Arquivo do mês: setembro 2013

Ciência e Tecnologia no Nascimento

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Texto de Aron C. Sousa, MD, e Alice Dreger, PhD

A medicina não é uma ciência ; atendimento clínico comum não é (e não deve) ser a experimentação com o objetivo de descobrir princípios gerais. Mas o dever profissional de um médico contemporâneo inclui uma orientação para a ciência, uma vontade de consultar, para conhecer e empregar adequadamente evidências disponíveis na prática da medicina. Sackett define a prática baseada em evidências como”a integração da melhor evidência de pesquisa com experiência clínica e valores do paciente[1]. Para utilizar adequadamente as evidências os médicos precisam compartilhar provas com os pacientes para que eles possam fazer escolhas bem- informadas sobre os seus cuidados. Evidência é eticamente essencial ao consentimento informado, e emprego de provas é um dever ético do médico.

No entanto, em muitos hospitais dos Estados Unidos hoje a gestão do trabalho de parto não parece ser baseada em evidências. Muitos obstetras bem-intencionados ainda empregam intervenções tecnológicas que não estão cientificamente embasadas ou que contrariam a evidência do que é mais seguro para a mãe e a criança. Eles fazem isso não porque uma mulher grávida bem informada lhes indicou que seus valores contradizem o que é cientificamente suportado, uma situação que poderia justificar a não utilização de evidências. Não, isso é feito por tradição, por medo, e pela suposição (falsa) de que fazer algo geralmente é melhor do que não fazer nada [2]. Estes motivadores problemáticos não são exclusivos de obstetrícia ou da ginecologia, mas parecem ser particularmente resistentes às evidências, talvez por causa do clima emocional em torno de mulheres grávidas e seus bebês.

Aqui estão apenas alguns exemplos de disjunções comuns entre evidência e prática em obstetrícia:

a) Embora ainda vejamos monitoramento fetal contínuo externo utilizado em muitas gestações de baixo risco, “como uma prática rotineira [ele] não diminui a morbidade ou mortalidade neonatal em comparação com ausculta intermitente… Apesar da ausência de evidências de ensaios clínicos, é prática comum na maioria das maternidades colocar eletrodos internos no couro cabeludo e cateteres de pressão intrauterina quando há preocupação com o bem-estar fetal demonstrado em monitoramento externo” [3].

b) Alguns obstetras empregam rotineiramente episiotomia ainda que “não é recomendada devido ao aumento das taxas de  trauma perineal de terceiro e quarto graus e nenhuma evidência que apoie a redução de prolapso posterior e/ou incontinência” [3].

c) O uso de uma doula treinada (pessoa que oferece suporte durante o trabalho de parto) tem se demonstrado repetidamente capaz de aumentar a probabilidade de parto vaginal espontâneo, de encurtar o trabalho de parto, reduzir as taxas de cesariana, e para reduzir o uso de analgesia intraparto [3]. Apesar do fato de que esta intervenção é extremamente eficaz e segura, apenas poucos obstetras americanos prescrevem doulas. (DONA Internacional “a mais antiga, maior e mais respeitada associação de doulas no mundo” tem 7.000 membros [4], e há cerca de 10 mil nascimentos por dia nos EUA[5])

d) Analgesia epidural aumenta o risco de hipotensão materna, febre materna e cesariana por sofrimento fetal[6]. Analgesias peridurais também aumentam as probabilidades de uma criança nascer com febre, o que por sua vez pode levar a mais intervenções e, portanto, mais riscos [3]. No entanto, poucas mulheres que “escolhem” analgesias epidurais parecem compreender, ou mesmo terem sido informadas, sobre os riscos de sua utilização e nem recebem informações sobre os benefícios do tratamento não farmacológico da dor, como por exemplo, o uso de doulas.

