Arquivo do mês: novembro 2020

Selvageria

Qualquer generalização no campo da interpretação dos sintomas pode cair na vala profunda da selvageria – mesmo quando correta. O diagnóstico não pode servir como julgamento ou condenação sumária, por mais que alguma teoria metafísica nos seduza nesse sentido. Uma consulta não pode se transformar em uma brincadeira de adivinhação.

É preciso entender que o cuidado com os pacientes – em especial as grávidas em suas fragilidades – requer uma atenção amorosa, isenta de preconceitos e sem julgamentos de ordem moral. As ferramentas diagnósticas e mesmo a visão ampla e psicossomática da doença não podem ser instrumentos de tortura medieval, imputado culpas e criando ressentimentos.

Mesmo que os sintomas, quaisquer que sejam eles, nos permitam inferir suas origens emocionais ou psíquicas, não cabe aos profissionais usar este conhecimento como arma. A prática do cuidado não pode ser o exercício da crueldade.

Se as terapias de qualquer tipo são “fraternidade instrumentalizada” então qualquer palavra, ato ou silêncio de um terapeuta só podem ser guiadas pelo sentido do cuidado amoroso. Sem esse guia perdemos toda a dimensão humana e fraterna da arte de curar.

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Arquivado em Medicina

SUS

Em todos os lugares fora do Brasil onde falei sobre o SUS para explicar a diferença nas taxas de cesariana entre os 3 diferentes tipos de atenção (público, privado e medicina suplementar) eu sempre vi olhos brilhando e entusiasmo com o nosso sistema universal de atenção, em especial entre os americanos. Para eles um modelo solidário, onde o adoecimento não significasse a bancarrota, onde houvesse segurança de atenção para todos e os pobres tivessem atendimento digno, sem precisar de esmolas e caridade, era o paraíso da atenção digna à saúde.

Quando vejo os ataques ao SUS, o projeto de lenta e insidiosa privatização, o desmantelamento e o sucateamento planejados para depois dizerem que a venda era “necessária” eu fico imaginando o horror destes amigos americanos americanos ao perceberem que estamos imitando o que existe de pior na cultura liberal deles: a doença como negócio.

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Voltar ao passado

Penso muito em voltar no tempo. Fico imaginando às vezes me concentrar até entrar em transe, aparecer em uma data do passado e mergulhar nela, como no filme “Somewhere in Time”. O problema é pensar em qual data eu gostaria de chegar.

Algumas vezes penso em retornar instantes antes de fatos traumáticos, mas outras vezes volto à escola, à infância, à minha casa no interior. Tipo, para falar com meu avô que morreu quando eu tinha três anos, ou reencontrar minha mãe e minha avó Irma. Também para rever a turma da rua ou os amigos da escola. Voltar naquele momento especial e ter coragem de dizer algo que não falei – por medo. Mas também voltar para ficar calado quando disse alguma bobagem que magoou alguém.

Essas viagens sempre me oportunizam pensar “como seria se…”, mas, mesmo que fosse possível ajeitar alguns erros do passado, uma viagem no tempo seria uma angústia brutal. Fico imaginando encontrar a mulher da minha vida e dizer a ela as palavras que sempre achei que deveria ter dito, só para depois perceber que o segredo de sua paixão foi mesmo ter sido bobo, tolo e desajeitado. E se dessa vez ela não me quisesse? Perderia instantaneamente meus filhos e netos e passaria a eternidade imaginando em que outra barriga teriam nascido.

Eu seria um perdido, vagando pelas ruas, imaginando encontrar em outros corpos as almas que perdi. A volta ao passado seria um martírio infinito, uma coleção de dores e tristezas. Uma “saudade do que nem cheguei a ser“…

Talvez sejamos feitos dos próprios erros que cometemos, e mesmo os piores deles constroem o que somos hoje. Perdê-los talvez signifique retirar de nós a nossa própria essência.

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Magnólia Chernobyl

(Uma história baseada em fatos reais)

