Arquivo do mês: novembro 2015

Medicina Industrial

medicina e tecnologia

Muito se tem falado sobre a forma impessoal como os atendimentos ocorrem nos dias de hoje, além da frieza e descomprometimento dos médicos em relação ao trabalho junto aos pacientes. Uma forma de melhorar essa forma insípida de atenção é chegar mais próximo dos clientes e poder enxergá-los em seus próprios domínios para apreender toda a gama de informações que se pode absorver de suas histórias.

O atendimento domiciliar oferece esse mergulho do profissional na vida de relação do paciente. A assistência ao seu sofrimento (ou à sua “passagem” no caso dos partos) é “in vivo” ao contrário da atenção nas clínicas e consultórios, que é artificializada e descontextualizada. Isto é: ” in vitro”.

A industrialização e massificação da atenção à saúde leva a uma crescente insatisfação dos consumidores, que pode ser notada em alguns bolsões de pensamento, em especial da classe média. As queixas se unificam em torno da impessoalidade e coisificação do paciente, que passou a ser tratado muito mais por máquinas e equipamentos do que por pessoas. O positivismo obliterante dos protocolos e a incapacidade de enxergar a doença como caminho, negando-se a ela qualquer propósito, nos afastam das dimensões verdadeiramente curativas da medicina.

A medicina se faz com vínculo. No dizer do psicanalista húngaro Ballint “o melhor remédio que um médico pode oferecer é ele mesmo“. Todo modelo, por mais eficiente que possa parecer, que nos afasta da dimensão única e subjetiva dos pacientes será um entrave às mais nobres propostas da arte de curar.

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Casa Sagrada

Bebe utero

Casa sagrada
De paredes vermelhas
Tantas vezes tuas lágrimas
Pintaram o alvo lençol
Quantas vezes teus lábios
Falaram comigo em meus sonhos

 Acalentou meus filhos
Quando lá os deixei
Nutriste seus sonhos
E os guardaste para mim
Agora que vais
Leva meu adeus e a certeza
Da gratidão eterna pelo bem
Que fizeste à vida.

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Fofocas

Anestesista

Estava operando uma paciente na noite de domingo quando o anestesista – um antigo e simpático colega de faculdade – interrompe minha conversa com minha auxiliar para me contar algo que havia escutado…

– No último congresso de anestesia, este ano em Florianópolis, surgiu uma grande novidade. Vocês ficariam felizes em saber…

– Diga aí qual é, disse eu, esperando uma nova técnica anestésica superior às analgesias combinadas peridural e raqui.

Ele sorriu discretamente e disse:

– A grande novidade é que… “as doulas não são inimigas dos anestesistas“. Essa foi a principal notícia do evento.

Achei que meu colega estava brincando. Afinal, não são incomuns suas tiradas irônicas. Perguntei-lhe se estava de gozação, mas ele prontamente confirmou.

– É sério, disse ele sorrindo por detrás da máscara. No congresso brasileiro de anestesia anterior a este as doulas eram as piadas certeiras nos grupinhos de anestesistas que se amontoavam nos intervalos em volta de cafés e biscoitos. Nossa visão sobre elas era de clara unanimidade: bisbilhoteiras, místicas, invasivas, briguentas e inadequadas. Bastaram poucos meses para essa ideia mudar.

Levantei o olhar por sobre o campo estéril que nos separava e perguntei:

– O que houve? O que produziu esta mudança? Meu questionamento veio ainda que um esboço de resposta já houvesse em minha mente. Ele continuou seu relato:

– Como em toda a corporação existem aquelas pessoas que detém o controle político das condutas e dos protocolos. Na anestesia este controle está no mais importante estado do país, São Paulo. Lá uma anestesista é quem “dá as cartas”. Pois ela foi fazer uma visita a um grande serviço americano que tem como rotina o atendimento de doulas. Como era de se esperar, voltou impressionada e encantada com o resultado do trabalho delas. Sua mensagem foi clara: “Elas não são inimigas dos anestesistas. Vieram para somar. E vão ficar“.