Nós poderíamos continuar a citar indefinidamente intervenções médicas empregadas rotineiramente que não são suportadas pela evidência, quando usadas em gestações de baixo risco. Por que esse padrão persiste? Presumivelmente porque muitas pressões de ordem econômica, cultural e psicológica continuam a impulsionar os médicos a intervir. Parte do problema pode ser terminológica. Partos de baixo de intervenção são muitas vezes rotulados como”naturais”, algo que soa mais tolamente romântico do que medicamente sensato. Por esta razão, acreditamos que seria melhor pensar em parto não em termos de “natural versus medicina”, mas sim ”científico versus não científico.”

Nós oferecemos nossa própria experiência para ilustrar as diferenças entre a tecnologia e a ciência aplicadas ao nascimento. Quando um de nós (AD) tornou-se “engravidado” pelo outro (ACS), pela segunda vez, nós consultamos a Biblioteca Cochrane para orientação. O resultado que valorizávamos era a segurança para mãe e filho e, assim, queríamos saber (como a maioria das mulheres grávidas e obstetras) quais as intervenções que aumentariam ou diminuiriam a probabilidade desse resultado.

Uma gravidez anterior havia resultado em um aborto espontâneo com sete semanas; a enfermeira do nosso obstetra insistiu que, se AD tivesse consultado o obstetra no início da gravidez, este aborto poderia ter sido evitado. Desnecessário dizer que, um aborto espontâneo, em uma mulher de baixo risco e no início da gravidez, não pode ser prevenido por um obstetra; abortos precoces geralmente são devido a anomalias cromossômicas e, portanto, não são evitáveis [7]. A atitude não científica desta enfermeira – e do consultório deste obstetra em geral – nos levou a buscar uma parteira (uma midwife, que é uma profissional de nível superior que atende partos – NT) que iria praticar uma medicina baseada em evidências para a nossa segunda gravidez. A Biblioteca Cochrane sugere que o uso de uma parteira não aumenta o risco de danos e pode inclusive diminuí-lo [8]. Curiosamente, um estudo de coorte retrospectivo de cerca de 4.800 partos de baixo risco também demonstrou que mulheres atendidas por médicos de família tinham menor risco de terem seus trabalhos induzidos por oxitocina, menor chance de terem correção de dinâmica e estavam menos propensas a receber anestesia epidural, episiotomia, ou cesarianas do que aquelas atendidas por obstetras [3].

Com a nossa parteira, seguimos as evidências: durante a gravidez, urina materna, pressão arterial e crescimento fetal e apresentação foram regularmente verificados para monitorar e excluir uma gravidez de alto risco. Optamos por não realizar um ultrassom pré-natal porque sabidamente este exame não melhoraria o resultado materno ou fetal em nossa gravidez de baixo risco [9]. Durante o trabalho de parto utilizamos uma doula. A parteira realizou monitorização fetal intermitente. Recusamos todas as intervenções que aumentam o risco, sem melhorar os resultados, incluindo analgésicos médicos (por exemplo, epidural) e episiotomia.

Quando o líquido amniótico mostrou mecônio fino, por vezes assumido dentro de obstetrícia como um potencial sinal de sofrimento fetal e uma causa potencial de pneumonia após o nascimento, nossa parteira foi forçada, pela política do hospital, a realizar a monitorização fetal contínua, uma intervenção que não tinha embasamento científico, além de ser desconfortável e restritiva. A apresentação de mecônio também significou que a nossa parteira era obrigada a ter pediatras prontos para aspirar a traqueia do bebê após o nascimento. Em teoria, esta ação seria para prevenir a pneumonia. Poucos meses depois, soubemos que um ensaio clínico randomizado mostrou que a limpeza da traqueia através de entubação, o que aconteceu para o nosso bebê, não melhora os resultados para uma criança vigorosa como a nossa[10]. (No ensaio clínico, as crianças ”vigorosas” foram definidas como tendo uma frequência cardíaca acima de 100 batimentos por minuto, respiração espontânea, e bom tônus muscular 15 segundos após o parto. [10]) Esta, então, foi mais uma intervenção que poderia aumentar o risco sem oferecer qualquer benefício.