  • Oi linda, preciso te perguntar uma coisa…
  • Oi, meu amor, manda.
  • Conhece Magnólia Chernobyl?
  • A blogueira? Sim, curto muito os textos dela.
  • Miga, vai descurtindo…
  • Por quê??
  • Vou te mandar o último texto dela pelo whats…
    …….
  • Leu?
  • Li sim, achei bom
  • Bom???? Você concorda com o que ela escreveu???
  • De certa forma sim. Não usaria aqueles termos, e talvez ela tenha sido dura em demasia, mas em essência eu acho que ela está correta. Tem que atacar esses caras mesmo; são pessoas que mais atrapalham nossa luta do que auxiliam. No merci!!!
  • Não acredito que estou lendo isso de você. Não importa o que ela “quis” dizer, mas o quanto isso pode nos atingir. Não percebe??
  • Mas autocrítica é essencial!!! Alguém precisava dizer. Podemos estar indo para um caminho muito errado!!! Ela colocou o sino no pescoço do gato!!
  • Não interessa!! Deixe as críticas para os inimigos!! Precisamos nos proteger!! Ela não tem o direito de falar essas coisas em público. Quem ela pensa que é?
  • Mas é apenas sua perspectiva, sua maneira de ver essa questão. Além do mais, ela está nessa luta há mais tempo que qualquer uma de nós. Como pode pensar em “cancelar” alguém pela sua opinião discordante? Que tipo de tirania é essa? Que movimento monolítico é esse que vocês pensam criar?
  • Então agora os culpados somos nós?
  • Ninguém é culpado!!! São opiniões, perspectivas, pontos de vista!! Se você analisar bem os objetivos de Magnólia são iguais aos seus ou os meus. Ela apenas escolheu uma forma diferente – provavelmente minoritária e contra-hegemônica – mas igualmente honesta e válida de enxergar a nossa questão. Se ela estiver errada, o tempo dirá. Mas silenciar divergências é pura arrogância e preconceito!!
  • Jamais vou aceitar de volta essa traidora ou suas palavras…
  • Traidora??? Do que você está falando?? Que análise moral é essa? Discordar é traição? Ter uma visão diferente a coloca como uma mentirosa, falsa ou oportunista?
  • Eu acho mesmo que foi bom termos esta conversa. Agora sei bem quem você é. Antes disso eu a considerava uma pessoa com limitações, mas agora vejo que entre você e Magnólia não há praticamente nenhuma diferença. Vocês são da mesma laia, vieram da mesma lama. Traidoras, desonestas.
  • Bem, se é assim que pensa de mim pode me colocar na sua lista negra. Quem sabe sou mesmo isso tudo que você descreveu. Apenas me surpreende sua ingenuidade de não ter percebido estas minhas falhas morais em tantos anos de convivência.
  • Eu estava cega. – (Block)
  • Boa sorte – (sua mensagem não pôde ser enviada)

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Arquivado em Contos, Ficção

Harmonização facial

Depois de ver a propaganda de uma profissional que modificava o rosto de Frida Kahlo, retirando seu “defeitos”, eu fiquei me questionando qual o sentido de “harmonizar” a cara de alguém? O que significa deixar uma face mais “harmonizada”? Ter nariz grande é um “defeito”? Boca pequena é “feio”?

Não serão estes tão somente eufemismos usados para deixar as caras das pessoas mais uniformes? Tipo…. todo mundo parecido, com as mesmas características, queixo, bochechas, orelhas, etc…

Vale a pena? Não seria melhor ensinar as crianças a valorizar suas características mais pessoais e mostrar que isso produz um diferencial?

O dia em que houver engenharia genética suficiente para escolher as características de quem vai nascer e – pior – como vão se desenvolver suas feições durante a vida, que cara as pessoas escolherão? Se você escolher o George Clooney ou Natalie Portman poderá ter certeza que haverá milhões de sujeitos iguais a você perambulando pelo mundo. George e Natalie seriam “figurinhas fáceis” e muito provavelmente perderiam o valor no mercado. Que vantagem haveria em ter uma beleza “comum”, podendo ter uma feiura singular?

Talvez, nesse mundo pós apocalíptico, minha cara teria, finalmente, o crédito merecido. Feia, mas única.

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Chupacabras

Menas mãe porque fez cesariana“, “só é mulher quem tem filho“, ou ainda “mãe de verdade só quem teve parto normal” são os chupacabras da atenção humanizada ao parto.

Ninguém ouviu, ninguém falou, não há testemunhas mas todo mundo conhece “a vizinha da amiga de uma prima que ouviu de uma doula.. ou uma médica. Não, acho que foi uma enfermeira no posto, quem sabe, mas pode ter sido daquela mulher que teve parto normal. Não tenho certeza, vizinha, mas isso é um horror, né não?

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Parteria no século XXI

O desprezo pela arte da parteria e a introdução do médico no acompanhamento da gravidez de risco habitual e na assistência ao parto eutócico foram os piores decisões tomadas na assistência à saúde no século XX. Esse modelo tecnocrático foi muito mais fortemente introduzido nos países satélites dos Estados Unidos, e muito menos intenso na Europa, sendo estes últimos os países que apresentam qualidade melhor nos índices de saúde materna e neonatal. Não por acaso. Essas evidências deveriam nos guiar, mas precisamos aumentar a pressão para que sejam adotados modelos mais adequados e justos.

A falta de evidências científicas que amparem um sistema centrado no médico, associado ao desprezo pela qualidade milenar da assistência das parteiras, demonstram que essa imposição só se sustenta pelo uso da força. Somente uma narrativa despregada da ciência permite que continuemos investindo num modelo caro e inefetivo.

A adoção de um novo/ancestral modelo centrado na atuação das parteiras profissionais à gestação e parto de baixo risco deverá ser a tarefa a atravessar o século XXI para que as mulheres possam alcançar o melhor de dois mundos: a qualidade e a delicadeza do atendimento das parteiras associado ao melhor que a ciência pode oferecer na correção das patologias, com sistemas de referência ágeis e respeitosos com os profissionais envolvidos.