– Bem, disse eu sorrindo, para cada notícia ruim de perseguição, injustiça, ataques pessoais e violência existem notícias positivas como essas para nos oferecer o devido equilíbrio.

Meu colega continuou sua “fofoca”…

– Sempre que algum anestesista insistia em uma fala debochada ou irônica dois ou três ao seu lado lhe diziam: “Não resista. Não tem volta. O trabalho das doulas está invadindo os hospitais. E elas não estão contra nós“.

Terminei a minha cirurgia feliz com a novidade, que mais uma vez confirmou minha velha tese: as transformações NÃO ocorrem através de abordagens cognitivas, racionais, intelectivas. Elas vão se processar no terreno das emoções, dos sentimentos e dos sentidos mais epidérmicos. Foi preciso que uma figura de autoridade de uma grande corporação médica (a chefona dos anestesistas) fosse tocada pelo trabalho das doulas para que pudesse sentir – mais do que saber – o quanto a abordagem psicológica, emocional, social e espiritual das doulas podia fazer a diferença.

Não foi pela “Razão”, mas pela vivência subjetiva, pessoal e afetiva que ela mudou sua visão sobre a atuação das doulas. E por sua autoridade acabou por imprimir uma transformação na maneira como os anestesistas enxergam o trabalho sutil e delicado das doulas.

Ele ainda emendou uma última frase:

– Mas lá fora elas tem código de ética, o que evita os problemas que ainda se vê por aqui com doulas que interferem em condutas médicas ou que jogam as pacientes contra seus médicos. Isso não pode acontecer.

Não pode mesmo. Um código de ética para as doulas é mais do que necessário, é mandatório. Para isso seriam necessárias etapas iniciais, como um congresso de doulas, uma associação nacional, uma diretoria, várias comissões, etc. Para aquelas que acham que as doulas deveriam ser uma profissão estas etapas iniciais deveriam ser cumpridas em primeiro lugar. Para os que acham que ser uma profissão não é essencial (nem desejável) estes passos ainda assim precisam ser perseguidos para que o trabalho das doulas seja ainda mais reconhecido e respeitado.

O caminho é longo, mas o percurso sabemos qual é. De uma fase de escárnio e desconsideração passamos para a etapa do enfrentamento e do conflito. Agora estamos inseridos em uma fase de lenta aceitação. Schoppenhauer já tinha nos avisado como isso aconteceria.

A exemplo do que vi no discurso do presidente da Febrasgo a nova postura dos anestesistas mostra um caminho que não tem saída: as doulas vieram para ficar. A abordagem delicada e carinhosa que elas trouxeram ao parto mudou a face da atenção ao nascimento. Não há como regredir, e os bons médicos já reconheceram isso.

Todavia, alguns profissionais vão continuar a criar barreiras e agredir o novo paradigma, mas suas vozes aos poucos serão cada vez mais fracas e vazias. Com o tempo as barreiras ao trabalho das doulas serão vistas como marcas de um passado distante onde o bem estar das mulheres não era nossa mais sagrada missão.

Que venha esse novo tempo…

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Tatuagens

tatuagens-costas-zeus

Eu escrevi uma vez sobre minha curiosidade com o fenômeno das tatuagens, mas era num enfoque psicológico. Num mundo de inconstância as marcas na pele oferecem uma perenidade que o mundo contemporâneo sonega. Os relacionamentos, outrora firmes e seguros , tornaram-se frágeis e temporários. Os papéis sociais antes fixos e determinados nos ofereciam uma segurança de posição no desenho da cultura. Hoje isso é passado e a metamorfose é a regra; o que fomos é apenas lembrança, e não mais o que nos constitui e estrutura.

