Quando eu fiz residência em um hospital escola da minha cidade – há 30 anos – era do conhecimento de todos, desde quando você entrava no estágio do sexto ano de medicina, que o departamento era dividido ao meio. Havia dois “clãs”, dois grupos distintos de professores que historicamente se digladiavam e disputavam o poder de forma explícita e as vezes agressiva. O grupo que chamarei de “A” era o mais novo e o mais conectado com evidências e estudos, enquanto o grupo “B” era mais tradicional e conservador.
A chefia do serviço estava com o grupo “A”, mas sabíamos de processos judiciais que um grupo movia contra o outro pela primazia nas publicações. Havia um jovem e ambicioso professor do grupo “A” que contava fofocas altamente comprometedoras de professores do outro grupo, e fazia isso na base da “camaradagem”, durante um plantão, um cafezinho no bar do hospital ou uma conversa privada. Eu achava aquilo estranho e antiético, mas era difícil se posicionar quando existia um valor incomensurável depositado nessas figuras de autoridade. Preceptores de residência eram, e ainda o são hoje, figuras que concentravam um enorme poder.
Não havia escrúpulos. Era uma fogueira de vaidades e havia a todo o momento um convite para tomar partido. Se você era de um lado não podia ser do outro.
Certa feita fui testemunha de um fato curioso no plantão, que me fez repensar toda a minha profissão e o meu destino após a residência. Uma paciente acompanhada de sua mãe procura um professor do clã “B” e lhe faz um estranho pedido. Ele havia atendido o seu próprio nascimento há 20 anos e agora, grávida, gostaria que ele a atendesse, sendo o responsável pela assistência das duas gerações. Como era um atendimento privado o professor aceitou sem pestanejar.
O que a o paciente não sabia é que este professor nunca foi obstetra. Havia atendido o parto de sua mãe logo após se formar, mas imediatamente depois se dedicou à ginecologia e infertilidade. Não atendia um parto há no mínimo duas décadas.
No dia do parto a paciente internou durante o meu plantão, e só por isso soube de todos os detalhes. Avisei o professor que se limitou a dizer por telefone: “fiquem atendendo aí e me liguem quando ameaçar coroar”. Foi o que fizemos. Quando o parto se aproximava chamamos o professor, que efetivamente chegou quando o bebê despontava no introito vaginal.
O parto foi uma tragicomédia. O professor havia esquecido como segurar um bebê, e este escorregou de suas mãos. Para que não caísse aparou com a perna. Sem saber o que fazer entregou o bebê ao pediatra, mas se esqueceu de cortar o cordão, e quase o bebê vai ao chão de novo. Nós, atônitos, assistíamos constrangidos. No final, “entre mortos e feridos salvaram-se todos”, mas rolou Kristelller, episiotomia Transamazônica, corte prematuro do cordão, etc. Violência e despreparo.
Contei para a nossa turma que estava no plantão o que havíamos testemunhado e achamos graça, apesar do absurdo do atendimento.
Muda a cena para uns meses depois e durante um churrasco de confraternização dos residentes com professores do Clã “A” o jovem professor carreirista pede que eu vá até a sua mesa. Quando cheguei lá ele disse para todos:
– Conte para nós o parto que o Dr Nosferatu atendeu no seu plantão.
“Nosferatu” era como chamava o professor inimigo para nós. Havia chegado aos seus ouvidos o parto bizarro atendido por um professor do Clã “B”, e que eu tinha relatado aos colegas do plantão. Sem saber o que dizer contei as peripécias do parto para o público de colegas ávidos por uma fofoca.
Terminei a história e voltei para a minha mesa. Imediatamente me dei conta que eu havia sido usado como massa de manobra na luta das facções adversárias. O professor carreirista me usou para difamar um inimigo, que em verdade era um colega. Fui apenas “bucha de canhão”.
Tive uma sensação de culpa muito forte por participar daquela cena. Percebi também que não aceitaria viver minha vida profissional envolvido nas labaredas de vaidade do mundo acadêmico. Não queria pertencer a nenhum grupo ou facção, mas tudo me mostrava que não havia outro modo de sobreviver.
O professor carreirista conta fofocas até hoje, e se mantém poderoso. O professor do grupo “B” já faleceu e eu, naquela churrascaria, fechei as portas da academia para mim para nunca mais querer abrir.
Eu não vejo esses personagens como desumanos ou perversos. Até no movimento de humanização do nascimento existem “clusters”, grupos que rivalizam, ressentimentos antigos e mágoas estimuladas a crescer pelo único adubo legitimamente humano: a vaidade.
Logo após minha saída da residência percebi que a maioria dos meus colegas tinha o sonho de trabalhar na Universidade. A tentação era muito grande pois tudo o que víamos era uma enorme concentração de poder nos professores, e todos os benefícios de prestígio social daí advindos. Minha dúvida era: como evitar o fato de que a motivação inevitavelmente se chocaria com a realidade.
A vida de um professor da universidade é ensinar, atualizar-se, dar aulas, acompanhar alunos e fazer pesquisa, mas estes aspectos eram os MENOS importantes para a seleção. É como se você fizesse um concurso para “body building” seduzido pelos músculos lustrosos dos Arnolds da vida e ao ser aprovado percebesse que precisava levantar peso todos os dias.
Talvez por esta razão específica da minha vivência, minha formação acadêmica foi pobre. Meus professores não tinham nenhum interesse – quanto menos talento – para o ensino. Usavam a universidade como insígnias de valor e poder, e não como ferramentas de transformação social. A seleção para estes cargos era feita de forma política e não levava em consideração a capacidade pedagógica ou o próprio desejo de ensinar.
Por outro lado o surgimento nos últimos anos de alguns professores de obstetrícia ligados às correntes de humanização do nascimento é a prova de que existe a possibilidade de reverter o processo por dentro.
Se é possível produzir um papa um pouco mais aberto como Francisco emergido das entranhas do Vaticano, a Medicina também pode produzir – mesmo que lentamente – seus renovadores.
Quem viver, verá.