Apesar disso, nosso resultado desejado foi alcançado: a mãe e a criança não sofreram danos maiores do que uma pequena laceração perineal materna, que as evidências sugerem que se curam melhor do que um corte cirúrgico [11]. Embora o nosso objetivo principal fosse a segurança, nós dois estávamos satisfeitos com a experiência do nascimento, com o respeito aumentado de ACS para AD, não só por sua atitude científica mas também pela sua capacidade de parir sem medicação, quando normalmente ela lamenta-se sobre a menor dor de cabeça.

A ciência por trás da vigilância do “hands-on” e do manejo do “hands- off” deste nascimento torna impossível pensar nele como sendo ”natural”. Este nascimento foi muito mais científico e de fato mais ético do que muitos nos Estados Unidos, porque todos os participantes (exceto o bebê) foram plenamente informados dos fatos e tomaram decisões baseadas na “integração da melhor evidência de pesquisa com experiência clínica e valores do paciente” (exceto quando a política do hospital nos impediu de fazê-lo). As decisões tomadas respeitaram o paciente e seu bebê, através do respeito às evidências.

Um estudante de medicina ao testemunhar o manejo não científico de uma gravidez ou trabalho de parto em um ambiente clínico pode não ter a capacidade de fazer muito mais por uma mulher apanhada em um sistema de má prática, dadas as diferenças de poder, de mitos em torno da gravidez e nascimento, e as restrições de tempo. Entretanto, os alunos podem consultar a literatura e pedir aos seus preceptores que respondam questões razoáveis sobre as evidências científicas. Eles podem – e de fato devem – trazer a literatura para as discussões com o pessoal médico e os pacientes. Eles também podem aprender observando a cascata de riscos que resultam de uma única intervenção sem embasamento nas evidências.

Eles poderão, assim, aplicar essa compreensão para a sua própria prática, não importando qual seja a especialidade que eles acabarão seguindo. William Osler, o fundador canadense da medicina americana, um dia nos disse a citação famosa: ”Aquele que sabe sífilis sabe medicina.” Gostaríamos de acrescentar que, em nossos dias, aquele que conhece parto e nascimento conhece ética e medicina baseada em evidências.

Poucas experiências antes da escola médica preparam uma pessoa para o que significa agir de acordo com o princípio ”Primeiro, não fazer mal.” Na maioria das áreas da vida, a ação é mais valorizada do que não ação. No entanto, o nascimento oferece uma oportunidade para apreciar a importância da humildade clínica e de viver com o lema: ”Não apenas faça alguma coisa – mantenha-se lá”.  Ser um bom médico significa que se deve ficar lá, e só agir quando se tenha a certeza de que esta intervenção é melhor para o paciente, mesmo quando isso possa ser o mais angustiante para sua (do médico) própria psique.

Aron C. Sousa, MD, is senior associate dean for academic affairs and an associate professor of medicine at Michigan State University’s College of Human Medicine. His scholarly interests include evidence-based medicine and outcomes-based medical education.

Alice Dreger, PhD, is a professor of clinical medical humanities and bioethics at Northwestern University Feinberg School of Medicine in Chicago and a writer for the health section of The Atlantic. Her scholarship focuses on scientific controversies, human sexuality, and the medical treatment of people whose bodies and behaviors challenge dominant social norms.

Referências

1. Sackett DL, ed. Evidence-Based Medicine: How to Practice and Teach It. 2nd ed. Philadelphia: Churchill Livingstone, 2000:1.
2. Brody H, Thompson JR. The maximin strategy in modern obstetrics. J Fam Pract. 1981;12(6):977-986.
3. Greenberg GM. Management of labor. Essential Evidence Plus. http://www.essentialevidenceplus.com/ content/eee/471. Accessed July 30, 2013.
4. DONA International web site. http://www.dona.org/. Accessed July 30, 2013.
5. Martin JA, Hamilton BE, Ventura SJ, et al. Births: final data for 2011. Nat Vital Stat Rep. 2013;62(1). http://www.cdc.gov/nchs/data/nvsr /nvsr62/nvsr62_01.pdf. Accessed July 30, 2013.
6. Anim-Somuah M, Smyth RM, Jones L. Epidural versus non-epidural or no analgesia in labour. Cochrane Database Syst Rev. 2011;(12):CD000331.
7. National Health Service. Miscarriage – causes. http://www.nhs.uk/Conditions/Miscarriage/ Pages/Causes.aspx. Accessed July 30, 2013.
8. Hatem M, Sandall J, Devane D, Soltani H, Gates S. Midwife-led versus other models of care for childbearing women. Cochrane Database Syst Rev. 2008;(4):CD004667.
9. Ewigman BG, Crane JP, Frigoletto FD, LeFevre ML, Bain RP, McNellis D. Effect of prenatal ultrasound screening on perinatal outcome. N Engl J Med. 1993;329(12):821-827.
10. Wiswell TE, Gannon CM, Jacob J, et al. Delivery room management of the apparently vigorous meconium-stained neonate: results of the multicenter, international collaborative trial. Pediatrics. 2000;105(1 Pt 1):1-7.
11. MedlinePlus. Episiotomy. http://www.nlm.nih.gov/medlineplus /ency/patientinstructions/000482.htm. Accessed July 30, 2013.
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Portas Fechadas