Se isso nos descortina infinitas possibilidades e construções diárias de um destino incerto, ao mesmo tempo nos oferece um vazio de valores perenes e imutáveis. Parece que nada sobra do que fomos. Sem uma certeza do que, em última análise, nos constitui recorremos às marcas na pele. Elas nos dizem que, a despeito do mundo em constante transmutação, teremos para sempre a marca do dragão, a marca tribal, a rosa, a serpente ou o nome do filho imprimindo para todo o sempre (ma non troppo) o sentido de um momento, captura eterna de um fragmento de emoção.

Todavia, existe um outro aspecto que deveria ser explorado: a intoxicação causada pelas substâncias injetadas na derme. E essa é uma preocupação crescente. Algo tão “na moda” mereceria ter uma abordagem de saúde pública.

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Palavras e Palestina

Palestinas

Minha proposta é mudar as palavras e a forma de nos reportarmos aos problemas entre israelenses e palestinos, e isso pode ser um bom começo. NÃO EXISTE “conflito” entre esses dois polos em disputa, da mesma forma como não havia conflito entre nazistas e judeus na Alemanha de Hitler. Para que haja um conflito é necessário que ocorra uma paridade relativa de forças, o que evidentemente não havia no Holocausto e também não ocorria na vigência do Apartheid na África do Sul. Os nazistas massacraram os judeus neste período negro da história, assim como a população branca sul-africana oprimiu por décadas os negros que lá viviam. A mesma situação de disparidade de forças ocorre no Oriente Médio onde um povo sem exército, sem armamento, e sem condições mínimas de vida é subjugado há 70 anos por um grupo invasor que se apossou de suas terras e tem um dos exércitos mais poderosos do mundo. Desta mesma forma, a ocupação da Palestina e o aprisionamento a céu aberto dos Palestinos em Gaza e Cisjordânia não podem se configurar “conflitos”, mas sistemas claros de opressão contra uma sociedade e um povo.

“Segundo Norberto Bobbio, pode-se definir conflito a partir de seus componentes. “Existe um acordo sobre o fato de que o conflito é uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica choques para o acesso e a distribuição de recursos escassos. No caso da guerra, fala-se não do conflito pessoal, mas do conflito social.

O conflito, em algumas escolas da sociologia, é enxergado como o desequilíbrio de forças do sistema social que deveria estar em repouso, isto é equilibrado, quanto à forças que o compõe. Segundo essa teoria, não se enxerga mais o grupo como uma relação harmônica entre órgãos, não suscetíveis de interferência externa.”

O conflito pode ser compreendido como “um despertar simultâneo de dois ou mais motivos que sejam incompatíveis” (R. Minadeo) e está associado a “situações onde a capacidade da sociedade em resolvê-lo por meio de mecanismos reguladores, tais como tribunais ou estruturas sociais (por exemplo, clãs) fracassou, e as partes envolvidas no mesmo recorrem à violência.”

Veja mais aqui sobre conflitos…

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Aniversário

Ric 56

10 razões para se deprimir quando chegar aos 56 anos:

1 – Quando finalmente chega a moda do “coque” para homens já não é mais possível aderir.
2 – Agora que tenho umas economias para comprar uma calça Saruel descubro que o Neymar Jr já abandonou o estilo.
3 – Ninguém me chama de “moço” para pedir uma informação.
4 – Eu me sinto muito cafona quando uso a expressão “cafona”.
5 – Sou do tempo em que se enfrentava a polícia por ser CONTRA a intervenção militar.
6 – Quando uma moça sorri para mim imediatamente verifico se o fecho da calça está aberto.
7 – Meu papo com os colegas de turma é sobre artrite e aposentadoria.
8 – As pessoas ficam espantadas quando conto que meus pais estão vivos e saudáveis.
9 – Tenho que escutar da minha mulher e da minha filha que “essa roupa não é para a tua idade”
10 – Não há dia que eu não lembre que sou da próxima geração que vai… e eu sempre recordo a música que meu pai ouvia:


