Arquivo do mês: outubro 2013

Construindo a Maternidade

Menino Sorrindo

A maternidade é uma construção muito mais complexa do que aquela ditada pela biologia. Somos constituídos por um núcleo de medos, fantasias e crenças, cobertos por uma fina camada de intelecto, que nos faz pensar que estamos livres dos perigos ao nos oferecer uma ilusão de controle. Por outro lado, a linguagem nos oferece uma especial posição na criação: somos muito mais do que uma mera carcaça de ossos e tendões recoberta por uma tênue camada de pele.

No que diz respeito ao nascimento, uma criança pode ter sido adotada, nunca ter conhecido seus pais biológicos, até mesmo abandonada sem jamais ter recebido a carga de hormônios adaptativos relacionados com o vínculo, e mesmo assim ser amada, saudável e crescer com felicidade. Exemplos como este são fáceis de encontrar na cultura. Ao mesmo tempo, o presídio está cheio de adultos que nasceram de parto normal, assim como os manicômios estão lotados de mulheres que pariram naturalmente. Não existem linhas retas a nos guiar a trajetória. Se é lícito acreditar nas inúmeras evidências que demonstram a superioridade do parto fisiológico sobre qualquer alternativa cirúrgica, tanto para a mãe quanto para o bebê – e de uma forma abrangente (física, emocional, espiritual, social) – também é verdade que um parto conduzido sob estas diretrizes não é garantia de uma infância feliz ou livre de problemas. A sinuosidade da vida é o que faz dela um caminho a ser percorrido todos os dias, e sem garantias.

Da mesma forma, um nascimento com mais riscos (de toda ordem) ocorrido de forma operatória, pode produzir uma criança feliz e uma mulher plenamente realizada com sua maternidade. Basta para isso reverter as dificuldades que se apresentaram na “porta de entrada”. Se é verdade que reconhecemos a inexistência de determinismo no parto e nascimento, também é certo que valorizamos as evidências comprovando que os riscos diminuem quando adotamos uma conduta respeitosa com a natureza íntima que estrutura o nascimento humano. Se não temos nenhuma garantia como os partos mais dignos, temos a certeza de que esta escolha é a que mais facilmente leva o sujeito a receber a nutrição de afeto que será seu combustível para o resta da existência.

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Semáforo

Prost Gravida 1

Certa feita eu vi, perto da minha casa, uma adolescente prostituindo-se bem na esquina onde ficava um semáforo. Parei meu carro no sinal vermelho e fiquei olhando a menina (devia ter, se muito, 18 anos, mas parecia menos) que estava com uma barriguinha tímida de gestação inicial. De princípio fiquei horrorizado: uma criança, prostituta, grávida, vendendo seu corpo na rua, a mercê de doentes, loucos e violentos. Percebi que ela era um pouco mais velha apenas que a minha filha, que recebera a graça de ter nascido em um lar adequadamente constituído. “Injustiça cruel“, pensei eu. Enquanto olhava seu sorriso maroto de menina, seus cabelos presos para trás, seus dentes brancos contrastando com a face cor de chocolate, tive uma ideia. Boba, ingênua, culposa ou qualquer outro designativo, mas que surgiu de uma verdadeira vontade de fazer algo diante de uma situação injusta e violenta.

Minha ideia foi perguntar para ela quanto seria o “programa“. Depois eu aceitaria a “proposta“, pagando por uma hora. A partir daí, eu a levaria para casa para tomar um café comigo e com a Zeza, onde falaríamos de pré-natal, trabalho de parto e parto, cuidados com o corpo, puerpério e amamentação. Exames necessários, prevenção para a saúde, etc. A intenção seria tão somente oferecer a ela uma noção, por mais superficial que fosse, da importância crucial desse momento na vida de uma mulher e seu bebê.

Mas, o sinal amarelou, depois ficou verde. Escutei alguns carros atrás de mim buzinarem impacientemente, o que me libertou do devaneio humanitário. Pisei no acelerador e fui embora, deixando minhas indignações como rastro. Pensei – claro, apenas para justificar minha atitude pusilânime – que talvez de nada adiantassem as nossas explicações, orientações e conselhos. Talvez ela só se importasse com o dinheiro para comprar bibelôs para seu bebê, ou comida para os irmãos. Também tive o pensamento de que “isso de nada adianta para o problema, apenas melhoraria a minha sensação de culpa diante da desigualdade social“, o que também era uma verdade. Mas, diante das repercussões possíveis das minhas escolhas, pensei também no pior.