Bisturi

Paciente adentra no meu consultório junto com a mãe. Antes de falar rompe em prantos. A mãe, amorosamente, lhe diz “Não precisa ficar nervosa, acalme-se“, ao que eu explico “Podes chorar. Não sei o que tens, mas deves ter tuas razões“. Ela me explica que eu sou o sétimo médico em que ela vai a procura de um parto normal. Sim, apenas um parto normal. Ela não queria um parto domiciliar, nem com luzes coloridas, velas perfumadas ou um tocador de cítara. Não, apenas que seu filho “saísse por onde entrou”, como ela mesma disse.

As outras médicas (sim, todas mulheres) simplesmente se negaram a atender um parto normal. Menos mal que ela tenha evitado os “falsos vaginalistas“, aqueles que dizem: “Olha, até faço parto normal, desde que Vênus esteja alinhada com Saturno num ângulo de 37 graus, num céu com boa visibilidade. Ah, para isso não pode estar chovendo, porque sair de casa com chuva ninguém merece, né?

Seis mulheres se negaram…

Fui obrigado a dizer: “Nenhuma delas foi forte suficiente para encarar atender o teu parto normal, né?”. Uma piada dura, mas que carrega um questionamento sério e importante. Por que logo as mulheres são as que mais disseminam a misoginia da obstetrícia contemporânea? Elas é que deveriam ser a mudança, mas parece que a força da corporação é mais forte do que a sua natural feminilidade. No embate entre o masculino e o feminino, aquele se sobrepõe a esta. Triste isso…

Seis mulheres que fecharam a porta…

E ninguém diz nada sobre este tipo de violência. Ninguém, além de nós, se escandaliza. Eu pergunto: onde estão os defensores que lutam pela mulher e que as defendem contra as violências cotidianas? Acaso este tipo de agressão à autonomia não merece ser combatido por este movimento? Onde está o Ministério Público, que silencia diante do fechar de portas? E os conselhos profissionais, porque não se indignam diante de profissionais que expõe voluntariamente suas pacientes a um risco reconhecidamente aumentado?

Ah, eu já ia esquecendo. Esta pobre moça veio aqui porque viu o filme O Renascimento do Parto. Ela e o marido saíram do cinema determinados a receber seu filho nesse mundo como cidadão, e não como objeto. É isso. É assim que será a revolução silenciosa que faremos. Uma mulher de cada vez. Um nascimento digno e respeitoso espalhando uma onda de afeto e carinho para todos que puderem sentir, e se permitam modificar.

