Arquivo do mês: junho 2023

A Festa

Era uma vez… uma famosa Drag Queen que resolveu se casar, mas para isso resolveu fazer a maior festa da história da cidade. Dinheiro não seria o problema, e para isso resolveu fazer um evento grandioso o suficiente para entrar na história. Não apenas convidou o mais caro buffet, alugou o clube mais chique da região, os garçons mais gatos, o serviço de manobristas mais top, luzes, palco, convidados da alta burguesia, etc, como também prometeu o mais fantástico de todos os vestidos de noiva, uma arte jamais produzida pela criatividade humana.

No dia do casamento a noiva chegou em uma limousine prateada, dirigida por um motorista negro, alto e forte escolhido pelo nome: Jarbas. Logo ao chegar ao local a multidão cercou o carro para ver a noiva e sua promessa de glamour; todos queriam ver o espetáculo que ela prometera. Quando a porta da limousine se abriu de dentro dela saltou uma perna esguia e forte cujo calcanhar era adornado por uma pulseira recheada com pedras preciosas. Nós pés um salto agulha de uns 18cm; um sapato Loubotin branco cravejado de joias. Acima do joelho uma jarreteira cor-de-rosa com fios dourados deixava a panturrilha ainda mais realçada e delicada. A pele estava alva e brilhante pela sessão de massagens e cremes hidratantes recebida no “dia de noiva”.

O vestido era apenas deslumbrante. Feito com renda Soutache, apresentava um cordão a contornar os desenhos proporcionando um aspecto de profundidade aos florais, mais justo à cintura e estruturado. As modistas que se aglomeravam na calçada estavam espantadas e abismadas, pois se tratava de um vestido de noiva clássico, requintado, sofisticado e com um toque todo especial de atrevimento.

– Calma, gente, calma!!! Esperem!! É apenas a aia!!!!!

Era a Drag Queen, avisando que o melhor ainda estava por chegar. Pois na data histórica de 30 de junho de 2023, o Brasil inteiro festejou a inelegibilidade… da aia.

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Democracia

Tive uma ideia para criar a democracia perfeita no mundo, até para ser aplicada até aqui no Brasil. Imagine um país que criasse um sistema baseado no capitalismo, na propriedade privada e no lucro. Estes elementos seriam dogmas, imutáveis, não passíveis de discussão; uma sociedade de classes cristalizada para todo o sempre. Para controlar este sistema criamos um partido formado de proprietários, industriais, grandes fazendeiros, agentes do sistema financeiro; banqueiros e latifundiários. Esses representarão menos de 5% da população, mas terão controle sobre 100% do país. Esse grupo se manterá no poder indefinidamente porque nosso sistema vai dificultar (na prática impedir) qualquer forma de acesso a um representante dos outros 95% do povo. O método para obstaculizar candidaturas indesejáveis será através do controle econômico. Qualquer partido para alcançar o poder precisará de muito dinheiro para fazer campanha e se organizar em todos os Estados e cidades, mas o dinheiro será controlado por este partidão gigantesco e milionário, através das indústrias, da publicidade e dos bancos. Isso será uma barreira fatal para 99% de todas as iniciativas.

Esse partidão também controla tudo, desde o judiciário até a mídia, de forma que se um candidato surgido do povo – tipo um negro, um operário, uma jovem pobre, um funcionário público, etc, – alcançar este nível de popularidade, farão campanhas na TV diariamente dizendo que se trata de um ladrão, que roubou uma bicicleta, que tem negócios com bandidos, que mandou a amante abortar etc. Se a campanha não der certo, contratam a peso de ouro juízes e promotores que, por fim, colocam esse dissidente na cadeia, mas antes passam um verniz de legalidade em tudo que foi feito. Essa estratégia é tão inteligente que os pobres e os miseráveis a quem exploram vão fazer campanha para estes ricos, mesmo sendo evidente que o luxo com o qual estes últimos vivem é pago por eles, que se matam – literalmente – de trabalhar para garantir seus privilégios.

“Ah, mas é um partido só!! Isso não garante a diversidade e a alternância de poder. Isso não é democracia”.

