Arquivo do mês: novembro 2021

Normose

Nesta vida posso ser acusado de muitas coisas, menos de ter sucumbido à tentação da normalidade.

Dimen Berpa, “Dilemas da Guerra sem Fim”, ed. Paleo, pág. 135

Dimen Kaleb Berpa é um historiador e militante da causa da independência do Curdistão. Nasceu em 1950 em Batman, no Curdistão turco. Filho e neto de militantes pela liberdade do Curdistão, seu avô Berzend Berpa foi líder das tropas curdas na revolução de 1927, na região do Monte Ararat, ocasião em que foi preso e acabou morrendo nas prisões turcas quando da supressão da revolta em 1930. Seu pai, capitão Meiwan Berpa, foi combatente na revolta armada que culminou com a criação da efêmera República de Mahabad, em 1946, mas esta insurreição igualmente fracassou (apesar do reconhecimento da União Soviética) e o território voltou para o domínio iraniano. Dimen estudou história na universidade em Diabaquir às margens do rio Tigre mas jamais abandonou a militância herdada por seu pai e avô. Escreveu vários livros sobre o Curdistão, incluindo-se “História do Curdistão Turco”, “Areias sobre Gaziantep”, e um livro sobre as guerras de independência do nação curda, “Dilemas da Guerra sem Fim”. Dá aulas de história na Gaziantep University e viaja o mundo fazendo palestras sobre a liberdade e a soberania do seu povo.

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A alegria alheia

Ontem mesmo escrevi sobre o sonho que tive com o meu pai e hoje estava (re)pensando alguns dos seus significados. Estranho agora entender através de uma perspectiva diferente…

A morte de alguém nos deixa um vazio, e essa lacuna é ainda mais dolorida quando perdemos mãe e pai em sequência. Esse vazio nos causa tristeza, desamparo e saudade, mas agora me dei conta de que estes são os nossos sentimentos em relação à partida, mas não necessariamente os sentimentos de quem foi embora.

Eu pensei nessa perspectiva porque há muitos anos meus filhos foram embora de casa para viver fora do país, deixando seus pais com a casa esvaziada. A sensação estranha que eu tinha era que, sempre que eu conversava com eles pela Internet (que ainda engatinhava) eu tinha a nítida sensação de que a minha tristeza não era compartilhada. Sim, eu era o “pai abandonado”, aquele que havia perdido uma parte de si, enquanto eles era os filhos “libertos”, jovens que estavam conquistando sua autonomia e curtindo as milhões de coisas boas que essa vida leve e solta é capaz de proporcionar.

Assim, a minha vontade de que voltassem para casa – e assim aliviar minha saudade – se chocava com a felicidade que eu via em seus relatos diante de cada nova viagem, cada país visitado, cada conquista no trabalho e os lugares que haviam conhecido. Como poderia eu ser tão egoísta a ponto de pensar que eles deveriam abandonar essas coisas boas em nome do meu sentimento egoístico de tê-los por perto?

O sonho com meu pai trouxe de volta esta perspectiva. Se houver mesmo essa dimensão extra-física, a sobrevivência de um princípio espiritual sobrepondo-se à morte, como pedir que meu pai se demorasse por aqui diante de tantas coisas novas para se alegrar do lado de lá? Eu imagino a alegria que o envolveu ao poder conversar com minha mãe recuperada, renovada depois de tantos anos imersa em um mundo só dela. Posso até ver, diante dos meus olhos, minha mãe voltando a conversar com ele do jeito meigo que sempre teve. Seria justo privá-lo disso?

Tenho certeza que, reunidos e “restaurados” eles fariam as viagens que minha mãe sempre sonhou. Voltariam a Paris, visitariam museus, encontrariam tantos amigos que já se foram, fariam planos, curtiriam a vida. Seriam felizes de uma forma que não é possível compreender deste lado de cá.

Pensando bem, só agora me dou conta que o meu sonho tem um aspecto do qual me envergonho, e que talvez tenha a ver com a “cena primária”. Em verdade, eles não estavam arrumando as malas para a próxima viagem; eles estavam namorando, e eu chamei meu pai no momento mais inadequado.

