Arquivo do mês: dezembro 2012

Presentes

Uma pergunta, para estimular a reflexão: Quando a gente dá um presente, que tipo de mecanismo psicológico se produz, qual o processo mental que ocorre e quem verdadeiramente recebe o benefício? Digo isso porque vejo muitos avós dando presentes para os netos (mas não apenas avós; tias, mães, etc…), mas o verdadeiro presenteado me parece ser quem efetivamente DÁ, e não quem recebe. As descrições que elas me fazem deixam muito claro que o presente funciona (inconscientemente, é claro) como uma forma de pagamento para o verdadeiro produto: o agradecimento que o segue. Quando uma criança recebe um brinquedo (que ela joga fora logo depois) e agradece dizendo “Obrigado vovó, eu te amo!” eu me questiono quem realmente recebeu e quem ofereceu. O problema é que muitas pessoas usam presentes exatamente com o intuito de receber afeto de volta, criando nas crianças a noção de que existem mediadores nas demonstrações de afeição e carinho. Isso eu acredito ser profundamente deletério para o desenvolvimento dos pequeninos.  

Max sempre me disse: “As coisas verdadeiramente importantes na vida são absolutamente gratuitas“.  

Eu não compro presentes para os meus filhos desde que eles eram pequenos. E fazia de propósito. Natal na minha casa era com chazinho, bolo, avós, tias, e sem presentes. Eu me negava a entrar no círculo vicioso dos presentes. Não há como fugir dessa troca de favores regulado pelo dinheiro, a não ser com uma atitude drástica. Quando meus filhos eram pequenos a Zeza, reuniu os avós e algumas tias e disse: “Não quero presentes para os meus filhos. Natal não é para isso. Não quero criar uma mentalidade consumista em crianças pequenas.” E eu apoiei inteiramente.  

Eu creio que dar presentes para crianças pode ter um efeito deletério, inadequado e também pode produzir efeitos ruins em longo prazo. Mas é claro que não é o presente em si que é ruim, mas a carga afetiva que o acompanha. Criar uma mentalidade consumista em crianças, onde o dinheiro media carinho e amor, pode destruir a ideia central de que a afeição deve se bastar por si, e não ser comprada. É claro que comprei presentes para meus filhos durante vida deles, mas também me perguntei quem é que estava ganhando alguma coisa, e me questionei sobre o “preço” verdadeiro que estava sendo pago. Dar presentes mascara, muitas vezes, necessidades afetivas de quem presenteia. E não estou generalizando, mas (como disse na primeira linha) provocando uma reflexão sobre o verdadeiro valor dos presentes, dados e recebidos.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Sobre os Poderes

Pessoas poderosas (imagine aqui qualquer uma, dos políticos aos artistas) sofrem pela terrível pressão do poder. Eu não sei exatamente como é isso – sou um mísero parteiro da província – mas posso ter uma ideia do que seja este peso pelas experiências reveladoras pelas quais passei. Uma delas foi importante, e a ela sou muito grato.

Quando eu servi como militar nos primórdios da década de 90, fiquei de início – como qualquer calouro – muito intrigado e impactado com o modelo hierárquico rígido existente na unidade médica em que eu trabalhava como obstetra. É importante destacar que as hierarquias são absolutamente necessárias em um modelo que prepara homens para o combate. Não fosse assim, existiria um exemplo de “exército democrático” na história da civilização, mas isso obviamente nunca ocorreu. A rigidez desses níveis de poder e responsabilidade são fundamentais para certas ações que ocorrem nos cenários de guerra. Entretanto, para mim era estranho, e até constrangedor, que um sargento que tinha idade para ser meu pai precisasse me chamar de “senhor” (por eu ser um oficial médico) e eu fosse obrigado a chama-lo de “tu”, mesmo sendo ele muito mais experiente e maduro do que eu. Apesar de entender a lógica por trás dessa determinação, o costume de mais de 30 anos com a vida fora da caserna produzia em mim esse “choque de valores”. Quando por fim me acostumei com esse modelo (muito à contragosto e de maneira forçada) eu prometi a mim mesmo que, exatamente por ser um oficial temporário, jamais usaria esse tipo de prerrogativa – a patente militar – como um argumento válido em uma disputa qualquer.