Não tem problema algum. Já inventei uma solução: divido esse partidão ao meio e coloco nomes diferentes, para que todos pensem que um nada tem a ver com o outro. Um deles será, por exemplo, “Partido Legalista”, e o outro “Partido da República”. É sabido que os nomes dos partidos não guardam nenhuma relação com seu conteúdo programático, portanto os nomes são, em verdade, irrelevantes. Os dois são exatamente iguais, usam as mesmas ferramentas, se assentam sobre verdades estabelecidas (o capitalismo, o “livre mercado”, o lucro, a sociedade de classes, a expansão, a atitude policialesca sobre o mundo, o ataque a outros países, a exploração dos trabalhadores, a concentração insana de riquezas, o lucro sem controle, etc), mas discutem de forma violenta e agressiva questões periféricas como os pronomes, os banheiros unissex, os direitos gays, os direitos indígenas, o racismo, as campanhas para a comunidade trans, as leis de imigração, leis de proteção às mulheres, etc.

E assim o fazem de uma forma tão intensa e agressiva que todos terão certeza de que esses dois partidos não foram originados daquele partido único, burguês e patronal, e não restará dúvida alguma de que se trata de partidos legitimamente diferentes – e até mesmo antagônicos. Por isso a ação deve ser articulada com a mídia e com o judiciário, para que ninguém desconfie que só um único grupo de pessoas governa esse país desde sempre.

Que acham da minha ideia? Original, não?

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Esforço

O gosto da vitória está inexoravelmente conectado ao esforço. Não se trata de “romantizar o sofrimento”, mas valorizar a intensidade e o sentido do trabalho dispendido. Algo recebido sem esforço não adquire valor. O ouro só é valioso pelo trabalho intenso para encontrá-lo; os diamantes também. Já o ferro e o cobre são obtidos com muito menos “sofrimento” – ou esforço, e é altamente por isso que estes metais valem muito menos.

Equilíbrio entre a dor de avançar e os resultados obtidos é outro tema. O esforço é o que dá valor às nossas conquistas. Ou, como diria meu irmão, “tudo que é de graça custa muito caro”, pois que não está conectado com nossa dedicação ao objeto construído.

Aqueles que não reconhecem o significado das conquistas difíceis e das batalhas heroicas não conhecem futebol e nunca vivenciaram uma vitória épica do seu time (recomendo ler sobre a Batalha dos Aflitos) e nunca tiveram que sofrer diante dos seus medos e inseguranças para conquistar a mulher por quem estão apaixonado. “Quanto mais fácil melhor” é um absurdo colossal; na verdade, o oposto está muito mais próximo da verdade: quanto mais difícil, maior o prazer da conquista…

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Dinheiro

Nunca vou esquecer as palavras de um amigo que mora em um rico país europeu quando conversávamos sobre trabalho e dinheiro. Seu salário era excelente e seu trabalho estava ligado (que surpresa) a uma instituição bancária sólida e imponente, em um país conhecido por ter um sistema bancário que recebia dinheiro de fontes obscuras do mundo inteiro. No meio da conversa ele olhou para mim e disse:

– Nem imagina o quanto invejo o trabalho artesanal que vocês fazem cuidando de gestantes, bebês, famílias, etc.

Espantado, respondi:

– E por que você invejaria uma atividade tão simples como a nossa e que não remunera sequer 1/5 do que você ganha?

Sua resposta foi simples e direta:

– Vocês podem ver o resultado imediato do trabalho que fazem. Tanto o dinheiro que ganham quanto os agradecimentos são direcionados diretamente a vocês. Já eu trabalho em uma esteira de produção financeira onde o resultado final depende de tantas circunstâncias que não é possível traçar uma linha direta entre meu trabalho e um bom resultado observado. Além disso, trabalho para que piratas internacionais, bandidos de ternos Armani, gente sem escrúpulos e sem ética fique ainda mais rica. Isso é muito deprimente.

Essa declaração, que colocava um sentido transcendental ao trabalho, muito me impactou. Dinheiro realmente não pode ser a medida de todas as coisas.