Disculpaê, véi…

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Renato

Eu falei há muito tempo que um possível fracasso de Renato no Flamengo seria completamente diferente das dificuldades que teve aqui no sul. No tricolor gaúcho ele é o ídolo supremo, a memória viva da sua maior glória – o mundial de 1983 – e alguém que tem até uma estátua a ornamentar sua arena. No Flamengo ele não tem esse lastro. Cantei a pedra de que Renato seria no Flamengo um técnico comum, sem o crédito que os mitos locais carregam.

Mas também acho que se deposita nos técnicos bem mais do que eles representam. No futebol existem tática, mecânica de jogo e estratégia, sem dúvida. Há técnicos que dominam como poucos esses aspectos do jogo. Outros, por seu turno, mobilizam o grupo pela emoção, o que também é uma arte complexa. Entretanto, há sempre um quinhão de aleatoriedade inerente à esse esporte. Alguns técnicos perdem por isso, enquanto outros se tornam vitoriosos.

Não vi o jogo – porque não assisto partidas em que torço para os dois perderem – mas vi o compacto. O Flamengo perdeu um gol dentro da pequena área nos instantes finais da partida. Caso Michael tivesse acertado, Renato seria hoje um mito, carregado pela multidão de flamenguistas, desculpado de todas suas falhas? Creio que sim…

Ontem foi comemorado o aniversário de 16 anos da Batalha dos Aflitos*. Nesse jogo emblemático, quando faltavam 10 minutos para o fim da partida, o goleiro do Grêmio – Galattooo – pegou um pênalti. Com 7 jogadores na linha o Grêmio faz o seu gol na continuidade do lance, míseros 71 segundos após a defesa de seu goleiro. Um MILAGRE que nunca mais vai se repetir na história das finais de campeonato profissionais de futebol. Em 71 segundos ganhou do Náutico e voltou à série A.

Todavia, naquele jogo (e em outros) o técnico do Grêmio, Mano Menezes, cometeu vários erros incompreensíveis. Entre ele deixar Anderson, o melhor jogador do time, no banco, o mesmo que salvou o time no final, e esses erros foram narrados ao vivo pelos jornalistas. Porém, graças ao seu goleiro, o Grêmio tornou-se campeão e levou esse técnico à glória, chegando à seleção brasileira alguns anos depois.

Até hoje me pergunto: se Galatto não pegasse o pênalti e o Grêmio se mantivesse na segunda divisão, o que seria da carreira desse técnico, cujos erros foram todos esquecidos pela euforia da conquista? Nesse caso a Deusa Álea – a divindade dos fatos aleatórios – sorriu para o técnico. No caso de Renato, prejudicado por uma falha grotesca de seu jogador na prorrogação, ela não foi de nenhuma ajuda.

Tirar os fatores aleatórios do futebol seria mais justo, mas como cobrar racionalidade a um esporte que só existe em função da paixão amaurótica e irracional?

* A Batalha dos Aflitos foi um jogo que ocorreu no quadrangular final da série B no ano de 2005. Além da vitória o Grêmio foi garfeado escandalosamente nesse jogo. Houve dois pênaltis inexistentes marcados contra si, mas apesar dos erros de arbitragem alcançou uma glória que nenhum time do Brasil possui. O jogo foi no final de 2005. Desafio qualquer um a me dizer sem pesquisar quem foi o campeão mundial daquele ano; quem foi o vice campeão brasileiro da série A e quem foi o campeão da Libertadores. Nenhum deles lembramos sem pesquisar, mas quando alguém recorda dessa batalha épica imediatamente tem arrepios.

Todos os torcedores do Brasil sabem o que foi a Batalha dos Aflitos, um jogo em que 7 jogadores ganharam de 10 adversários no estádio do inimigo, contra o juiz, contra a tinta tóxica no vestiário, contra a torcida local fazendo barulho na frente do hotel e contra uma arbitragem acovardada e frágil. Um jogo para sacramentar a imortalidade de um clube.