Essa moça estava totalmente desesperançada. O marido nem veio à consulta, mas as razões eram boas: “Porque vou me frustrar de novo? Pergunte a ele se ele aceita atender um parto em fevereiro. Se ele não te cortar as esperanças de imediato, eu vou na próxima consulta“. A mãe foi uma boa ajuda, pois respeitava e acolhia os desejos da filha. As desculpas para as negativas de parto seriam cômicas, não fossem trágicas e dramáticas. Você tem a “pelve infantil”, disse uma. Como assim?, pergunto. “Tem que levar o diploma da bacia para poder ter parto?” pensei. Outra pérola: ” Você quer mesmo passar por toda essa dor?“. A paciente ainda tentou “explicar” para a médica a respeito das dores de uma cesariana, mas percebeu que era inútil e sem sentido. Outra médica fez algo incrível. Quando ela entrou na sala, ainda antes de se sentar, a médica disparou: “Olha, se você está procurando parto normal já vou avisando que só faço cesariana. Não tenho tempo a perder em trabalhos de parto. Só realizo cesarianas com hora marcada e, se quiser, tenho horário para o dia 20. Caso não queira, peço que procure outro médico“. Assim mesmo, na lata. A gente até fica feliz por não ter sido enrolado, mas é o mesmo tipo de felicidade que temos ao sermos assaltado sem levar uma coronhada. “Pelo menos não bateu“, ou a já famosa “estupra mas não mata“.

Eu não tenho muitas restrições à livre expressão das preferências dos profissionais. Prefiro até que os médicos sejam sinceros e não enrolem pacientes até 40 semanas, quando então se inicia a catilinária do pouco líquido, cordões enrolados, falta de encaixe, bacias “infantis”, pente fechado, colo grosso, etc. Por outro lado, o que percebo é o fechamento do cerco: a incompetência e o desinteresse pela fisiologia do nascimento assumem proporções inaceitáveis. Não há mais nenhum pudor, vergonha ou receio de expor de forma desabrida a rejeição ao parto normal. Os partos são repudiados como um modelo antiquado de telefone celular.

O problema é o MODELO, e isso não vou cansar de repetir. Estão errados os que pensam que eu considero essas médicas as “culpadas” do processo, as vilãs. Não!!!! Elas também são vítimas de uma sociedade que entrega a responsabilidade de atender partos para pessoas completamente desinteressadas e despreparadas para esta atividade sutil e delicada. Elas são formadas por 9 longos anos na escola médica para intervir no nascimento, e na hora do parto tudo o que se deseja é a não intervenção, a paciência , a delicadeza a doçura e o respeito à fisiologia. Médicas obstetras carregam o bisturi na mão quando deveriam ser ensinadas a levar uma flor. Não é culpa delas; é de um modelo que avilta a natureza em nome da idealização e exaltação da intervenção tecnológica, através do “Mito da transcendência Tecnológica” que Robbie Davis-Floyd tanto falava em seus livros.

O que eu desejo é que as mulheres que sonham com um parto sem intervenções possam tê-los sem esta romaria indecente, numa mendicância indigna por um nascimento de acordo com seus valores. Para isso, de nada adianta apontar dedos para os profissionais. Eles estão no lugar errado, fazendo o que melhor podem dentro do seu sistema de crenças. O parto deve voltar para as mãos das pessoas que acreditam nele, que se apaixonam por ele, e que desejam oferecer uma vivência livre e respeitosa para as mulheres e seus filhos. Essa é a nossa tarefa, nossa missão. Que nenhuma mulher mais tenha que sofrer desta maneira pelo simples desejo de parir em paz. E que assim seja…

Amém.

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Fragmentos

Mesa de Bar

Max voltou-se para mim e, sem mover a mão que segurava o café, falou.
– Eles não haviam sequer secado os pés no umbral das duas décadas.
– Para que falar assim?, perguntei.
– Como?
– Assim, de forma empolada, obtusa. Bastava dizer que era um casal, e que ambos tinham por volta de 20 anos. Qual o sentido de complicar um conceito simples?
– Qual a graça de falar que eram jovens de 20 anos? Mais interessante é poder fazer de uma sentença uma frase contundente. Nunca ouviu falar de poesia?
– Já ouvi sim… e daí? Continue. O casal tinha 20 anos. Eu permitirei que você declame suas poesias depois.

Max deu uma risada e prosseguiu. Eu sabia que estas firulas discursivas eram pura provocação, só para me irritar mesmo.