Entretanto, certo dia, lá estava eu discutindo com um sargento sobre as famigeradas “escalas vermelhas”, que eram as escalas de oficiais em fins de semana e feriados. Lá pelas tantas da conversa eu percebi que meu nome havia sido colocado em uma data muito inadequada. Não havia como estar de plantão, pois me faltava o “dom da ubiquidade”. Imediatamente expliquei ao sargento responsável que nesse dia específico eu estaria fazendo um curso (provavelmente minhas aulas de pós-graduação em homeopatia) e que eu poderia fazer este plantão em outra data, bastando para isso que trocassem meu nome pelo de um colega. O sargento me interrompeu dizendo que a escala já havia sido enviada para o “boletim” e que nada mais havia a fazer.

Virei uma fera. Expliquei que não poderia deixar de ir à aula por causa de uma burocracia e disse que chamasse o soldado de volta trazendo a escala e que, depois disso, trocasse a data que iria para o boletim. Ele respondeu que não faria isso, pois isso seria burlar uma regra existente sobre as escalas de plantão.

Nesse momento, irritado pela negativa peremptória da “praça”, eu disparei: “Ah, você vai fazer isso sim, …sargento“. A última palavra estava frisada propositadamente, destacada para mostrar que eu estava dando uma ordem baseada na minha hierarquia, e não na minha razão ou na correção do meu pedido. Era violência, pura arrogância. O poder explicitado; a determinação inquestionável.

Imediatamente eu me lembrei do compromisso que havia assumido alguns poucos anos antes. Meu olhar inexpressivo fixou-se na parede em frente e o filme da minha “promessa” passou diante dos meus olhos, tal qual o filme que Pedro assistiu depois de negar o Mestre por três vezes. Petrifiquei-me em silêncio e, envergonhado, nada falei. Vi o sargento buscar a folha de escalas e trocar as datas na minha frente. Nada disse, nada comentei. Silenciei diante da minha escandalosa prepotência.

Um pouco de mim eu conheci naquele dia, e a partir de então pude entender a pressão que existe pela prática do poder. Eu falhei vergonhosamente no meu teste, e tive plena certeza desse fato. Eu por muito tempo cultivara a ingênua ilusão de que, mesmo tendo a possibilidade de dar ordens inadequadas em função de uma posição artificialmente construída pela corporação, eu jamais usaria tal prerrogativa em benefício próprio. Engano. Falhei como falham muitos os que subestimam a força coercitiva de uma posição de destaque. Errei como tantos os que acusam os corruptos, os assassinos e os ladrões, como se estivessem infensos à sedução de usar o poder – todo ou em parte – que lhe foi concedido ou conquistado. Errei ao supor que minhas frágeis convicções poderiam suportar o peso das necessidades egoísticas emergentes.

Publius Terentius Afer (Terêncio) já dizia: “Eu sou um homem, e nada do que é humano me é estranho”, e com isso nos ensinava que a iniquidade, a falha, o egoísmo, a vaidade e o medo, que tão facilmente percebemos nos outros, habita igualmente em nós. Apenas depois dos testes que a vida nos oferece é que podemos acreditar em nossos valores. Sem a prova da realidade, ficamos apenas com as palavras vazias e as boas intenções. Mas A Virtude espera mais do que belas citações; elas nos chamam à pratica dessas posturas.

Nossos amigos que abusam do poder provavelmente acreditam estar fazendo o melhor que podem diante do peso que carregam. Mesmo parecendo lícito combater e criticar o suborno, a corrupção, a mentira e a falsidade, também é verdadeiro que tais ações, quando analisadas subjetivamente, não podem ser alcançadas pelo nosso juízo pessoal. Para criticá-las talvez seja mesmo necessário caminhar os tais mil quilômetros usando os mocassins de quem as praticou.