Imaginem o que aconteceria se eu fosse pego por uma patrulha policial que estivesse de “campana”, aguardando um cliente que fazia programa com uma menor e, ainda por cima, gestante. Vocês acham que alguém acreditaria na história de um obstetra de coração mole querendo ajudar uma adolescente grávida que estava se prostituindo? Ou isso seria um alimento perfeito para tabloides sensacionalistas? “Obstetra tarado pegava adolescentes grávidas em ruas da capital“.

Acovardei-me confesso. Olhei para a manchete do jornal imaginário e pisei no acelerador. Nem cogitei fazê-lo no dia seguinte, quando pela mesma esquina passei com meu carro; mas também ela não estava mais por lá. Sumiu. Quem sabe um outro obstetra mais corajoso a tenha orientado a seguir um estilo de vida mais seguro para si mesma e seu bebê.

Há oportunidades que passam pela gente, mas muitas vezes não temos a fibra suficiente para segurá-las.

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Local de Parto

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Terminei de escrever uma entrevista para Fernanda Canobel, querida aluna do último Curso de Doulas em Campinas, a respeito de diversos aspectos relacionados à humanização do nascimento, assim como o espectro de atuação das doulas no novo cenário de atenção ao parto que se descortina para o Brasil. Creio que num futuro próximo possamos ver este trabalho da Fernanda, que ainda conta com a contribuição de outros profissionais. Vou publicar, apenas como “teaser” uma resposta que dei que parece ser absolutamente necessária. Esta semana fiquei sabendo que um professor de medicina de Porto Alegre disse que eu era um defensor do “parto domiciliar” (e não da humanização, que ele chamou de “animalização”), mas com isso tentava afirmar que esta defesa servia como um rechaço ao “parto hospitalar”, como se eu estivesse julgando as opções que as mulheres fazem de parir em uma maternidade. Por isso eu creio ser importante responder a esta questão, para não deixar dúvidas sobre a questão “local de parto”.

P – O parto domiciliar é melhor que o hospitalar?

R – Não, em hipótese alguma. É necessário reverter esta lógica “universalista” para uma lógica “subjetiva”. Seria o mesmo que perguntar “Música erudita é melhor do que música popular?”. A resposta seria a mesma para ambas as perguntas: “Depende de quem ouve e de quem está parindo!”. Para algumas mulheres, a tecnologia em abundância oferece uma sensação de proteção e conforto durante o processo de parto, em função do mergulho que as sociedades ocidentais fizeram na “mitologia da transcendência tecnológica”, que afirma que tudo que é tecnológico é superior à alternativa que a natureza oferece. Para outras, a tecnologia pode ter um efeito contrário, e se tornar elemento opressor para um evento natural e fisiológico. Para as primeiras os hospitais são os melhores lugares para receberem seus filhos. Para as outras, a própria casa, ou uma casa de parto, seriam ideais. Os sistemas, públicos e privados, de atenção ao parto devem prover as mulheres com TODAS as opções possíveis, para que elas possam parir com o máximo de segurança. Para aquelas que desejam parir em um hospital (no momento, a gigantesca maioria), há que providenciar atenção, humanização, vagas suficientes e suporte técnico. Para as que desejam as Casas de Parto, é necessário construir centenas, talvez milhares pelo país afora, e capacitar esta atenção com profissionais bem treinados, equipamentos corretos e um sistema ágil de transferência. Para os partos domiciliares, precisamos primeiramente respeitar os profissionais que atendem as pacientes que assim desejam ter seus filhos, sem ameaças e perseguições, mas com controle e aprimoramento técnico, principalmente no que diz respeito aos critérios de seleção para o parto domiciliar.