– Sim, estavam no bar que fica em frente à Faculdade de Direito, ou “de direita“, como dizíamos nós, os vizinhos do prédio da Medicina. O olhar da menina era interrogativo. Seu corpo levemente projetado para a frente parecia querer encontrar uma resposta que o outro guardava. O jovem, por sua vez, estava na defensiva. Recostado sobre o espaldar da cadeira plástica do bar, tinha na mão a xícara ainda fumegante de café com leite. No rosto a barba rala combinava com o cabelo desgrenhado, no melhor estilo “Estudante de Ciências Sociais”. Os jeans surrados e o tênis “All Star” completavam o quadro. Na mochila, sobre a cadeira ao lado, os livros do rapaz dormiam solenemente até serem despertados pelas primeiras aulas da manhã.

A menina era linda em sua jovialidade ingênua. Trazia as mãos à frente sobre a mesa, igualmente plástica, ornada por uma tulipa de cerveja borbulhante. A camiseta branca básica era encoberta por um blusão verde escuro, cujas mangas ultrapassavam os punhos, o que lhe dava um aspecto ainda mais juvenil. A pouca pintura, os lábios finos, os olhos doces e as maneiras firmes me diziam que ela estudava biologia. Ou enfermagem. Não, as enfermeiras são mais bravas. Uma bióloga, interessada em animais marinhos, caracóis, protozoários. Quem sabe seu interesse era apenas pelos vermes, como o que estava sentado à sua frente. Pelo menos parecia ser essa a sua ideia do rapaz.

Os braços do rapaz cruzavam-se à frente, como lanças e espadas em “xis” protegendo o escudo do seu peito. Parecia ter dificuldades em explicar algo. Talvez fosse pior: antes de explicar precisava entender. Ela apenas o olhava agora. Séria, mas calma, perfurava-lhe o rosto com uma mirada penetrante, mas ainda suave. Subitamente, ela fala:

Quem sabe então você diz a razão do …
– Como? disse eu, desviando o olhar da cena mental que construíra em minha mente. O que ela disse?
– Não sei, Ric. Eu estava caminhando na rua e passei pela cena. Meu olhar era cabisbaixo, minha atenção estava mais nos carros à minha frente, pois eu teria que atravessar a rua em seguida. Ela falou sobre ele explicar a razão de algo. Cobrava dele explicações, uma justificativa para um determinado ato. Precisava que ele dissesse a ela o porquê de ter agido daquela maneira. Infelizmente não consegui escutar o fim da frase da bela menina.
– Ok, continue…

– Ela continuava com as mãos fechadas por sobre a mesa, e seus dedos delicados e finos seguravam a barra do blusão verde. Projetou seu corpo mais à frente, cobrando uma resposta. E ela veio.

Pois você é quem pode me dizer, disse o rapaz do cabelo desgrenhado. Você provavelmente tem mais condições de responder a esta pergunta do que eu. Disse isso apontando com ambas as mãos o próprio peito. Suas sobrancelhas se ergueram e ele encarou o rosto da menina, que permanecia imóvel, sem piscar.

– Então? Qual era a angústia que tomava conta daquela conversa? Qual a explicação possível, a justificativa, a palavra que ofereceria a ambos o alívio da tensão, de desconfiança? perguntei eu, querendo saber o final da história.

Max sorriu, sorveu um gole derradeiro de café, e disse.