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O Pecado dos Incautos

As paixões nos fazem ver o grande onde habita a miudeza, e pequenez onde existe portentosa grandeza. Existe mentira a preencher a distância entre a retina e a realidade que se posta à frente. Confiar nos sentidos e nas emoções é o pecado dos incautos.

Teophrásio de Aquila, “Moralis vita angelorum”, Ed. Parnaso, pág. 135

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Risadinha

Acontece muito comigo…

Escrevo um comentário (via de regra contra hegemônico) em uma publicação qualquer e recebo como uma resposta sem palavras, apenas uma “risadinha” de alguém que não concorda com a minha opinião.

🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣

Ao meu ver é a falta de argumentos a razão que os leva a utilizar o ícone da risada debochada, o qual traduzo como: “Não tenho argumentos para lhe contrapor, por isso utilizo esta risada sardônica como o recurso que me resta, evidenciando meu vazio retórico”.

Ok, acho pequeno e desagradável, mas ainda lido melhor com as risadinhas pusilânimes do que com os ataques ad hominem.

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Futebol e Capitalismo

A UEFA – Federação Europeia de Futebol – pretende implementar um “teto de gastos” no futebol para estimular a competitividade nos campeonatos do continente. Sei que existe um caráter imperialista nesta medida, mas não há como fugir dessa realidade. Não acredito que o objetivo seja roubar da periferia, até porque precisam dos clubes à margem do futebol europeu para produzir bons jogadores para eles. Entretanto, sei que está medida impactará o futebol do sul global. O que se quer por lá é combater o desnível que está acabando com a disputa. Os resultados escandalosos dos campeonatos italiano e alemão recentes deixaram isso claro, quando clubes ricos ganharam seus campeonatos durante uma década inteira. Isso vai matar o futebol, e o Brasil terá que tomar medidas semelhantes, caso contrário vai morrer.

E vamos vender nossos jogadores mais baratos para a Europa mesmo. Eu, pessoalmente, acho ótimo!!! E vamos pagar menos para os jogadores dos grandes clubes daqui como consequência. Somente os clubes muito ricos poderão continuar com salários estratorféricos, e por isso medidas aqui deverão acontecer no mesmo sentido. Não vejo alternativa; o futebol dentro do capitalismo deixa claro que, se não houver esse fairplay econômico, haverá um aumento da concentração de poder que produzirá a fuga ainda maior de torcedores.

Um fato bizarro ocorreu há poucos dias no jogo do Borussia Dortmund, quando havia a possibidade de ser campeão após 10 anos de vitórias do seu adversário, o Bayern de Munique. Não deu; perderam de novo, mas foi o aplauso da sua torcida no final do jogo o que mais nos chocou, deixando claro que, para os desanimados torcedores de Dortmund, perder para o Bayern está “de boa”, já que é impossível competir com eles. Os clubes rivais históricos já se conformam com a derrota para o adversário mais rico. Não há mais indignação.

A disparidade econômica acabou com o campeonato alemão. O mesmo ocorreu com o Espanhol, onde sabemos que apenas dois times disputam. Na França o PSG empilhou campeonatos nacionais. No Brasil o dinheiro de Palmeiras e Flamengo podem produzir a “espanholização” dos nossos campeonatos, além de soterrar em dívidas times como Vasco da Gama, Coritiba, Atlético e Cruzeiro, etc, a quem só resta se atirar nos braços das SAFs e vender-se ao capitalismo.

Isto já está ocorrendo com o Brasil, e vai piorar se o atual desnível se cristalizar. Se não houver algum tipo de bloqueio dessa disparidade o futebol vai morrer. Sim, pois ninguém vai se interessar por assistir um espetáculo de disputa onde não há emoção alguma, pois o desnível financeiro destrói toda a isonomia.