O discurso do professor se baseia em sua visão pessoal do nascimento como evento perigoso e que só pode ser cuidado adequadamente por cirurgiões, especializados nas piores tragédias que podem acontecer. Eu respeito esta visão, mas creio ter o direito de oferecer uma mirada alternativa. Acredito na capacidade intrínseca da mulher de gestar e parir com segurança, e vejo isso se repetir milhares de vezes todos os dias, mesmo nas condições mais adversas. Não desmereço a importância de termos cuidados com os eventos dramáticos, mas sei que podemos fazer muito pela sua diminuição com uma atitude mais branda em relação à atenção. Os perigos que o nobre professor menciona são em grande parte gerados pelo próprio sistema misógino e insensível de atenção que ainda existe em muitos lugares, de forma inconsciente, como parte da ideologia machista de nossa sociedade. Mas, sua posição como professor, faz com que sua particular visão sobre o nascimento seja captada por “osmose” pelos alunos, que de forma acrítica replicam os conceitos recebidos. Por esta razão é que a obstetrícia atual mantém-se insensível (apesar de muitos avanços, é importante admitir) às questões do protagonismo e a autonomia, que são assuntos do terreno da ética, e que nos países europeus do oeste – e mesmo nos Estados Unidos – já foram absorvidos pelos profissionais como obrigações inquestionáveis e direitos inalienáveis dos pacientes. Aqui ainda estamos numa fase muito autoritária, mas que apenas terminará quando as mulheres reivindicarem o papel que lhes cabe no processo: o protagonismo pleno no nascimento de seus filhos, com o auxílio de profissionais que respeitem esta posição.

Eu francamente não me importo de ver a humanização ser chamada de “animalização”, até porque não deixamos mesmo de ser “animais”, e pela mesma razão nunca achei errado o Michel (Odent) convocar o movimento para “mamalizar” o parto. Entretanto, o professor usou a palavra “animalizar” na tentativa de desmerecer os esforços pela humanização do parto. Por outro lado, a nossa “falta de defesa” – e o fato de que assumimos nossa “animalidade” e reconhecemos que muito temos a aprender com a “etologia do parto” (o estudo do comportamento animal aplicado ao processo da parturição) – já serve como uma boa resposta. Muitas vezes o silêncio esclarece mais do que um milhão de palavras. Somos MESMO animais, e temos nossas pegadas muito distantes: no barro cambriano dos oceanos quentes e na poeira das estrelas que nos aguardam. Se somos anjos e desejamos voar, também somos bichos e queremos dormir placidamente no colo da natureza.

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Cyberbullying

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Quando o Orkut era o canal mais popular de conversas on line no Brasil eu criei a comunidade “Parto Humanizado”, exatamente para debater as questões relacionadas à humanização do nascimento no Brasil (e posteriormente de outras partes do mundo). De uma hora para outra a comunidade encheu, inflou-se e chegou a ter 5 mil pessoas inscritas. O sucesso dos participantes acabou atraindo pessoas contrárias à causa da humanização, que infiltravam-se nas conversas para agredir os interlocutores. Assim, o caráter anônimo destes participantes fazia com que a comunidade fosse recheada de “stalkers” e “trolls”, sujeitos interessados apenas em participar de uma recém criada modalidade de ação perversa: o “cyberbullying” (perdão pelo excesso de estrangeirismos – espero que encontremos em breve palavras em português que definam estes atores sociais e estes comportamentos perversos).

Atuando escondidos na multidão e com sua identidade escondida, a exemplo dos “bravos e corajosos” anônimos dos estádios de futebol, estes indivíduos entravam nas comunidades e despejavam ódio, rancor, ressentimento, ignorância e violência verbal de todo o tipo. A atitude era sempre provocativa, ácida e maldosa. Muitas vezes fui chamado – por ser o moderador – para acalmar (e até expulsar) pessoas cujo comportamento era absolutamente abusivo com os demais, muito além do que se admitiria perante um contraditório, uma diferença de opinião ou ponto de vista.

Mas o Orkut desapareceu, e com ele estas personalidades destrutivas e anônimas, certo? Só que não….

Elas continuam povoando os debates e as conversas. Podem ser facilmente encontradas na seção “comente a notícia” dos jornais, onde despejam, o fel de sua amargura contra os criminosos, os gays, os pobres, os políticos, os exóticos e todos aqueles que são diferentes de si mesmos. Procuram avidamente qualquer iniciativa honesta e caridosa para tratá-la como mentira, engodo ou falsidade. Pisoteiam a dor alheia, desrespeitando os mais nobres sentimentos humanos, como o sofrimento por uma perda.

Para estas pessoas, anônimas, acovardadas em seu pequeno mundo cibernético, eu recomendo que tenham responsabilidade sobre o que falam e dizem. O Bullying entre adolescentes, na sua modalidade “internet”, passou a ser um assunto de polícia e de saúde pública, em vista de tantos acontecimentos dramáticos e trágicos que acontecem ultimamente, como suicídios e assassinatos. E para os adolescentes que sofrem este tipo de agressão o conselho é que NÃO REVIDEM! Não participem do círculo vicioso de rancor, mágoa, agressão. Não retaliem, porque o ódio de quem os ataca é muito maior. Peçam ajuda – família, autoridades ou polícia – compreendam a dor de quem os ataca mas não participem desta doença.

