenas este meio de expressão. Hoje podemos mobilizar multidões para projetos específicos, como a defesa de um colega que está sendo vítima de perseguição por uma entidade profissional, como vimos no Rio de Janeiro, ou contra práticas abusivas como episiotomias, Kristelleres, cesarianas, e até contra ilegalidades, como o impedimento ao acompanhante no parto.

Não precisamos mais aguardar a manifestação de um “representante” do nosso partido: somos todos protagonistas da mudança. Cada um de nós tem seu próprio megafone, sua arma contra as injustiças e seu fuzil contra a barbárie. As vozes multiplicadas amplificam os desejos e mostram uma nova face na participação social. Estamos num verdadeiro “admirável mundo novo”, mas prefiro acreditar que se trata de um mundo mais justo, mais responsável e mais participativo, onde as palavras de todos receberão acolhimento e respeito.

(Para ler sobre a “Revolução da Internet” leia a coluna de Juremir no Correio do Povo em http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=4409)

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Primeiro Desafio

John Kennell
John Kennell – Um dos maiores nomes da pediatria americana, e que abriu as portas para a ciência do afeto.

Hoje eu estava me lembrando de um fato ocorrido há mais de dez anos e que foi um importante marco na minha trajetória como obstetra humanista e divulgador de ideias: a primeira vez que fui convidado a fazer uma palestra em inglês na América.

A minha primeira palestra nos Estados Unidos foi na Case Western Reserve University, em Cleveland, a convite do Departamento de Antropologia. Minha palestra era sobre as doulas, e a experiência de uns 4 ou 5 anos que eu havia acumulado trabalhando com elas. O convite foi da antropóloga Robbie Davis-Floyd, que estava apaixonada pelo movimento de humanização do nascimento no Brasil e queria que os ativistas tivessem oportunidade de falar de suas experiências. Como professora do departamento de antropologia da Case, fez o convite para que eu mostrasse a humanização do nascimento com ênfase no “brazilian way”. Havia por volta de 100 pessoas no local, principalmente doulas, enfermeiras, ativistas, estudantes de antropologia e algumas mães. Faltando não mais do que cinco minutos para começar a palestra eu não conseguia nem dizer “good morning” em inglês, de tão ansioso. Eu estava com muito medo de errar. Sim, o medo ancestral, o medo mais primitivo.

Pois para piorar a situação, quando eu estava me dirigindo ao palco, Robbie me puxa pelo braço e diz: “Esse senhor aqui quer te conhecer, e veio assistir a tua palestra“. Era um senhor de uns 80 anos, mas eu não o reconheci. Robbie então me apresentou a ele: “Este é o Dr. Ric, do Brasil. Ele é obstetra“. O velhinho me olhou nos olhos e, com uma espécie de ternura, me disse: “Ah, do Brasil. Você, por acaso, conhece o Dr Moysés Paciornik?” Sorri para ele e disse: “Claro. Ele e o seu filho Cláudio são meus amigos“. “Ah – respondeu o senhor de cabelos prateados, ele é o maior obstetra do mundo!“. Fiquei orgulhoso da menção elogiosa que aquele ancião americano fez sobre um ídolo meu. Coisa boa ver um brasileiro ser citado numa universidade americana. Então Robbie arrematou: “Esse senhor é seu colega, Ric, e o nome dele é John Kennell“.

Quando ela disse o nome da pessoa que amavelmente apertava minha mão o resto de sangue que eu tinha no corpo se esvaiu. Acho que fiquei pálido como uma folha de papel. Minhas pernas fraquejaram e minha voz desapareceu. Creio ter dito algo como “Uau, ergh, well, humm, that’s an honor!” e nada mais. Sorri e lhe cumprimentei efusivamente. Pela primeira vez eu faria uma palestra em inglês (isso já tem mais de dez anos) e de um assunto novo para mim: o trabalho das doulas. Aí aparece na plateia nada mais do que o CRIADOR das doulas, o pediatra americano que revolucionou o conceito de “vínculo” e que descobriu a importância do suporte psicológico, afetivo, emocional e físico de uma pessoa compassiva ao lado da parturiente, e que acabou por ser batizada de “doula”, a partir do livro “Breastfeeding, the Tender Gift” da antropóloga Dana Raphael.

Que pânico! Seria a mesma coisa que um “nerd” dos anos 80, que recém se deixou tocar por uma nova concepção gráfica para computadores – o Windows, ser chamado a palestrar sobre essa novidade e perceber que um senhor ruivo, de óculos e sardento chamado Bill Gates estava sentado na audiência. “Mas o que posso dizer diante de Deus, o criador de todas as coisas que cabem num computador?” pensaria o pobre menino. Pois foi exatamente como me senti: falando de uma concepção nova, uma nova formatação da assistência ao parto, diante daquele que, juntamente com Marshall e Phyllis Klauss, havia presenteado a cultura com tal descoberta.