E não adianta chorar.
Veja mais sobre esse jogo aqui.

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Sonho

Tive um sonho com meu pai. Nele eu estava muito deprimido e pensei que ele podia aparecer para me dar alguns conselhos ou aclarar minhas ideias sobre os dilemas que terei que enfrentar. Pois, por ser sonho, ele apareceu, do jeito que sempre me lembro dele. Suas sandálias, a camisa alinhada, os óculos e o cabelo branco. Quando me viu, no meio de um lugar movimentado que parecia ser um restaurante, pareceu surpreso.

– Oi meu filho, como vai? Que saudade!!

Emocionado o abracei.

– Obrigado pai, eu tinha muita coisa pra lhe dizer. Como você está bem!!! Como está a mãe?

Ele riu de forma tímida e respondeu.

– Pois achei que tua mãe viria junto. A gente estava conversando sobre a viagem quando ficou tudo enevoado e eu apareci aqui. Não a viu?

Respondi que não vi mais ninguém além dele, mas perguntei de qual viagem estava falando.

– Ah, uma viagem longa. Vamos a vários lugares, mas primeiro tua mãe quer passar em Paris. Sabe a paixão que ela tem por essa cidade.

– Fico feliz que vocês possam fazer estes programas. Na verdade sempre imaginei que estariam fazendo coisas assim.

– Ah, tua mãe sempre teve essas ideias. Ele adora esses programas. Pois foi um prazer lhe ver filho. Bom mesmo. Cuide o peso, caminhe bastante. Dá aqui um abraço.

Só então percebi sua inquietude.

– Está com pressa? Recém chegou!!

– Não é exatamente pressa, mas nós estávamos fazendo as malas. Imagine uma viagem que mistura Jericoacoara, Paris e o pico do Himalaia no mesmo pacote. Sabe como tua mãe gosta de levar tudo e não esquecer nenhum detalhe. Eu estava exatamente escolhendo umas camisas quentes quando você chamou. Mas veja, podemos conversar mais um pouco, se quiser.

– Na verdade eu tinha tanta coisa pra contar. Queria perguntar sua opinião sobre algumas decisões a tomar e algumas curiosidades. Por exemplo, no céu tem pão?

Ri sozinho e meu pai pareceu não entender a piada, pois ficou explicando sobre as padarias que tem na rua onde ele mora. Enquanto falava olhou para o seu relógio.

– Olha, podemos marcar pra outro dia? Sabe como é tua mãe, deve estar preocupada me procurando. Se eu estivesse com meu celular ligava pra ela, mas deixei em cima da mesa da cozinha junto com os documentos e o passaporte.

– Mas eu tenho algumas coisas a perguntar, e eu…

Sua resposta foi um abraço e mais poucas palavras.

– Em breve vamos nos encontrar, não se preocupe. Voltarei com mais tempo para conversar. Saiu caminhando em direção à saída, e quando estava próximo da porta se virou para mim e perguntou de longe:

– E o Grêmio? Lá de cima a gente não tem acompanhado.

Acordei em lágrimas…

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Socialismo

O socialismo é uma ideia muito antiga na história da humanidade, que tem como base a eliminação das divisão da sociedade em classes sociais, e suas origens podem ser encontradas nos primeiros grupamentos humanos que surgiram após a revolução do neolítico. Apesar dos inequívocos avanços decorrentes da revolução burguesa do final do século XVIII, manteve-se a divisão de classes baseada no capital, reminiscência nefasta que se manteve com a passagem do feudalismo para as monarquias absolutistas e destas para a sociedade burguesa. Apesar de não serem seus criadores, o socialismo teve um impulso fundamental com os trabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels, pensadores alemães que assinam o “Manifesto Comunista”, que pode ser entendido como o pontapé inicial em um grande movimento de massas para a derrubada dos governos burgueses e a ascensão política da classe proletária.