“Se a morte vier
Hoje te buscar
Como estás, como estás
Com teu Deus”…

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Sala de Espera

SaLA DE ESPERA

A sala de espera do bloco cirúrgico estava quase cheia, mas a angústia silenciosa do lugar feria os tímpanos dos quem sentavam em suas cadeiras acolchoadas. Zeza havia entrado no bloco havia menos de uma hora, e como todos ali presentes aguardávamos a notícia que seria dada pela única funcionária presente. O pequeno homem se escondia por detrás de um balcão alto, munido de uma tela de computador e um pequeno microfone. Para cada cirurgia que terminava ele anunciada no sistema de som da sala acanhada: “Familiares de Dona Zeferina, queiram comparecer à porta do bloco“. Assim era o ritual. Não sabíamos se ter o nome chamado no balcão era algo bom ou ruim, e apenas a notícia posterior sobre o resultado do procedimento cirúrgico poderia definir esse dilema. Sabíamos que sua cirurgia, apesar de simples, incorria nos riscos de qualquer cirurgia. Não havia como esconder o medo e a ansiedade, e só tínhamos como alternativa o disfarce fácil das piadas e a leitura compulsiva da timeline do Facebook.

Enquanto falava com meu filho sobre as novas possibilidades de construção de um refrigerador que não usa energia elétrica para a nossa comunidade “bicho-grilo“, uma senhora gorda de meia idade e com cabelos coloridos senta-se ao meu lado. Tinha nas mãos o indefectível saco de exames como um gigantesco relicário de sofrimentos, males e procedimentos médicos já realizados. Um certificado clássico de que havia passado por todos os rituais médicos de reconhecimento de sua condição de paciente. Sentou-se ruidosamente ao meu lado e, imediatamente depois, reconheceu no outro canto da sala uma amiga sua, talvez companheira dos infortúnios e peregrinações de laboratórios, médicos, tratamentos e autorizações de exames.

– Fulana, como está? Nos encontramos de novo!!!

Ela sorria cheia de dentes e parecia estar muito mais tranquila do que nós. Talvez, ao contrário do que nos acontecia, seu familiar já havia passado por estas agruras mais vezes, e aquele local não era tão desconhecido quanto o era por nós. Continuei minha conversa com meu filho até ser interrompido por sua voz estridente que percorreu ruidosamente a sala até atingir sua comadre, no outro canto.

– Pois amiga, está sabendo da Neusa?

Nesse momento eu e Lucas paramos a conversa e olhamos para o seu semblante ainda sorridente. Neusa é o nome verdadeiro de Zeza, o nome que carregou por toda a vida até ser “batizada” pelo bebê Lucas, que por não conseguir dizer essa palavra tão complexa passou a chamá-la de “Zeza”, apelido que vingou por mais de trinta anos. O que ela teria a dizer sobre “Neusa”? Seria uma conhecida que soube de sua internação? Seria uma coincidência? Um aviso? Um espírito materializado? Ficamos em silêncio à espreita do resto da conversa.

– Pois amiga, nem te conto. Aconteceu muito rápido e pegou a todos de surpresa. Estava muito bem, mas de uma hora para outra…

(a respiração de todos na sala ficou suspensa)

Mó réu, amiga. Mortinha. Morreu sem avisar. Que coisa né? De uma hora para outra. Coitadinha…

Olhei para meu filho e sem demora para o funcionário atrás do balcão. Seria possível que essa notícia tivesse pulado o protocolo e passasse para os outros antes de eu ser avisado? Poderia partir pelos corredores, driblar o microfone da funcionária e cair no conhecimento popular? Por uns milésimos de segundo minha mente ficou atordoada com a notícia, mas foi o olhar do meu filho Lucas quem me garantiu que se tratava de uma mera coincidência de nomes. Seus sorriso, com os olhos revirados para cima e a mão na testa mostravam que compartilhávamos o mesmo sentimento.