E mais: reduzir o padrão salarial dos jogadores e demais participantes se tornará mandatório. É impossível manter essa fantasia, mas a própria crise do capitalismo internacional vai dar fim à orgia de salários do futebol. Não há como manter esse universo paralelo…

E isso não é uma profecia funesta; o futebol já está ficando sem graça. Os mesmos clubes ganham tudo. O poder econômico do Brasil diante dos parceiros da América Latina já nos dá há anos disputas finais de Libertadores apenas entre clubes brasileiros. Futebol está dominado pelo poder econômico, que é quem produz essa crise. Os clubes de bilionários, sejam sheiks ou mafiosos do leste europeu, produziram este tipo de desnível na Europa, mas o fenômeno está chegando aqui à galope. As torcidas, ainda intoxicadas por este tipo de vandalismo econômico, ainda não perceberam o quanto isso é destrutivo para a paixão do futebol.

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Zumbi dos Palmares

No último fim de semana das minhas férias fui visitar com a família um lugar que há muitos anos desejava conhecer. Como estamos há alguns dias em Maceió resolvi pegar o carro e visitar a Serra da Barriga, onde se situa o famoso Quilombo dos Palmares.

A viagem se faz pela BR 104 até a cidade de União dos Palmares, bem no sopé da montanha, e não leva mais do que 90 minutos. A cidade é simples e pobre como centenas de outras pequenas cidades nordestinas. O comércio de roupas, as lojas de celular, a tímida estátua de Zumbi dos Palmares na saída da cidade, o carro de som gritando promoções pelas ruas e a gente simpática e atenciosa das Alagoas. Saindo da cidade, enfrentamos uma subida um tanto íngreme por uma estrada de paralelepípedos, para para chegar ao local onde, até os umbrais do século XVIII, floresceu um território de homens livres.

Durante a subida exercitei minha imaginação visualizando o cenário que lá existia há 350 anos. Provavelmente a estrada que agora usávamos fora construída por sobre velhas picadas criadas pelos próprios indígenas nativos e pelos negros que chegaram depois. Tentei imaginar a emoção de um negro fugido que se aproximava da terra prometida, a comunidade mítica de negros libertos, livres da opressão da escravidão.

Enquanto o Quilombo de Palmares existiu houve inúmeras tentativas de destruí-lo, todas rechaçadas pela bravura dos guerreiros e pela posição estratégica onde se situa o Quilombo. Do alto da Serra da Barriga as atalaias vislumbram toda a planície abaixo, permitindo que se saiba com antecedência a chegada de forasteiros. Palmares foi o resultado de uma junção de “mocambos”, que eram pequenos assentamentos de escravos fugidos desde o início do comércio transatlântico de africanos para o trabalho na lavoura. Em Palmares os mocambos formavam uma “confederação quilombola” que cobria um território razoavelmente grande onde hoje é o estado de Alagoas. Alguns dos mocambos que formavam Palmares eram Aqualtune, Andalaquituche, Subupira e Cerca Real do Macaco (ou apenas mocambo do Macaco). O mais importante era este último, o mocambo Cerca Real do Macaco, que era o centro político de Palmares, onde residia o rei do quilombo e, por ser a capital, era o mais populoso, com mais de 6 mil habitantes.

Os Reis Ganga Zumba e Zumbi, assim como Dandara, a esposa de Zumbi, são personagens importantíssimos da história primeira do Brasil após a chegada dos portugueses. Suas façanhas se mantiveram nas lendas contadas sobre o heroísmo, a resistência, a luta pela liberdade e a natureza indômita de Zumbi. Somente em 1694, passados quase 100 anos da sua provável criação, o Quilombo dos Palmares foi tomado e destruído pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, e apenas porque junto com seus milhares de soldados trouxeram canhões, que foram utilizados para derrubar as paliçadas. Após o ataque que destruiu o Quilombo, Zumbi teria fugido com um grupo de soldados de elite, mas foi morto no ano seguinte numa emboscada dos portugueses. O Quilombo foi totalmente destruído e não sobrou nenhuma construção no local, mas foi feita uma reconstituição da arquitetura da época para termos uma ideia de como eram as edificações onde viviam os quilombolas daquele período.

