Minha tese, há muitos anos expressa, é de que a humanização do nascimento precisa “vazar” dos espaços conceituais que a contém. Necessitamos falar para outras plateias e públicos. Temos que expandir os horizontes do nosso discurso, oferecendo “molho de espaguete pedaçudo” para os consumidores que ainda não se deram conta da existência dessa iguaria.
Tive uma experiência interessante em 2012: fui convidado a falar no CISQ – Congresso Internacional de Saúde Quântica, onde os palestrantes eram da área da física quântica (Dr. Amit Goswami – What the F* – estava lá), psicologia, fitoterapia, aromaterapia, homeopatia, entre outras áreas da saúde suplementar. Nesse congresso falei de partos num contexto mais abrangente, numa palestra chamada “Colapsos”, onde apresento uma visão ecológica do nascimento, mostrando a importância de tratarmos da questão em conjunto, com toda a sociedade, pois o extermínio da habilidade de atender o nascimento é seguida da natural extinção da forma humana de parir. Depois disso, o próprio gestar feminino se tornará uma exceção, fazendo com que o último laço que mantemos com a nossa espécie se perca. Será o surgimento do “Homo sapiens technologicus”, mas nada nos garante que ele será melhor do que a espécie que vem evoluindo nos últimos 5 milhões de anos.
A resposta do público foi muito interessante. Pessoas que nunca haviam presenciado partos humanizados, ou escutado nossos pontos de vista, ficaram encantadas com essas ideias. Fui procurado por vários profissionais, de diferentes áreas, para conversar sobre o movimento de humanização do nascimento. Havia uma viva curiosidade sobre um tema ao mesmo tempo fascinante e desconhecido do público em geral. Percebi que existe um lapso, um espaço gigantesco de desinformação sobre o nascimento. Grande parte dessas pessoas avaliam o nascimento pela mídia televisiva, pelas imagens mundanas de gritarias, xingamentos, dor, isolamento e sofrimento. Sobre essa terra fértil em informações distorcidas é que se aplica a semente da cesariana dignificadora, limpa, esterilizada, pura e tecnológica.
Costumo brincar que a sociedade (e não somente os médicos, que são apenas os porta-vozes de valores culturais) nos apresenta duas opções: A e C. A primeira é um parto violento, com elementos de objetualização e coisificação do corpo feminino, container inconfiável de um produto social – o bebê. Nessa opção usamos técnicas e artifícios há muito condenados pela boa prática médica, comprovadamente inúteis e até perigosos quando usados de rotina: episiotomias, kristelleres, enemas, tricotomias, jejum forçado e isolamento. Aí teremos os partos de “novela”, sempre violentos, sofridos, dramáticos e agressivos.
A opção “C” é a cesariana, onde a data e a hora são escolhidas, assim como a conjunção astral, o local e a conveniência de todos, principalmente da equipe médica. Nessa opção não haverá gritos, impaciência, demoras, espera, angústia, medos e nem tampouco os rituais milenarmente conhecidos, como esperar as contrações ou a ruptura da bolsa, ligar para o profissional, ir para o hospital, aguardar a dilatação, etc. Não, nada disso se faz necessário. Ultrapassamos todos os rituais, todos os preparativos, toda a formatação psíquica milenarmente construída e retiramos um bebê que dormitava no claustro materno sem qualquer notificação de “aviso prévio”. A praticidade levada às últimas consequências. Um dos principais problemas é que a ritualização de nossas ações é uma das marcas mais importantes e essenciais da cultura. Aliás, não há cultura sem rituais, pois que eles desempenham um papel fundamental no desenvolvimento humano. Eles “mediam processos psicossociais reestabelecendo a coesão do grupo através da resolução de conflitos, mantendo a continuidade de grupo diante das perdas e adversidades e modificando o comportamento individual e grupal para criar coesão e harmonia” (Robbie Davis-Floyd & Charles Laughlin – The Power of Ritual, a ser lançado em breve).
Entretanto, continuamos a ver sonegada a opção “B”. Ela se esconde entre os gritos que nos vendem como inevitáveis no parto “normal” e as luzes ofuscantes que nos dizem serem imprescindíveis na cesariana. A opção “B” é aquela em que os valores da tecnologia não são desprezados, mas que se encontram sob o domínio do bom senso; cuja utilização só se faz quando os riscos inerentes de qualquer intervenção são menores do que as patologias encontradas no processo. Na opção “B”, temos os partos humanizados, que se sustentam numa tríade conceitual: o protagonismo restituído à mulher, a visão integrativa bio-psico-social-espiritual do evento e a vinculação visceral com a Medicina Baseada em Evidências. A opção “B”, síntese das teses digladiantes, continua a ser vista como um luxo, uma fantasia ou uma impossibilidade. Entretanto, essa opção é a única que nos oferece uma esperança de congregar o melhor de dois mundos: de um lado o respeito à nossa linhagem mamífera e aos processos psicológicos e sociais que construíram a humanidade como ela é, e do outro a tecnologia como ferramenta essencial para tratar dos casos que se afastam da trilha da fisiologia e se aproximam do caminho tortuoso da patologia.
A supressão dos rituais em nossa sociedade pós-moderna tem como consequência possível – ou provável – a desestabilização dos valores sociais que a sustentavam. Destruir os rituais e processos psicológicos e sociais adaptativos criados para o nascimento de uma criança pode enfraquecer as estruturas de segurança elaboradas para o fortalecimento da relação amorosa entre a mãe e seu bebê altricial. Se nós sabemos que a estrutura psicológica de uma criança se assenta sobre o afeto recebido, na configuração edipiana primordial, como negligenciar estas questões no nascimento, onde tais elementos aparecem aos nossos olhos de forma crua, nítida e fulgurante? Colocar entraves nessa etapa da formação do psiquismo pode ter efeitos desastrosos, mesmo que eles se produzam de forma lenta, dissimulada e insidiosa.
Que tipo de sociedade teremos quando nenhum bebê for trazido ao mundo pelo esforço de sua mãe? Que humanidade será esta em que nenhuma dor for sentida, onde anestesiaremos qualquer dissabor, onde nenhuma obra humana será regada pelo suor e pelas lágrimas de quem a produziu? Humanizar o nascimento pode ser, para além das questões médicas e psicológicas, uma tentativa de salvar a humanidade de sua lenta desintegração…