1 comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Os Humanismos

Sobre a criação de uma nova comunidade de “Parto Humanizado” eu gostaria de tecer alguns comentários, que traduzem tão somente a minha visão pessoal, e não representam qualquer instituição ou grupo relacionado à humanização do nascimento.

Primeiramente, a humanização do nascimento não tem donos. Trata-se de um movimento internacional de resgate dos valores femininos do nascimento que foram eclipsados pela entrada do paradigma tecnocrático na cultura. O nascimento humano, por força das falhas que esse mesmo paradigma apresenta, acabou se tornando excessivamente artificial, frio, objetual, coisificante, incompleto e – por vezes – violento. Qualquer que seja a definição oferecida a esse conjunto de ideias e atitudes, isso não significa que qualquer grupo possa se apoderar de suas propostas, transformando um movimento de revolução social em um catecismo dogmático e rígido, que se nega a transformar-se pela constância do choque de propostas e discursos diversos.

Isto posto, creio ser importante aclarar a minha definição de parto humanizado. Apesar do uso confuso, e por vezes claramente equivocado desse termo, ainda acho útil a sua utilização. O termo “humanizado” se coloca ao lado da corrente de pensamento humanista, herdeiro do Iluminismo do século XVIII. O Humanismo é a filosofia moral que estabelece o HUMANO como elemento primordial na cultura. É uma perspectiva que se encontra em uma grande variedade de posturas éticas que atribuem a maior importância à dignidade, aspirações e capacidades humanas, particularmente a racionalidade. Esta corrente de pensamento vem se contrapor ao teocentrismo da idade média, que ignorava as capacidades humanas de adaptação e transcendência e colocava em Deus as diretrizes e o destino da humanidade.

Entre os humanistas se inclui Erasmus de Roterdã.Assim sendo, minha opinião é de que o movimento de humanização do nascimento se assenta sobre um tripé conceitual, que se constitui dos seguintes elementos:

1- O protagonismo restituído à mulher, sem o qual estaremos apenas “sofisticando a tutela” imposta durante milênios pelo patriarcado.
2- Uma visão integrativa e interdisciplinar do parto, retirando deste o caráter de “processo biológico”, e alçando-o ao patamar de “evento humano”, onde os aspectos emocionais, fisiológicos, sociais, culturais e espirituais são igualmente valorizados, e suas específicas necessidades atendidas.
3- Uma vinculação visceral com a Medicina Baseada em Evidências, deixando claro que o movimento de “Humanização do Nascimento”, que hoje em dia se espalha pelo mundo inteiro, funciona sob o “Império da Razão”, e não é movido por crenças religiosas, ideias místicas ou pressupostos fantasiosos.

Na minha visão esses são os constituintes fundamentais para entender as propostas de humanização. Em primeiro lugar está o protagonismo restituído à mulher, sem o que estaremos apenas mascarando as condutas e mantendo as mulheres atreladas a um modelo que não as reconhece como capazes de dar conta dos desafios da maternagem. Depois, a visão ampla e transdisciplinar do evento, retirando do parto a imagem de evento biológico ou médico, mas alçando-o ao patamar de “evento humano”, onde além da medicina outros saberes poderão dialogar e oferecer sua contribuição. Por fim, a vinculação “umbilical” com a MBE – Medicina Baseada em Evidências – para que todo e qualquer procedimento realizado sobre o corpo de uma gestante ou puérpera seja comprovadamente útil a ela e ao seu bebê, sem que outras considerações de ordem moral, religiosa, política ou econômica prevaleçam sobre a saúde de ambos.

Portanto, ainda creio que o termo “parto humanizado” possa ser usado, apesar das confusões. Todavia, se um dia perceber que esse termo está gasto e que já não auxilia mais na compreensão do que queremos transmitir, aceitarei de bom grado que ele seja trocado por outro melhor. Já debatemos “parto livre”, “parto em paz”. “parto digno” e muitos outros, mas nenhum ainda consegue mobilizar as pessoas como este, que até na propaganda governamental da Rede Cegonha já aparece.