As bases ideológicas do marxismo – como passou a ser chamado – influenciaram os movimentos revolucionários russos que acabaram depondo o governo liderado pelo Czar Nicolau II e a instauração do governo socialista bolchevique em 1917. Seus principais líderes, Lênin e Trotsky, se guiaram pelas teorias econômicas de Karl Marx na forma como deixou escrito em sua majestosa obra “O Capital”.

A revolução russa foi a primeira das grandes revoluções do proletariado, seguida pela revolução chinesa de Mao Zedong, logo após a expulsão dos japoneses em 1949. Após o fim da guerra civil e durante os primeiros anos da revolução, a Rússia experimentou um crescimento vertiginoso de sua economia, na chamada NEP. Um dos estados nacionais mais pobres da Europa em 1917, a Rússia foi a responsável direta pela derrota de Hitler na segunda guerra mundial. Seu avanço tecnológico permitiu que, duas décadas após o fim desta guerra –  que vitimou entre 7 e 15 milhões de russos – colocasse Yuri Gagarin como o primeiro humano em órbita, mostrando a pujança dos ideais, da técnica e da economia soviéticas.

Entretanto, nos anos 50 do século XX, uma série de contradições na então União Soviética se tornaram aparentes a partir da morte do georgiano Josef Stálin, que havia sucedido o grande líder Lênin. A ascensão de Nikita Krushov aos poucos foi desvelando ao mundo os crimes do líder anterior. No final dos anos 80 a economia soviética estava prestes a entrar em colapso quando assumiu o controvertido presidente Mikhail Gorbachev, que instituiu a “Glasnost” (transparência) seguindo-se da “Perestroika” (restauração). Estas novas perspectivas, combinadas com a queda do muro de Berlim – que separava por um muro a capital da Alemanha invadida – e a eleição de Bóris Yeltsin como presidente da Rússia decretaram o fim do “socialismo real” que desaparecia junto com a “União Soviética”, posteriormente esfacelada em suas múltiplas repúblicas.

Essa queda do sonho socialista fez com que muitos países da Europa repensassem o seu ideário socialista, formando-se grandes partidos chamados “reformistas”, que se contentavam em ajustar os desvios do capitalismo – em especial sua doença de concentração de renda e esgotamento de recursos naturais – sem combater a sociedade de classes. Surgia assim, no mundo inteiro, a “Social Democracia”, que mescla ideais do sistema de “bem-estar social” do socialismo com a observância das regras e partidos da democracia burguesa.

Enganam-se, entretanto, como fez Francis Fukuyama, que se tratava do “Fim da História”. Em verdade, o socialismo está cada dia mais vibrante, seja na sua vertente social democrata quanto na “revolucionária”. Existem inúmeros partidos da “nova esquerda” que rezam pela cartilha social liberal, mas os partidos de estrutura revolucionária sobrevivem em várias partes do mundo. No Brasil os partidos de centro esquerda são o PT, o PSOL, o PCdoB e outros, que se configuram como partidos eleitorais regulares. O PCO – Partido da Causa Operária – é o mais importante partido comunista revolucionário da atualidade no país.

A história do socialismo está longe do fim. Sua meta principal é a socialização dos meios de produção, o respeito à ecologia e à diversidade, o fim do racismo e do machismo, o extermínio da sociedade de classes e a ditadura do proletariado.

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Comédias da vida privada

Exposição da vida pessoal em redes social só pode acarretar duas coisas: invasões da linha tênue que separa o sujeito público do privado e os naturais sentimentos de identificação de quem está do outro lado da tela. Quase ninguém que é exposto às filigranas da vida familiar alheia consegue produzir uma análise valorativa que não seja contaminada por suas próprias experiências, seus valores, dramas, experiências, angústias e feridas pessoais.

Não acho justificável ou adequado criticar escolhas pessoais a respeito de filhos, marido, esposa, opções profissionais, orientações sexuais ou ressentimentos familiares de toda ordem, entretanto também acho ingênuo demais para pessoas adultas ficarem surpresas quando, depois de uma exposição extensa de particularidades de sua vida privada, alguém resolve fazer comentários jocosos, comentários mordazes, julgamentos maliciosos e lançar mão de críticas destrutivas.