Pois eu resolvi ficar em silêncio por alguns instantes antes da apresentação e me focar naquilo que poderia ser interessante para todos. Isto é: como um médico brasileiro interessado em melhorar o seu atendimento e focado numa perspectiva humanista poderia capacitar-se através da incorporação das doulas ao seu trabalho. Que trajetória eu havia percorrido, quais suas dificuldades e contratempos, e como esta experiência poderia ser disseminada para outros profissionais igualmente desejosos de uma mudança.

Foi o que fiz. Pensei com os meus botões “Ora, estou aqui. Estas pessoas querem que eu conte a minha história. Não há nada de errado em engasgar, em trocar palavras, pedir ajuda, ou mesmo cometer um equívoco. Seja o que Deus quiser.”

Falei por uma hora. Mostrei imagens de partos, falei de histórias engraçadas, contei dos meus temores, a minha curiosa entrada no mundo das doulas, o início do trabalho interdisciplinar, a entrada da enfermeira obstetra, os primeiros casos, as tristezas, os sucessos e a semente plantada para outros colegas no Brasil que se interessaram pelo tema e pela abordagem.

Claro que eu errei muito. Faltou vocabulário, mas sobrou cara de pau. “Azar, pensava eu. Que posso eu fazer? Ficar tímido, me esconder?” Essas não eram opções viáveis. Resolvi falar, e falar, e falar, como eu sempre faço. Contar coisas curiosas, mostrar a dificuldade inexorável de romper barreiras e ser o precursor de um modelo, mas ao mesmo tempo a perspectiva espetacular de fazer um trabalho novo, desafiador e gratificante.

Houve apenas um momento claro de tensão. Depois da palestra eu abri um tempo para perguntas e depoimentos. A maioria das perguntas era óbvia e muitas até previsíveis: “Como você foi recebido pelos seus colegas“, “O que os hospitais dizem a respeito?“, “Que resultados pôde observar?“, etc… Entretanto, houve uma pergunta – formulada por uma doula – que me fez pensar mais e me obrigou a responder com vagar e ponderação: “Como deve se comportar uma doula diante de uma indicação claramente errada de cesariana, ou diante de procedimentos equivocados do obstetra? Deve erguer a voz e defender sua paciente? Deve calar-se diante de um abuso? Como deve se comportar?

Minha resposta foi simples, direta e clara: “Doulas devem centrar seus esforços no conforto da mãe. Qualquer esclarecimento sobre procedimentos pertence ao ativismo, e este não pode ser exercido no momento do parto. A psicosfera do nascimento deve ser límpida, e a cena do parto não pode se transformar numa batalha”.

Disse isso e fiquei em silêncio. Ninguém arrematou. Não sabia se havia uma discordância absoluta e constrangedora, ou uma silenciosa aquiescência. Olhei para Robbie que, simpaticamente, me sorria. Passeei o olhar por todos os rostos presentes, até que parei do lado direito da plateia e vi a mão do Prof. John Kennell timidamente se erguer.

Suei gelado, e minhas pernas tremeram: “Agora ele vai me destruir, pensei. Vai dizer que meus conceitos estão equivocados, que as doulas precisam se posicionar com firmeza, que estamos numa cruzada para eliminar más condutas de hospitais e que eu não deveria condenar doulas ao silêncio e à conivência com as práticas sem embasamento. Vou me jogar no lago Erie hoje à tarde, e meu corpo será resgatado daqui uns anos, em um cubo de gelo boiante, na costa do Canadá”.

Mas o prof. John, do alto de sua delicadeza e suavidade apenas disse: “Meu colega, o Dr. Ric, está coberto de razão. A entrada das doulas no cenário do parto é muito recente e deve ser levada com o máximo de cuidado e delicadeza. Não podemos sacrificar um modelo de sucesso comprovado por causa de lutas com as autoridades estabelecidas. Mesmo que a doula esteja certa, isso não será suficiente. Precisamos pensar em todas as outras doulas e os milhares de pacientes que podem ser prejudicadas se uma falsa ideia de intromissão por parte delas for disseminada. Doulas devem ser anjos silenciosos, e nunca devem fazer de sua ação um enfrentamento”.

Terminou sua manifestação e sentou-se calmamente. Depois, sorriu para mim e meu coração, como por encanto, voltou a bater.

Essa foi minha primeira experiência como palestrante fora do país. Muito mais do que a grandeza de conhecimentos, a abrangência cultural ou as qualidades de oratória – qualidades estas que não possuo – minha única virtude foi a coragem aliada à grandiosidade da mensagem. Sempre me envergonhei do fato de que um projeto tão desafiador e bonito como a humanização do nascimento precisasse de pessoas tão limitadas quanto eu. Entretanto, se minhas limitações eram tão evidentes, que o fossem também meu entusiasmo e minha coragem diante dos desafios.