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Parto e Sexualidade

Tais

Há algum tempo uma pessoa me perguntou “afinal, qual a diferença entre parir em um hospital e em casa“, querendo me dizer que não havia razão para ter um filho na segurança de um domicílio já que os hospitais poderiam proporcionar o mesmo cuidado ali prestado associado ao uso de tecnologia mais sofisticada.

Diante dessa pergunta eu respondi: “E difícil explicar esta questão sem uma compreensão mais ampla da transcendência desse evento, que em muito ultrapassa os valores físicos, biológicos, mecânicos e hormonais. Para usar uma comparação grosseira, a diferença entre estas duas experiência seria semelhante àquela de ter uma relação sexual com uma desconhecida e fazer amor com o grande amor da sua vida. Do ponto de vista biológico, hormonal e mecânico os dois eventos são parecidos, para não dizer iguais. Movimentos semelhantes, alterações hormonais, excitação, orgasmo e período refratário. Entretanto, qualquer pessoa que não seja absolutamente desprovida de sentimentos percebe a distância abissal entre estes dois eventos”.

Sem a dimensão do amor, da paixão e da espiritualidade (num sentido amplo) não há como a ciência contemplar os significados infinitos de um nascimento em paz. Tentar traduzir matematicamente um parto, imaginando esgotar-lhe as possibilidades de entendimento, é perder a essência e a magia incomensurável do que significa ser humano.

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A Princesa e as Escolhas

A princesa e seu cavalheiro

Então, a decisão para o galante cavalheiro foi pronunciada com severidade:

“Podes escolher entre estas opções, nobre senhor. Poderás ter a mais bela mulher de dia, para mostrar nas festas, para os visitantes, para os assuntos oficiais e para a corte. Por outro lado, terás uma mulher horrenda em tua cama, pegajosa e malevolente, por quem terás repulsa.

A outra opção também te será complexa: Poderás ter uma mulher horrenda e asquerosa durante o dia, que te envergonhará diante do reino inteiro, comportando-se como uma ogra nas festas, nas recepções e nos encontros com os signatários de outros reinos. Em compensação terás uma mulher linda, graciosa, meiga, sensual e carinhosa a compartilhar contigo os lençóis. Ela afagará teu cabelo, te dará conforto após as batalhas e pronunciará palavras de apoio diante de tuas angústias.

Agora tu tens o poder de escolher qual das duas faces desta maldição preferes: a mulher linda à luz do dia e perante os olhos de teus súditos, mas horrorosa quando o sol desaparece nas montanhas; ou aquela feia na luminosidade das horas mas delicada e desejável quando o véu da noite cobre a todos nós com seu breu.”

O nobre cavaleiro olhou para um ponto fixo no horizonte e depois de poucos instantes de reflexão respondeu:

A mim não cabe decidir sobre a vida de outrem. Se ela será feia ou bonita, desejável ou repugnante é uma decisão que só pode estar nas suas próprias mãos de princesa. A mim cabe apenas o direito de querê-la ou não. Não posso modificá-la diante do meu desejo, minhas ideias e minhas escolhas.

Respirou profundamente, olhou para aqueles que lhe dirigiram a palavra e completou: “Deixem que ela decida como a maldição se fará. Prefiro viver ao lado de uma princesa que seja capaz de decidir sobre sua própria vida.

E quando lhe foi oferecida a oportunidade de escolher como desejava ser perante seu amante o feitiço que nela habitava sumiu. Sim, de forma instantânea ele se foi, pois esta era a chave que a libertaria: o direito restituído de escolher o próprio destino e ser protagonista da própria vida. Liberta das amarras milenares do poder obliterante de uma cultura machista ela agora podia escolher seu caminho, fazer o que bem desejasse, dizer o que lhe viesse à mente, abrir seus lábios e beijar a quem seu desejo apontasse e amar aquele que seu coração abraçasse. Assim, solta, pôde finalmente seguir seu desígnio humano de cumprir com os mais altos fins de sua existência.

Fechando o livro, o velho olhou para os olhos do seu netinho e completou: “E assim ela viveu, feliz para sempre, mas não tenho sequer a certeza de que tenha se casado com o príncipe que a libertou. É possível, claro, mas é igualmente razoável que tenha até ficado só. E digo isso por uma única razão: o que aconteceu depois de cair o feitiço só ocorreu porque ela assim escolheu”.

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