Se eu chegasse na frente de ponto de distribuição de drogas gritando a plenos pulmões tudo o que eu penso sobre o tráfico de entorpecentes – e recebesse como resposta uma bala na barriga – tal fato não deixaria de ser um crime bárbaro e sem justificativa, mas também seria um ato de tolice gigantesca da minha parte. A responsabilidade (e não a culpa) de uma atitude inconsequente (que não avalia as consequências) seria minha, e de mais ninguém. Quem vai se expor dessa maneira precisa estar preparado para a onda violenta que virá como resposta. Ou como diria meu amigo Max “Se você quer brilhar muito na luz dos refletores esteja preparado para a sombra que vai se formar atrás de você”.

Caso tenha o desejo de expor sua intimidade para milhares de seguidores na Internet, esteja preparado para receber bem mais do que os elogios, likes e cumprimentos que estava esperando ganhar. O mundo está lotado de gente que tem na inveja uma força motriz poderosa para os seus comportamentos. Aceite a carga negativa inexorável ou refreie a tentação de mostrar particularidades de sua vida para os “fãs”.

Lembre que a imagem que você projeta já não é mais sua; é de quem a capta e dela faz uso.

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Inculta e bela…

Não há porque esmorecer diante das necessárias críticas aos modismos e criações contemporâneas que atrasam o aprofundamento de ideias. Criticar o identitarismo é certo, assim como questionar a “cultura woke” ou o politicamente correto. Também é justo e lembrar que o Brasil é um país essencialmente mestiço, evitando assim o agravamento de tensões raciais. Certo também é responsabilizar a direita internacional por fomentar a divisão criada pelo identitarismo, cujo objetivo sempre foi criar guetos de identidade que sobrepujassem em relevância a luta de classes.

Com isso nos fragmentamos e, separados, somos facilmente controláveis. Nada é mais parecido do que um branco miserável e um negro excluído, ambos em luta contra ricos de qualquer cor ou ascendência.

Entretanto, estamos errando ao tratar a língua como uma obra acabada e estanque. Se vamos um dia usar pronomes neutros não será pela decisão de um grupo de notáveis, muito menos por seus arroubos de indignação. A língua é um organismo vivo e adaptável; maleável e evolutivo. Só o latim e o sânscrito não mudam, porque estão mortos e petrificados. A autoridade máxima para as mudanças de um idioma é o uso popular. Se for usado, se cair nas graças do povo, então terá valor, seguirá adiante e vai se fortalecer e prosperar. Se não for utilizado vira gracejo e se torna esquecido.

E de nada adianta reclamar. Não fosse assim ainda estaríamos usando “vosmecê” em nossas conversas – mesmo informais. Não fez diferença alguma que um catedrático de época distante achasse ridícula e violenta a forma sincopada que a substituiu, a doce e elegante “você”. A disseminação popular foi soberana.

Quando eu encontrava, na forma escrita ou falada, a expressão “a nível de” eu mentalmente gritava “em nível, em nível!!!”, mas hoje soa ridículo ficar apregoando esse preciosismo diante da disseminação dessa forma de falar tão comum aos políticos. O uso venceu a norma culta.

Se o “todes“, “amigues” e estas outras formas vão prosperar – ou não – dependerá dos falantes desse idioma apenas, e não será pela nossa infrutífera indignação diante das mudanças inexoráveis da língua.

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Nicarágua

Minha perspectiva sobre o apoio das esquerdas ao povo da Nicarágua…

Creio que o equívoco está em confundir o apoio à Nicarágua com “camaradagem internacionalista”, quando na verdade o que temos é uma luta sem tréguas contra o imperialismo. TODAS as alternativas oferecidas aos polos de luta contra o poder imperial – Cuba, Venezuela, Nicarágua, Coreia do Norte – têm oferecido como solução aos possíveis desmandos das administrações locais a volta da submissão ao poder colonial, a abertura unidirecional de fronteiras, a adoção da democracia burguesa e o abraço ao neoliberalismo moribundo e infecto.