Quanto à criação de grupos com esse nome, em especial um que foi criado alguns dias atrás e com milhares de participantes surgidos da noite para o dia eu acho que vale a pena fazer alguns comentários. O grupo se chama “parto humanizado”, mas as pessoas que o controlam não são explicitadas na comunidade. Sobre elas recai uma cortina de sombras e enigmas. Este grupo esconde-se por trás de um nome que as abrigaria de críticas. Entretanto, tal proteção acaba por desumanizá-las, colocando-as em uma posição pretensamente superior, acima das veleidades e falibilidades da carne. Pior: não se trata apenas do nome não aparecer; ele é mantido em segredo, com a desculpa de que “as pessoas que estão por trás não importam, apenas as ideias”.

Eu não vejo dessa maneira, muito pelo contrário. Quando alguém faz um comentário e a resposta vem de “parto humanizado” parece que é a IDEIA, o MOVIMENTO, o ENTE “parto humanizado” quem está respondendo, como se fosse um canal direto com as “formas perfeitas” platônicas, sem a intervenção da mente humana, por definição imperfeita e passível de erros. Quando se lê a resposta oferecida por “parto humanizado” imaginamos que ela será a perspectiva final, a resposta derradeira e com as palavras que não permitirão qualquer contestação. Pode-se encontrar publicidade de cremes e cafeteiras na página. A explicação é de que pertencia à página de uma das “donas” da comunidade, mas a verdade é que aparece nitidamente na página do Facebook, o que deixa a desejar do ponto de vista de debates livres e isentos de pressões de ordem comercial. Posts cortados, palavras cassadas, reclamações suprimidas e toda a sorte de censuras à livre expressão de ideias contraditórias e discordantes.

Não creio que seja essa uma boa maneira de levar adiante um debate livre e democrático sobre a forma como atendemos o nascimento através de uma perspectiva plural e aberta. Violência excessiva nas palavras das “moderadoras anônimas”, misturadas com escárnio e uma pretensa “postura superior”. As controladoras da comunidade parecem ter “contas a ajustar” com os movimentos outrora construídos sobre o tema. A ladainha de “proteção às mulheres que realizaram cesarianas” foi, obviamente, mais uma vez utilizada, como que a acusar as defensoras da humanização do nascimento de “cruéis” ou “insensíveis”. Essa história tem a mesma idade dos primeiros modelos de construção coletiva de suporte ao parto normal. Para cada linha escrita sobre a importância de preservar o modo mais natural possível de conduzir o parto, havia várias linhas de queixas contra a exclusão das cesariadas.

Ora, é muito fácil entender o que se passa. Muitas mulheres, identificadas com as mulheres que sofrem cesarianas, achavam que é inútil e doloroso demais tocar nessa ferida. Muitos de nós, os mais antigos nesse movimento, pensamos o contrário. É claro que crueldade e insensibilidade são nefastas e desnecessárias para a construção de um modelo centrado no protagonismo e na dignidade restituídas, mas também não faremos nada de produtivo calando-nos diante de tantas cirurgias mal indicadas no nosso país. O meio termo sempre foi defendido pelos grupos de apoio ao parto “natural”, mas a citação dessa falsa discordância já é uma acusação velada (e falsa) contra os defensores dessa ideia. Imediatamente depois de entrar na comunidade eu me despedi, desejando boa sorte e bom trabalho, mas expliquei que o modelo criado para os debates em nada sintonizava com minha particular visão sobre as formas cibernéticas de fomentar a discussão sobre a humanização do nascimento.