A visita me deixou muito impactado, em especial por perceber que um personagem tão importante como este não recebeu ainda do Brasil a merecida homenagem. Zumbi encarna muito mais do que a luta pelos negros; ele representa a luta pelos ideais de liberdade e autonomia que todos nós carregamos no peito. Apesar de Zumbi ter o status de “herói nacional” o Quilombo não recebe do Brasil o tanto de reverência que merece. Deveria haver um gigantesco monumento à cultura negra, junto a um museu sobre a escravidão, onde seria possível ouvir as histórias heroicas dos quilombolas traduzidas para vários idiomas, além de relatos sobre a organização política do local junto a um memorial dedicado a este personagem, que foi um dos maiores heróis da história do Brasil. Infelizmente pouco existe no local a espelhar a grandeza de sua memória. Espero que um dia Zumbi dos Palmares seja reconhecido como um dos maiores heróis desta nação.

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Escuta

Uma consulta médica é, em essência, um encontro entre pessoas. Uma delas vai relatar seu sofrimento, falando o dialeto de suas dores, da forma mais precisa que puder, enquanto a outra, através do saber formal ou informal adquirido, vai procurar traduzir o que escutou para o seu conceito de saúde e doença. Assim, os médicos filtram o que os pacientes relatam, capturando tão somente o que faz sentido para sua compreensão das doenças. Ou seja, ele escolhe apenas o que pode entender, aquilo que se ajusta na concepção de enfermidade que faz uso.

Se alguém disser ao médico que tem tristeza ao anoitecer isso será provavelmente inútil; esta junção pouco auxilia na maneira como um profissional vai entender sua doença. Caso venha a lhe contar que sua náusea melhora pela manhã ou quando faz frio, também esse relato não será de utilidade para a imensa maioria dos profissionais. Se disser que sua ansiedade piora em espaços abertos, poucos verão nesse sintoma um indicador importante. Os médicos apenas compreendem o seu idioma, e forçam seus pacientes para que se comuniquem com a língua que entendem.

Por outro lado, a história do paciente é sempre rica de elementos raros, estranhos, peculiares – e essencialmente subjetivos. Somos um manancial infinito de histórias, sentimentos, memórias e significados e todos estes elementos são estruturantes de nossa vida, assim como dos sintomas que usamos na busca por equilíbrio. A propensão da medicina ocidental, por seu turno, é sempre produzir generalizações, tentando entender aquilo que nos configura enquanto humanos, o que nos une e produz similitudes. Desta forma, as histórias que falam da nossa individuação, o que nos torna únicos e irreprodutíveis, são pouco úteis aos ouvidos de quem não deseja escutar a linguagem pessoal da dor, além de atrapalharem a perspectiva homogeneizante da biomedicina tecnocrática.

Em verdade, o conjunto de sintomas que o paciente traz ao seu médico é sua verdadeira riqueza. Como jóias despejadas na frente do terapeuta, elas revelam aquilo que nem mesmo o paciente mais atento é capaz de perceber. São suas melhores ferramentas, construídas ao longo da vida pela herança, as quais serão usadas para produzir a homeostase que todos buscam. Todo sintoma, por mais danoso e sofrido que seja, carrega essa finalidade última, e por isso são sinalizadores criptografados da estrutura mais profunda e íntima do sujeito.

Saber decodificar estes sinais, através da escuta livre e isenta de preconceitos, é a tarefa primordial de qualquer terapeuta.

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O nome da dor

Dr, o que eu tenho?

Vejo com frequência uma busca insana de rotular o mal de quem sofre, como se a simples nomeação de um grupo de sintomas pudesse aliviar o sofrimento de quem carrega uma dor. Chamar pelo nome, dizendo neurose, mania, angústia, ansiedade, narcisismo, psicopatia, etc teria a capacidade de desvelar o segredo da enfermidade, arrancando a máscara de subjetividade que carregamos e mostrando a face oculta da patologia. Pois eu vejo o oposto; chamamos pela patologia nossas dores, rotulando os sujeitos, tão somente para colocar sobre eles um disfarce que os deixe uniformes, escondendo a realidade gritante de que todo sujeito constrói seus próprios sintomas de acordo com suas necessidades únicas e intransferíveis.

Wolfgang Spohr, “Ich weiß nicht genau, wo ich bin” (Não sei exatamente onde estou”), Ed. Frankfurt Press, pág. 135

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