Tão importante é essa luta anti-imperialista que as esquerdas radicais de várias partes do mundo comemoraram a vitória de anticomunistas fascistas no Afeganistão porque a derrota do imperialismo naquele país seria a única maneira de fazer no futuro o socialismo prosperar na Ásia Central. Enquanto estivesse ocupado o Afeganistão jamais conseguiria organizar uma revolução socialista. Portanto, para a derrota do poder imperial – destruidor e asfixiante – até a vitória da direita contra os imperialistas pode ser contada como positiva.

A Nicarágua que resolva seus problemas internos, assim como o Brasil, sem a interferência do Império. Até porque, citar Nicarágua e não falar das matanças sistemáticas na Colômbia ou a falta de direitos humanos na península arábica nada mais é do que a hipocrisia escancarada da nossa sociedade.

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Democracias latinas

A imprensa corporativa brasileira adora colocar rótulos nos governos que se insurgem contra o domínio imperialista americano. Entretanto, quando aprofundamos mais a análise, observamos uma realidade inquestionável: nossas democracias republicanas acabam vítimas de sua própria tolerância com o imperialismo. Allende, Jango, Dilma, Lula, Evo, Cristina, Lugo, Juscelino e tantos outros foram vítimas de armações da CIA para a desestabilização das frágeis democracias na América Latina. Muitos deles foram defenestrados da condição de líderes nacionais por todo tipo de armação espúria. Aqui nossa última experiência golpista foi com a famigerada Lava Jato, mas cada país tem sua peculiaridade, determinada pelas circunstâncias históricas.

Entretanto, mesmo a esquerda reformista continua insistindo em rotular os países que resistem ao imperialismo yankee como “ditaduras”, mesmo quando o sistema eleitoral é translúcido e muito mais seguro do que o nosso próprio sistema eleitoral. Há muito sabemos que os pleitos na Venezuela são os mais vigiados do mundo e o sistema eleitoral de Cuba opera num circuito muito mais sociocrático do que democrático (portanto, superior, ao meu juízo). Aliás, em Cuba a política é uma atividade de voluntariado, sem proventos, e nenhum participante das decisões pode pertencer ao partido comunista.

Por sua atitude de oposição aos ditames imperialistas todos estes países – Nicarágua, Venezuela e Cuba – sofrem há muitos anos risco de ruptura imediata de sua soberania, seja por grupos de traidores financiados pelos Estados Unidos, seja por invasão militar direta. Na Venezuela, há alguns poucos anos, houve um atentado por drone contra Maduro, intentonas fajutas lideradas por Guaidó e uma invasão por mar onde espiões foram capturados pelos pescadores armados das brigadas revolucionárias.

Em Cuba nem se fala (só Fidel sofreu mais de 60 atentados), pois há pouco tempos houve outra tentativa de um falso “movimento popular” que na verdade respondia a interesses de Miami. A Coreia do Norte, não fosse sua bomba nuclear, já teria sido varrida do mapa pelos americanos. Pergunto: qual país na iminência de uma invasão (inclusive anunciada por Trump, no caso da Venezuela) permitiria eleições livres correndo o risco de ocorrer a vitória de um candidato populista que colocaria a soberania duramente conquistada a perder? Se você responder “uma democracia europeia”, lembre que a Inglaterra suspendeu todas as eleições no período da guerra. E não foi só ela. Por quê?

Ora, pela clara ameaça à segurança nacional. Esta é a resposta que nicaraguenses, venezuelanos, cubanos, coreanos e ingleses dariam a essa pergunta. Por que então, em nome da segurança nacional, só os partidos que romperam com a dominação imperial são chamados de ditaduras? Enquanto isso, Cuba faz suas eleições livres há 60 anos. A Venezuela é o país com mais eleições com controle externo do mundo. A Coreia do Norte pouca gente sabe como funciona, mas ninguém daquele pequeno país esquece 1/3 de sua população foi morta pelos bombardeios americanos na guerra de independência. Uma eleição vale perder a soberania conquistada com a morte de uma terça parte do seu povo?