A manifestação da Febrasgo está em sintonia com esta imposição de modos pelo poder, seja ele econômico ou pela condução da narrativa enviesada que controla a tecnocracia. Deve ser repudiada não apenas por quem preza a assistência de qualidade às gestantes, mas também por quem respeita a ciência – com a qual estas decisões deveriam estar sempre conectadas.

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Obediência

Quatro sujeitos entram em um mercado num dia muito quente de verão. Pelo calor reinante os rapazes adentram no local sem as camisas. O proprietário imediatamente pede que coloquem a roupa e aponta o cartaz com a proibição afixado ao lado na porta.

Os quatro rapazes brincam e avisam que não vão demorar pois querem apenas comprar refrigerantes e já vão se retirar. O proprietário, impaciente, pede uma segunda vez enquanto, ato contínuo, acena para o carro de polícia que está estacionado em frente.

Três policiais entram enquanto os meninos estão pegando os refrigerantes. Ainda com a porta do balcão refrigerado aberta, três deles são empurrados a força para fora, mas um deles é jogado no chão e tem a cabeça prensada pelo joelho do policial. Sua boca sangra enquanto as algemas são colocadas em seus punhos, colados em suas costas.

Ele então pergunta, “Por que essa violência? Viemos comprar refrigerante!! Nada disso é necessário!!”. Enquanto isso seus amigos assustados aguardavam olhando através do vidro do mercadinho.

“Cala boca, neguinho” grita o policial com o nariz grudado no rosto do rapaz. “Você vai aprender a obedecer quando lhe mandarem fazer algo.”

O jovem negro, ainda com a face colada ao piso frio, observa seus três amigos brancos aguardando, enquanto a viatura policial grita o som angustiante de sua presença.

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Arquivado em Ficção, Violência

Midwifery

Midwifery is a state of mind, that moves between anguish, fear, ecstasy and profound exhaustion. Is one of the most exciting professions, which combines tenderness and a strong spirit. It would be job that God Herself would be doing if she was not birthing the Universe.

“Pregnancy is when the entire universe fits within your own belly”

Joanne Aston, “Midwifery in a Nutshell”, ed. Politeus, pag. 135

Joanne Becker Aston, nasceu em Manchester na Inglaterra em 1882, imigrando para os Estados Unidos no início do século XX após se casar com Erick Perman, um alfaiate de Yorkshire. Por influência de sua sogra tornou-se parteira nos subúrbios de Boston onde passou a morar. Tornou-se rapidamente uma referência para a sua comunidade, tendo atendido centenas de partos, além de ter oferecido aconselhamento para mulheres sobre saúde sexual e reprodutiva. Era chamada de “Fada de Quincy”, pela doçura e dedicação com a qual atendia as mulheres e suas famílias. “Midwifery in a Nutshell” é um livro biográfico de casos, histórias, conceitos (muitos deles hoje vistos com estranheza) e tratamentos usados no início do século XX para a assistência ao parto.

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Carrefour

“E os brancos que são mortos por negros? Eles não valem nada?”

Suas mortes são igualmente lamentáveis, mas pense bem: eles não morrem POR SEREM brancos. No caso do Carrefour o racismo é o principal elemento da cena, mas por certo não o único. A violência absurda, a covardia e o uso abusivo da força também contam. O poder econômico de uma grande rede de supermercados multinacional atacando a ponta frágil da sociedade – preta e pobre – é inegável e não podemos fechar os olhos para essa face cruel do capitalismo.

Mas a observação da Bebel é certeira e vai no ponto: se fosse branco nada disso teria acontecido. Alguém conversaria com ele, chamaria um responsável da loja e acabaria tudo sem maiores problemas. Vejam os vídeos dos barracos que brancos fazem e perceba a diferença. É a cor da pele, é a cor…

Sim, ele morreu por ser negro, sua condenação estava na escuridão da sua pele. Um negro não tem o mesmo direito de fazer um “barraco” e tudo ser resolvido na conversa, chamando o gerente. Não, com eles é na porrada no mata Leão, na asfixia – há pouco tempo, no chicote. A execução é sem júri, sem advogado; é no chão frio da rua, atrapalhando as “pessoas de bem” que vão fazer suas compras.

Claro que há negros que matam brancos, mas mostre para mim um grupo de negros pulando e asfixiando um branco apenas por ele ter sido inconveniente ou abusado. Onde estão?

A desculpa, quase onipresente aqui e nos Estados Unidos, é bem conhecida por todos nós: Por que ele resistiu? Por que não cooperou com as “autoridades”? Pois eu acho essa pergunta a maior das ofensas, pois no fundo ela significa: “Hei negro, ponha-se no seu lugar. Quando a gente manda, você obedece!”

Para um negro, reagir a uma injustiça é sempre um crime inafiançável. A eles só cabe a resignação e o silêncio.

O racismo fica evidente quando o que para nós brancos é tratado como “exagero” ou “inconveniência” para os negros significa uma sentença de morte.

Os não brancos são 51% desse país. Por quê nossos irmãos são tratados com muito mais crueldade que qualquer animal? Ontem foram 80 tiros. Um pouco antes Amarildo. A juventude negra continua sendo massacrada diariamente pelo Estado racista.

Até quando???

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