– Eu não sei, Ric. Não faço ideia. Como disse, estava passando ao lado deles. Captei um fragmento minúsculo de uma conversa, que tudo indicava era movida pela mais banal das razões. Ciúme? Provavelmente. Talvez ela quisesse saber o porquê de um olhar, uma conversa, um “torpedo”, uma “curtida” no Facebook. Como saber o que se passa no coração desconfiado de uma mulher?
– E o rapaz? O que fez? perguntei, mas já sem esperanças de obter uma resposta.
– Ora, ele se defendeu. Pior, pode ter se defendido de nada. Talvez nenhuma culpa tivesse, nenhum e-mail, torpedo ou observação no Facebook de alguém. Mas, como amainar o coração de uma mulher insegura? Talvez ela estivesse “jogando verde”, insinuando algo para ver a sua reação. Por isso a resposta: “Bem, você é quem pode responder a isso…”. Ele não podia, pois sequer sabia do que se tratava.
– Sei. Posso entender.
– Pois o que mais me chamou a atenção na cena foi algo muito além do que estava colocado nas palavras de ambos, continuou meu cabeludo amigo. O que eu vi foi a paixão, travestida com uma de suas mil faces. Por alguns instantes eu me senti naquela mesa, mal saindo da segunda década de vida, inseguro, angustiado, usando um tênis velho, tomando um café no bar em frente à faculdade. E também me vi olhando para os olhos brilhantes de uma linda menina, cheio de paixão e de medo; angústia e desejo. O fragmento de cena que eu presenciei abriu um buraco de tempo por onde escorri, e acabei caindo no mesmo lugar onde estava, mas algumas dezenas de anos atrás. Pude então sentir a mesma sensação inebriante e absolutamente cativante de ser jovem e apaixonar-se. Pode haver algo mais terno e belo do que a paixão, quando acontece?

Patu saleh, brindei.

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Escolhas e Recusas

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As mulheres devem ser livres para tomar decisões informadas relativas ao modo de parto, mesmo correndo o risco de fazerem escolhas tolas, em todos os sentidos – psicológico, emocional, físico, bacteriológico e espiritual – como é a escolha pela cesariana. Todavia, ainda prefiro erros que surgem na liberdade aos acertos que emergem da tirania. Eu ainda prefiro ver mulheres com liberdade para escolher, mesmo estando submersas em informações equivocadas, cheias de preconceitos e desorientadas a respeito dos riscos e benefícios da cesariana. Isso, apesar de ser triste e duro de aceitar, ainda é melhor que a tutela e a supressão da liberdade de escolha.

Não cabe a mim julgar os valores daqueles que se tratam, mas apenas zelar para que eles tenham o melhor atendimento possível dentro do seu universo de crenças e valores.

Tal discussão é deveras complexa, e que em muito extrapola a prática da Medicina, mas tem a ver com algo MUITO mais profundo que é a ÉTICA, na qual a própria medicina se fundamenta e embasa, assim como muitas outras artes humanas. Por isso afirmo que nossas ações não podem se sobrepor aos desejos livremente expressos dos pacientes, por mais justas e coerentes que estas sejam. Médicos não estão acima do bem e do mal, e não podemos nos colocar na posição de “reguladores da vida e da moral”. Mesmo que uma atitude dramática – como deixar de usar um medicamento ou procedimento potencialmente salvador – possa nos ferir e entristecer, ainda assim creio que o paciente não pode ter sua liberdade e autonomia solapadas por valores externos a si. Já senti na pele este tipo de dilema ardente e corrosivo, mas ainda assim prefiro a estrada longa e tortuosa da busca pela liberdade.

Robbie Davis-Floyd dizia que “A humanização do nascimento não pode se tornar a Gestapo do parto normal“. É isso o que eu defendo: liberdade para as escolhas, mesmo para aquelas que se mostram equivocadas e prejudiciais. Não acredito na repressão como projeto pedagógico de longo prazo e prefiro o lento aprimoramento através da conscientização, pois que esta leva o indivíduo no rumo da liberdade, enquanto a outra o aprisiona na dependência e na tutela.

Mas e quanto aos “direitos do nascituro”, perguntarão alguns. Pois eu afirmo que se arguirmos em nome do “feto” então o “Estado” (ou a Igreja) assaltarão o corpo da mulher e a privarão da liberdade sobre ele (como sempre o fizeram ao longo da história). Com este tipo de argumento é que se realizaram cesarianas por demanda judicial, com mulheres algemadas por ordem de um juiz, e em nome do “bem estar do feto”, de acordo com visões parciais de alguns “peritos” que nada mais estavam fazendo do que impondo seus preconceitos e visões parciais da realidade sobre o direito de uma mulher de dispor do próprio corpo.

Garantir direitos é tarefa árdua e pressupõe um especial amadurecimento da sociedade. Se bem que o caminho é longo também é verdade que essa trilha é essencial. Não há caminho que não seja em direção à liberdade, pois que ela é nossa meta última.

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