Lucas, eu vou bater nessa véia… me segura!!, eu disse entre risadas, mas era apenas o humor que brota incontido depois dos sustos.

Como pode uma coincidência dessas? Estávamos aguardando com ansiedade e temor as notícias sobre um familiar e aparece um “espírito zombeteiro”, direto do umbral, para deixar a todos de cabelo em pé (quem os tinha…). O mesmo nome da paciente que estava sendo operada!! E ela veio sentar ao meu lado, gritando o nome da falecida para toda a sala ouvir…

Depois de boas risadas ainda tivemos tempo para relaxar e continuar nossa conversa científica sobre açudes, peixes, energia limpa, ecologia e vida em comunidade. Alguns minutos depois escuto no sistema de som a voz da funcionária: “Familiares de Neusa, favor se dirigirem à entrada do bloco cirúrgico“.

Só depois de receber as excelentes notícias é que pudemos verdadeiramente suspirar aliviados. E se fosse mesmo um espírito tentando nos dar em primeira mão a notícia do desenlace físico? E se fosse uma forma do plano espiritual nos avisar que o “gato havia subido no telhado“?

Não era… e foi apenas uma curiosa coincidência macabra com um final feliz.

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Religião e sexualidade


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Eu tenho queridos amigos muito religiosos, cujas vidas são plenas de harmonia e respeito ao próximo. Eles são os melhores exemplos de uma vida dedicada à família, e por eles nutro grande carinho e admiração.

Entretanto, fico feliz de ver uma manifestação tão expressiva como a desvinculação coletiva em Salt Lake City, de membros da congregação contrários aos valores mais anacrônicos da moralidade humana. Como bem disse uma amiga da minha, estas religiões discriminam pessoas por algo que não é passível de escolha. Talvez seja possível impedir um sujeito de exercer livremente a sua sexualidade através de um torniquete mental, a exemplo do que ocorre nas igrejas evangélicas, mas as custas de um brutal sofrimento e uma violação dos sentimentos mais profundos de carinho e afeto. Pior, através da supressão daquilo que constitui o próprio sujeito.

Por outro lado, nenhuma dessas religiões poderá – por mais que a pressão seja violenta e cruel – penetrar no espírito de alguém e vigiar os caminhos por onde transita seu desejo. Assim, as barreiras moralistas das crenças mal conseguem mudar a fina superfície da expressão sexual, produzindo uma fachada de normalidade, que nos afugenta do medo espelhar ao nos oferecer uma ilusão.

Encarar a riqueza da diversidade sexual seria um salto adiante, um impulso de liberdade, mas para o qual a maioria das religiões não está preparada. Afinal, é provável que “religião” e “liberdade” sejam conceitos antagônicos, em essência e inexoravelmente distantes. Quem procura uma, está abrindo mão da outra.

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Inshallah !!

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Chamei um táxi para o aeroporto cedo da manhã pois uma carona as 9h seria absolutamente impossível. Na exata hora marcada chega um sedan amarelo cheio de publicidade nas laterais, nas portas e no teto. De dento dele emerge um negro forte, robusto e de rosto redondo. Como todos os taxistas que conheci em Austin – Texas esse também era estrangeiro. Todos certamente carregam uma história e varias dores.Uma vez peguei um táxi no aeroporto e vim conversando com o motorista cujo inglês me soava estranho até descobrir, quase chegando em casa, que se chamava Severino e viera da Paraíba havia alguns anos, e que sonhava em conhecer o filho de 3 anos que só havia visto pelo skype. Não havia deslumbre pelo mundo reluzente do sonho americano, apenas trabalho e saudade

Mas esse não era brasileiro, sem dúvida. Sua cor e suas feições lembravam a Nigéria, mas jamais me atreveria a perguntar. Sei como os estrangeiros – em especial os ilegais – podem se sentir invadidos com esse tipo de pergunta. Não queria causar nenhum constrangimento, apenas chegar ao aeroporto no tempo adequado. Além disso, esse me parecia um taxista que se situava entre rabugento e soturno.