Quem arriscaria ver um candidato oportunista colocar a segurança destes países – Cuba, Coreia e Inglaterra – em jogo durante um período de guerra??? Não gosto de ditaduras, mas nesse continente só os americanos gostam e as apoiam, pois que eles estimularam a imposição delas em toda a América durante décadas. Aceitar – em nome da democracia – que eles voltem a nos encabrestar é ingenuidade suicida.

O erro de Dilma no seu excesso de republicanismo não pode voltar a ocorrer. Neste aspecto, a luta pela soberania e pela autonomia valem mais do que responder às artimanhas retóricas do Império. Pense bem: não fosse a resposta dura dos insurgentes que fizeram a sua revolução e a China continuaria até hoje o bordel da Europa e uma produtora de matérias primas para seus patrões brancos europeus. Talvez estivesse fragmentada em 4 ou 5 países, divididos por questões menores (religiosas, linguísticas, etc.) controlados pelos poderes coloniais. Não fossem Fidel, Camilo Cienfuegos e Che, Cuba seria ainda hoje a ilha de Hemingway, cheia de puteiros e morenas do balacobaco, produzindo açúcar e miseráveis. Talvez produzisse alguns jogadores de beisebol, como a pobre República Dominicana, mas por certo faria parte dos miseráveis do Caribe, como Jamaica e Haiti. A Coreia do Norte seria como a do Sul: dinheiro e sucesso para poucos, uma legião de marginalizados – como pode ser visto em “Parasitas”- convivendo com a miséria dos trabalhadores explorados e batendo recordes de suicídio.

Não fosse por uma luta heroica e corajosa contra o Império levada a cabo por estes revolucionários e estes países seriam o que o Brasil é hoje: o quintal dos gringos.

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Partos e lucros

Há mais de 20 anos eu estava atendendo um parto em um grande hospital de classe média da minha cidade quando, no meio do atendimento, a enfermeira chefe me chamou para fora da sala dizendo que uma funcionária do hospital precisava falar comigo. Fui até a porta do Centro Obstétrico onde encontrei uma bela jovem que me aguardava, segurando uma pilha de papéis em suas mãos.

– Olá doutor, eu me chamo fulana e sou do setor de contas. Estamos fechando a contabilidade do mês e estou com dificuldade para fechar estes casos. Creio que foram atendidos pelo senhor.

Destacou do meio da sua pilha de documentos algum em especial e o ofereceu a mim.

– Esse aqui é um deles, porém temos mais uns. Queria que o senhor desse uma olhada na descrição de materiais usados porque preciso mandar para a cobrança do convênio. É urgente.

Olhei rapidamente o papel à minha frente e percebi que a coluna de material estava em realmente em branco. Voltei a atenção para o cabeçalho do documento e vi o nome de uma paciente que havia atendido algumas poucas semanas atrás. Lembrei rapidamente do parto, até porque estava fresco em minha memória.

– Sim, fui eu quem atendeu este parto, mas qual o problema?

– O senhor esqueceu de listar o material usado, doutor. Aqui não consta o soro, nem equipo, as medicações injetáveis, os analgésicos pós parto, o tipo de fio de sutura, o material da episiotomia, o creme para as mamas pós parto e…

Interrompi a fala da menina com um sorriso.

– Mocinha, nada disso foi usado!!! Este foi um parto natural, sem cortes, sem suturas, sem drogas, sem intervenções. Aliás, via de regra, nenhuma dessas intervenções deveria ser usada de rotina. O nome disso é “parto humanizado”.

Ela ficou desconcertada olhando para a folha de papel à sua frente e me mostrou mais dois atendimentos que já havia selecionado. Expliquei a ela que, efetivamente, em todos aqueles casos nenhum tipo de medicação ou equipamento havia sido utilizado.

– Mas como vou fazer para cobrar?