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Presentes da Vida

Barriga-de-grávida
O quanto de desejo se esconde numa barriga?

O quanto de desejo se esconde em uma barriga?

Poucas mulheres, percentualmente, chegam ao meu consultório “planejando” engravidar. A ideia de uma preparação prévia, que poderia ser o modelo mais racional possível,  não é o mais prevalente. A maioria das mulheres chega à primeira consulta com um papelzinho na mão e um sorriso maroto nos lábios. As explicações são variadas, mas contém uma linha que pode ser percebida nos espaços dos discursos. “Não estávamos pensando para agora, mas já que veio, que seja bem recebido“. Ou então “Ah, estávamos com uma relação cheia de idas e vindas, e eu acabei engravidando numa dessas voltas“. As gravidezes nos surpreendem mais do que seria de esperar. Afinal, se temos tanta informação, como podemos cair nas artimanhas de uma gestação “fora de hora”?

Todavia, existe mais em nossas ações do que a fina e tênue camada de racionalidade que nos recobre. O que eu percebo, de forma clara e intensa, é que o desejo é o mestre soberano a comandar nossas ações. Essas determinações inconscientes são o vento que empurra a embarcação da vida, e a nossa consciência não passa de um tímido leme, pequeno e frágil, que apenas corrige, quando possível, as rotas sopradas.

Aliás, ainda bem. A previsibilidade racional da vida sempre me assustou. Quando vejo a ponta do desejo aparecendo na teia do cotidiano eu penso na arquitetura inconsciente que arbitra a existência, para além do pensado e planejado. Como diria uma colega psicanalista, “não existem gravidezes indesejadas, apenas aquelas em que o desejo não ascendeu à consciência“. E, nas gestações assim como em outros aspectos da sexualidade humana, a libido se manifesta à despeito da vontade expressa, comandando nossa vida adiante do que as conveniências determinam. Se pode ser adequado, tanto do ponto de vista da saúde como dos aspectos logísticos, um planejamento gestacional, eu ainda consigo ver uma beleza recôndita nas surpresas que a vida reserva, pois elas mostram a roupagem mais humana que vestimos.

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Belo e Triste

Blade Runner
Agarrado à vida, o replicante espera o derradeiro momento.

Como pode algo ser tão bonito e tão triste ao mesmo tempo?

E porque por tantas vezes tais momentos se conjugam, bizarramente acoplados na teia do tempo? São eventos que parecem nos falar de uma beleza estranha, que se esconde atrás de momentos tão solidamente tristes a ponto de baterem contra o nosso peito como um tijolo arremessado pelo destino.

Mas, se a escolha do olhar ainda me pertence, prefiro enxergar aquilo que verte de belo e resplandecente no breu das lágrimas.

Vi Blade Runner, de Ridley Scott, na adolescência, e a cena final nunca me saiu da memória. O desespero do protagonista, o replicante Roy Batty – o melhor trabalho do Rutger Hauer para o cinema – para descobrir o sentido da vida, que só poderia ser elucidado através da morte, sempre me tocou de uma forma muito especial. As memórias, os amores, as tristezas, as alegrias, as perdas, os fracassos e as vitórias, todas elas desaparecendo, diluindo-se como lágrimas na chuva no triste momento do “desligamento”. E o apego à vida, qualquer uma, mesmo à vida daquele a quem pretendia matar. O replicante salvou seu desafeto porque viu nele algo precioso demais para ser desperdiçado: a própria Vida, preciosa por ser frágil, que agora se esvaía melancolicamente de seu corpo de máquina. Momento épico do cinema…

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Sobre as mamas de Angelina

Angelina Banguela

A piada é boa e faz sentido. Problemas dentários podem, SIM, levar à morte, basta pensar em infecções dentárias levando à febre reumática ou endocardite. Raras, fortuitamente, mas possíveis de ocorrer para quem tiver dentes. Transtornos dentários estão também relacionados a transtornos na gestação, podendo levar ao parto prematuro, e este último é um dos principais problemas de saúde pública na Europa (baixo peso ao nascer). Mas a pergunta pode ser levada mais adiante: quem aí estaria interessado em retirar os testículos para evitar o câncer nesta região do corpo? Sim, este mata, sem dúvida. E agora? Porque mutilar as mulheres é tão facilmente aceito, mas mutilar os homens causa desconforto?

Só para lembrar: as cirurgias mais realizadas nos Estados Unidos são cesarianas e histerectomias. Ambas sobre o mesmo órgão (o útero, a Matriz, a “mãe do corpo”) e sobre o mesmo gênero, as mulheres. Ambas com caráter ablativo; ambas aplicadas sobre o cerne da feminilidade.