As “highways” americanas são obras incríveis de engenharia. Depois que você entra em uma vai em linha reta até o seu destino sem nenhuma interrupção. Sem sinaleiras, o tráfego flui de forma constante e o tempo para alcançar o destino é quase sempre igual: de casa até o aeroporto Bergstrom 25 minutos. Não falha, seja qual for a direção que você vai.

Depois da última curva no “Hilton Redondo” entramos para a faixa do aeroporto que leva ao embarque. Nesse momento o negro se volta para mim pela primeira vez e diz:

– Uichála!!

Pensei ter ouvido “Inshallah“, o cumprimento árabe que significa “Se Deus quiser” ou “Deus o queira”, etc. Apenas me limitei a sorrir e levantei a mão numa espécie de cumprimento tímido.

Ele ficou sério e, sem tirar as mãos do volante, voltou-se novamente para mim e repetiu, agora com mais intensidade:

– Uichála?

Desta vez a entonação sugeria uma pergunta. Aí fiquei confuso e sem saber o que dizer. Nessas circunstâncias o melhor é fazer a tradicional cara de bobo e esperar que ele repita de forma pausada ou com mais precisão. Sua última tentativa teve mais vagar, mas veio com uma pitada de impaciência.

– Uich a láine?

Fiquei alguns segundos esperando a sinapse completar e só depois de muito gasto de neurotransmissor eu consegui jogar para fora a resposta:

– Jetblue, Jetblue!!!

Ufa!!! “Qual a companhia aérea”, ele me perguntava. Ainda bem que consegui entender quase chegando à entrada do aeroporto. Estacionou o carro e me ajudou a tirar as malas do bagageiro, enquanto eu fazia torturantes cálculos para acrescentar a gorjeta na conta final.

Depois de pagar a corrida ele me disse, com o mesmo indefectível sotaque africano:

– Have a safe flight..

Ao que eu respondi: “Inshallah!!!”, e pela primeira vez ele abriu um sorriso cheio de dentes brancos que contrastavam com sua reluzente pele negra.

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Velho Rabugento

O rapaz no aeroporto se aproximou pelo lado direito, e chegou perto o suficiente para que eu percebesse que queria falar comigo. Entretanto, não conseguia tirar os olhos da tela do computador, já que uma torrente de ideias me invadia para a feitura do texto que Robbie havia me pedido.

– Posso incomodar?

Eu continuei escrevendo, pois não queria perder o fio do raciocínio. Mantive os olhos grudados na tela do computador e respondi secamente: “Claro“…

– Preciso colocar o meu celular para carregar. Posso usar a mesma tomada que você está conectado para ligar o meu telefone?

Meu rosto não se mexeu. Continuei escrevendo e falei: “Pode“.

Só nesse momento eu percebi a imensidão da minha grosseria. É verdade que eu estava ocupado e tentando me manter focado. Tinha medo de perder o fio da meada, e não conseguir desenvolver minha ideia. Tinha que terminar este texto antes que Robbie chegasse em casa. Mas o que custaria levantar a cabeça, sorrir e deixar claro para ele que isso não me incomodava de maneira alguma e que eu faria questão de dividir a tomada da parede com ele?

Tentei reverter a má impressão deixada pela minha rudeza e me voltei em sua direção, quando ele já voltava para seu lugar após conectar o telefone. Percebi que sequer era um rapaz; era um senhor um pouco mais jovem que eu. “Nem o rosto eu havia visto, pensei. Quer vergonha!“.

Há muitos anos que tenho esse fantasma a me perseguir. Durante décadas tentei esconder de todos um problema genético que ataca a mim, meu pai e meu irmão menor. Somos afetados por uma moléstia muito comum, mas que é facilmente dissimulada, como uma doença que se esconde ao olhar dos outros e da qual temos vergonha em admitir. Nossa doença é a fobia social.