Só então me dei conta que eu estava sendo tratado como um intermediário entre o atendimento de uma paciente e a necessidades financeiras de um hospital. Minha atuação médica precisava gerar lucro para a instituição, e a qualidade do atendimento – por mais que fosse importante – era secundária à necessidade que o hospital tinha de produzir uma entrada de recursos que surgiriam através do meu atendimento.

Esta foi a primeira vez que eu me vi na posição de agente passivo do capitalismo em sua relação com a saúde. Por certo que o fato de me contrapor à ordem obstétrica alienante e objetualizante era o suficiente para gerar desconforto e ressentimento por parte do hospital e dos colegas, mas foi a primeira vez que percebi o quanto meu exemplo era ruim para as finanças das instituições privadas. Nesse tive consciência de que os profissionais que usavam alta tecnologia, equipamentos caros, cirurgias complexas, múltiplos profissionais, muitos dias de internação, uso de UTI eram mais admirados do que alguém que demonstrava um aparente “desprezo” pelo uso ostensivo de tecnologia em seu trabalho.

A partir de então passei a observar a diferença de tratamento oferecida aos médicos daquele e de outros hospitais cuja ação trazia dividendos para a instituição. O quanto eram bajulados, bem tratados, exaltados e elogiados, mesmo que – do ponto de vista estritamente científico e pragmático – suas ações pudessem ser confrontadas quanto à eficácia e valor. Havia algo muito mais significativo na relação do hospital com esses profissionais do que o reconhecimento da sua excelência e de seu trabalho.

Estas percepções foram moldando uma visão pessoal absolutamente negativa da relação entre saúde e capitalismo. Eu percebia que a mistura desses conceitos produzia um resultado ruim, e o melhor exemplo possível era a saúde americana, que apesar do alto grau de avanço tecnológico – o melhor que o dinheiro pode comprar – tem os piores resultados entre todas as nações desenvolvidas do mundo – em especial no parto e no nascimento. Também ficou clara a sedução que estas mensagens subliminares operam na atuação dos médicos. Quem não gosta de ser bajulado no local onde exerce sua função? Quem não gosta de ser tratado com distinção pelos colegas e pelo local que acolhe seu trabalho? Quem não acha maravilhoso ser bem remunerado em seu ofício?

Muitos anos depois recebi pelo celular uma mensagem do anestesista que durante quase 30 anos atendeu as minhas cesarianas, sempre da melhor maneira possível. Nunca tive nenhuma queixa sobre a qualidade do seu trabalho, muito menos da rapidez com que chegava ao hospital ou a agilidade com a qual conduzia suas anestesias. A mensagem, resumidamente, dizia:

– Caro amigo. A partir de hoje não atenderei mais partos para você. Nada pessoal, mas você não traz para mim o suficiente retorno financeiro. Através de você ganho por volta de 1500 reais mensais, o que é muito pouco para a atividade que exerço. Sucesso e boa sorte.

Sim, eu havia sido “demitido” porque o chamava poucas vezes para atender cesarianas enquanto meus colegas o chamavam inúmeras vezes mais, e assim eram considerados muito mais valiosos. A validade das cesarianas dos colegas era absolutamente irrelevante para o cálculo que fizera. A luta insana que eu travava contra o abuso de indicações cirúrgicas era do conhecimento dele, mas não fez a menor diferença para avaliar o valor do seu trabalho. Eu me lembro desta cena até hoje, a minha face atônita olhando para a tela brilhante do celular enquanto pensava: “Mas, espere, não vá, quem sabe se eu…”

Durante uma fração de segundos eu – por me sentir desamparado para atender partos sem o suporte de um anestesista – acreditei que poderia haver algo errado com a minha atitude e talvez não devesse ser tão “radical”. Mas, tão logo passou esse fragmento de instante, eu me dei conta que não havia como fazer qualquer tipo de concessão para um modelo falido, que enxerga os ganhos acima da atenção das gestantes, e que coloca a excelência do atendimento à reboque dos ganhos financeiros dos profissionais, das instituições e das indústrias de insumos médicos.

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