A ideia a ser vendida por trás desta amputação é a de que a pesquisa genética pode fazer PREVISÕES certeiras e “matemáticas” de doenças e morte. Isso é uma fantasia. Não somos controlados por nossos genes, mas por uma série de fatores (principalmente o estilo de vida que temos) dentre os quais se encontra a bagagem genética e as “possibilidades de adoecimento” que carregamos. Ninguém adoece do que quer, e sim do que “pode”. Mas esta construção tem nos genes apenas um elemento, e não o mapa completo de nossa história futura. Foi a partir desta constatação – de que esta ultra estrutura não é capaz de prever o futuro, mas apenas uma gama limitada de tendências – que criou-se o termo “epigenética”, que tenta combinar os aspectos da constituição física com os outros tantos aspectos de ordem emocional, circunstancial, ambiental, afetiva, psicológica e até mesmo as questões aleatórias. Posso carregar um gene defeituoso – como a propensão para o câncer pulmonar – pela vida inteira sem que ele NUNCA se manifeste apenas porque decidi não fumar, não me contaminar com substâncias tóxicas (como as anilas), não viver em local poluído e ter uma alimentação detoxificante. Pronto: toda a minha má herança foi soterrada, sem precisar de amputações. Mas estilos de vida não geram patentes milionárias, e nem vendem drogas milagrosas. É natural que este tipo de “tratamento comportamental” não receba muita atenção da mídia.

O caso de Angelina Jolie é emblemático muito mais pelo entusiasmo da comunidade científica do que pelo ato em si. Ao invés de agirem com cautela, os profissionais imediatamente se apaixonaram pela ideia, a exemplo do que ocorreu com as “células tronco”, que já enriqueceram muita gente, mas que ainda não forneceram provas concretas de sua eficácia no tratamento de qualquer afecção conhecida. Falta um freio, um anteparo às aventuras interventivas da ciência, mas isso não significa proibir ou censurar a pesquisa, mas incentivar um bom senso, evitando o exagero nas invasões sobre o corpo, as quais frequentemente se baseiam em meras suposições ou maquiagens estatísticas.

Falta também uma visão mais respeitosa sobre o corpo da mulher. Mas isso ainda é resquício de oitenta séculos de cultura patriarcal.

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Sobre a Origem das Mudanças

bisturi

Esta é uma velha discussão que eu carrego há muitos e muitos anos. Sempre que eu perguntava para algum colega meu – que havia começado a praticar uma obstetrícia mais “gentil”, suave, baseada em evidências e com um respeito ao protagonismo feminino no processo – sobre quais os fatores preponderantes que o levaram a produzir uma modificação significativa no paradigma de atenção, eu sempre me deparava com um tipo específico de resposta que não era exatamente aquela que eu esperava. O ponto deflagrador, o estopim de um processo transformativo da envergadura que se faz necessária para a humanização do nascimento era invariavelmente descrito como um processo de ordem afetiva, e não um choque “cognitivo”. NÃO nos tornamos médicos humanistas pela via da razão! Se por um lado isso pode produzir uma frustração de nossas ilusões racionalistas, pelo menos nos oferece um anteparo à arrogância cientificista.

Na história de cada profissional que optou por uma postura humanizada existe uma ferida aberta, um processo que ainda sangra, uma lesão na alma que se mantém ardente e corrosiva. A tal “farpa” da qual Max me falava. Assim, a mudança ocorre pela via da emoção. Um vídeo, uma palestra, um parto, um bebê, uma mãe que chora, um pai que se derrete, um grito (como o da “Glamour Girl”), uma conversa, um silêncio. Tanto faz, e não importa. É necessário apenas que seja algo suficientemente sonoro para nos acordar e para levantar a ponta do véu de algo profundamente recalcado nas memórias mais primitivas, numa época em que nossa vida era ausente de palavras, permeada somente por sons, cheiros, gostos e toques.

Somente depois, quando tais sentimentos atingirem as estruturas subcutâneas, e tal tumoração produzir a vermelhidão, a dor, o calor e o desconforto na alma, é que o saber científico, tal qual um “bisturi de evidências”, poderá cortar a carne e aliviar nossa angústia. E só aí você precisará “saber”, pois o mundo racional e estatístico pedirá passagem para normatizar suas ações dentro de parâmetros aceitos e confiáveis.

Eu sei que é por causa dessas ideias que não sou convidado para festas desde a época da faculdade, mas eu sempre acho oportuna uma reflexão sobre a humanização do nascimento um pouco diversa daquela que a gente se acostumou a fazer para outras questões. Entender a dinâmica inconsciente que nos “empurra” para uma determinada posição ideológica é sempre salutar, e nos ajuda a criar barreiras contra a idealização, o sectarismo e os radicalismos.

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