Meu pai talvez seja o mais acometido. Incapaz de ir a festas, divertir-se em público, frequentar lugares, andar em uma multidão e (em especial) entrar em uma fila, hoje em dia tornou-se um ermitão. Apesar de ser extremamente afável com todos eu percebo facilmente seu desconforto com a aproximação de pessoas desconhecidas. Nas obrigatórias festas de aniversário é notável seu desconforto com a balbúrdia, a gritaria e até as conversas superficiais. Meu irmão menor também tem sofrimentos análogos. Durante muitos anos era difícil tirá-lo de casa, e só com muito esforço eu o arrastava para alguns encontros sociais. Também ele não gosta de pessoas que não conhece, tem medo de festas, odeia conversas recheadas de superficialidades e com pessoas estranhas ao seu meio.

Eu sofro do mesmo mal, mas numa forma mais branda. Assim como meu irmão menor, encontrei na palavra escrita um refúgio. A forma compulsiva de escrever me faz parecer sociável ou “expansivo”, mas é apenas uma fachada falsa e que não se sustenta facilmente quando o encontro com as pessoas é inevitável. Nunca cultivei amigos próximos, nem sou fácil de me relacionar com os colegas. A festa de 30 anos de formatura da minha turma da faculdade terá uma ausência certeira este ano…

Quando vejo artistas na TV participando de programas de variedades eu nunca invejo seu talento e muito menos o dinheiro. O talento é sempre duvidoso e o dinheiro é “merda”, como diria minha antiga psicanalista. Quem valoriza dinheiro a ponto de endeusá-lo é porque perdeu todas as esperanças de ser feliz. Pessoas verdadeiramente felizes quase não precisam de riqueza material. Para consumir, ter coisas e colecionar objetos é fundamental cultivar desde sempre a infelicidade. A propaganda é a arte de nos fazer infelizes, vendendo a seguir a cura através de um objeto.

Não, nem o talento questionável e sequer o dinheiro inútil: o que eu invejo é o sorriso, a espontaneidade e a facilidade de se relacionar com as pessoas. O que eu mais gostaria na vida é ser simpático. Gostaria de sorrir para todas as coisas, ser explicitamente feliz (mais do que interiormente). Gostaria de ser extrovertido, brincalhão e jovial, e preferia não ter herdado esse humor inglês soturno e melancólico. Como diria Woody Allen, “é por contar piadas como esta que você não é convidado para festas desde 1938“. Gostaria de gargalhar com felicidade e ter sempre um sorriso para retribuir às pessoas.

O fantasma que me persegue é a rabugice que acompanha os velhos.

Tenho medo que minha doença antissocial me leve a um final triste. Temo que meu olhar soturno se transforme em ressentimento com o mundo, na incapacidade de vislumbrar a esperança e na impossibilidade de vencer as dores na alma quando a desilusão chegar. Tenho pânico de imaginar minha velhice solitária sentado em uma cadeira, reclamando dos políticos ladrões, do barulho da vizinha, dos netos que não param quietos e do chato que veio me interromper quando eu estava concentrado.

No aeroporto eu vi o que poderia vir a ser, e morri de medo.

Eu sei, eu reagi. Sim, a consciência de minha sina genética e das minhas tendências mórbidas pode me dar um alento, uma tênue esperança de poder vencer minhas fragilidades e afastar o espectro da indignação desesperançosa e triste que me espera.

Se houvesse uma escola de risos eu me inscreveria. Se houver como ser explicitamente feliz, trazendo no sorriso e na expressão acolhedora uma mensagem de paz, eu desejaria aprender. Ok, eu sei que alguém vai dizer que essa escola existe e que eu até já me matriculei. A ela chamamos “netos”…

Espero que assim como meus filhos foram meus grandes professores para o aprendizado da maturidade, meus netos possam me ensinar a ser um velho decente, otimista e simpático.

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