Há mais de 20 anos eu estava atendendo um parto em um grande hospital de classe média da minha cidade quando, no meio do atendimento, a enfermeira chefe me chamou para fora da sala dizendo que uma funcionária do hospital precisava falar comigo. Fui até a porta do Centro Obstétrico onde encontrei uma bela jovem que me aguardava, segurando uma pilha de papéis em suas mãos.
– Olá doutor, eu me chamo fulana e sou do setor de contas. Estamos fechando a contabilidade do mês e estou com dificuldade para fechar estes casos. Creio que foram atendidos pelo senhor.
Destacou do meio da sua pilha de documentos algum em especial e o ofereceu a mim.
– Esse aqui é um deles, porém temos mais uns. Queria que o senhor desse uma olhada na descrição de materiais usados porque preciso mandar para a cobrança do convênio. É urgente.
Olhei rapidamente o papel à minha frente e percebi que a coluna de material estava em realmente em branco. Voltei a atenção para o cabeçalho do documento e vi o nome de uma paciente que havia atendido algumas poucas semanas atrás. Lembrei rapidamente do parto, até porque estava fresco em minha memória.
– Sim, fui eu quem atendeu este parto, mas qual o problema?
– O senhor esqueceu de listar o material usado, doutor. Aqui não consta o soro, nem equipo, as medicações injetáveis, os analgésicos pós parto, o tipo de fio de sutura, o material da episiotomia, o creme para as mamas pós parto e…
Interrompi a fala da menina com um sorriso.
– Mocinha, nada disso foi usado!!! Este foi um parto natural, sem cortes, sem suturas, sem drogas, sem intervenções. Aliás, via de regra, nenhuma dessas intervenções deveria ser usada de rotina. O nome disso é “parto humanizado”.
Ela ficou desconcertada olhando para a folha de papel à sua frente e me mostrou mais dois atendimentos que já havia selecionado. Expliquei a ela que, efetivamente, em todos aqueles casos nenhum tipo de medicação ou equipamento havia sido utilizado.
– Mas como vou fazer para cobrar?
Só então me dei conta que eu estava sendo tratado como um intermediário entre o atendimento de uma paciente e a necessidades financeiras de um hospital. Minha atuação médica precisava gerar lucro para a instituição, e a qualidade do atendimento – por mais que fosse importante – era secundária à necessidade que o hospital tinha de produzir uma entrada de recursos que surgiriam através do meu atendimento.
Esta foi a primeira vez que eu me vi na posição de agente passivo do capitalismo em sua relação com a saúde. Por certo que o fato de me contrapor à ordem obstétrica alienante e objetualizante era o suficiente para gerar desconforto e ressentimento por parte do hospital e dos colegas, mas foi a primeira vez que percebi o quanto meu exemplo era ruim para as finanças das instituições privadas. Nesse tive consciência de que os profissionais que usavam alta tecnologia, equipamentos caros, cirurgias complexas, múltiplos profissionais, muitos dias de internação, uso de UTI eram mais admirados do que alguém que demonstrava um aparente “desprezo” pelo uso ostensivo de tecnologia em seu trabalho.
A partir de então passei a observar a diferença de tratamento oferecida aos médicos daquele e de outros hospitais cuja ação trazia dividendos para a instituição. O quanto eram bajulados, bem tratados, exaltados e elogiados, mesmo que – do ponto de vista estritamente científico e pragmático – suas ações pudessem ser confrontadas quanto à eficácia e valor. Havia algo muito mais significativo na relação do hospital com esses profissionais do que o reconhecimento da sua excelência e de seu trabalho.
Estas percepções foram moldando uma visão pessoal absolutamente negativa da relação entre saúde e capitalismo. Eu percebia que a mistura desses conceitos produzia um resultado ruim, e o melhor exemplo possível era a saúde americana, que apesar do alto grau de avanço tecnológico – o melhor que o dinheiro pode comprar – tem os piores resultados entre todas as nações desenvolvidas do mundo – em especial no parto e no nascimento. Também ficou clara a sedução que estas mensagens subliminares operam na atuação dos médicos. Quem não gosta de ser bajulado no local onde exerce sua função? Quem não gosta de ser tratado com distinção pelos colegas e pelo local que acolhe seu trabalho? Quem não acha maravilhoso ser bem remunerado em seu ofício?
Muitos anos depois recebi pelo celular uma mensagem do anestesista que durante quase 30 anos atendeu as minhas cesarianas, sempre da melhor maneira possível. Nunca tive nenhuma queixa sobre a qualidade do seu trabalho, muito menos da rapidez com que chegava ao hospital ou a agilidade com a qual conduzia suas anestesias. A mensagem, resumidamente, dizia:
– Caro amigo. A partir de hoje não atenderei mais partos para você. Nada pessoal, mas você não traz para mim o suficiente retorno financeiro. Através de você ganho por volta de 1500 reais mensais, o que é muito pouco para a atividade que exerço. Sucesso e boa sorte.
Sim, eu havia sido “demitido” porque o chamava poucas vezes para atender cesarianas enquanto meus colegas o chamavam inúmeras vezes mais, e assim eram considerados muito mais valiosos. A validade das cesarianas dos colegas era absolutamente irrelevante para o cálculo que fizera. A luta insana que eu travava contra o abuso de indicações cirúrgicas era do conhecimento dele, mas não fez a menor diferença para avaliar o valor do seu trabalho. Eu me lembro desta cena até hoje, a minha face atônita olhando para a tela brilhante do celular enquanto pensava: “Mas, espere, não vá, quem sabe se eu…”
Durante uma fração de segundos eu – por me sentir desamparado para atender partos sem o suporte de um anestesista – acreditei que poderia haver algo errado com a minha atitude e talvez não devesse ser tão “radical”. Mas, tão logo passou esse fragmento de instante, eu me dei conta que não havia como fazer qualquer tipo de concessão para um modelo falido, que enxerga os ganhos acima da atenção das gestantes, e que coloca a excelência do atendimento à reboque dos ganhos financeiros dos profissionais, das instituições e das indústrias de insumos médicos.