A revivescência de contendas – como a famosa “menos mãe” – fez com que muitos ativistas achassem que tal iniciativa provinha de históricos inimigos dos projetos de humanização do nascimento, tamanha era a falta de maturidade para o debate. Para finalizar, eu acredito que existem infinitos espaços para a discussão de um tema tão múltiplo e estimulante. O gestar, parir, maternar e amamentar são questões tão antigas quanto a própria humanidade e a nossa necessidade de debatê-las desnuda as falhas dos sistemas contemporâneos de assistência à mulher em reconhecer e trabalhar com as verdadeiras e profundas necessidades femininas de suporte e cuidado. Por outro lado, os debates para serem úteis e profícuos precisam ser abertos, democráticos e respeitosos. Mostrar a cara, dizer que é, receber críticas e absorvê-las, não revidar questionamentos com grosserias e não excluir os que não se alinham em um catecismo estático não são apenas normas de convivência; são determinantes para o sucesso de qualquer projeto que se pretenda longo e construtivo.

1 comentário

Arquivado em Ativismo, Pensamentos

As Benesses da Senectude

Quando meu pai passou dos 60 anos começou a usar uma expressão que apenas agora faz sentido para mim, na medida em que me aproximo celeremente desse desfiladeiro da terceira idade. Diante de uma atitude qualquer sua, que me parecesse estranha ou exagerada, ele explicava: “Tenho 60 anos. Tenho o direito de agir assim“.

Eu sempre achava que tal explicação era simplista demais. “Ora, pensava eu, a idade não pode justificar qualquer ação, como se a maturidade (ou a “melhoridade”) fosse um salvo-conduto para todas as condutas.” Entretanto, não se tratava disso. Suas palavras apenas refletiam um “direito adquirido” de ousar, de questionar, de criticar o que nos era imposto, de agir livremente, sem a imposição de regras que nos acostumamos a obedecer de forma acrítica.

Ele continuou a usar essa expressão aos 70 e agora aos 80. “Posso reclamar, sim. Afinal tenho 80 anos e tenho esse direito“. Tal como a famosa velhinha que usa o chapéu roxo, ele pode reivindicar algumas concessões que são garantidas àqueles que ultrapassaram vários marcadores de sobrevivência. E foi ele quem me deu coragem para escrever sobre ela.

Elis Regina morreu quando ainda éramos crianças. Afastou-se desse mundo com 37 anos que, na minha perspectiva atual, é uma idade juvenil. Ela partiu exatos quatro dias depois do meu casamento. A alegria de casar com a mulher mais maravilhosa do mundo foi subitamente interrompida pelo anúncio do falecimento da maior diva da música brasileira. Gaúcha, porto-alegrense e gremista, Elis está no rol das maiores intérpretes da música brasileira de todos os tempos. Se soubesse da tragédia que se anunciava eu abandonaria a minha “lua-de-mel de pobre” e iria até São Paulo, entraria na sua casa, olharia em seus olhos e pediria: “Não nos abandone, por favor. Tu és a representante do que existe de melhor na música desse país. Nenhuma voz surgirá tão vibrante como a sua, e nenhuma música será tão intensa se não for cantada por ti. Não se vá, não se vá“.

Inútil pensar no que eu faria, tantas foram as pessoas que se entristeceram com sua partida abrupta e extemporânea e manifestaram a mesma fantasia de resgatá-la do desvario daquele dia 19 de janeiro. Ela se foi, isso é um fato, mas sua música continua a embalar nossos sonhos.

Hoje ligo o som no carro e escuto Elis. Escapa do alto-falante, gira pelos bancos, rodopia e entra nos meus ouvidos. Sinto como se ela nunca tivesse partido, presente e vívida nas sonoridades inebriantes que me hipnotizam. Talvez agora, aos 50 anos, eu possa usar o mesmo argumento de meu pai e dizer: “Já passei de meio século de vida e agora tenho o direito de dizer: Poucas coisas são mais impressionantes do que o dueto Cauby Peixoto e Elis Regina cantando Bolero de Satã”.

Escuto pela enésima vez a música e viajo no drama de uma paixão que se consome em um único dia; nasce fulgurante e morre dramaticamente na aurora de uma nova manhã. Enquanto desvio dos motoristas afoitos e desvairados imagino a gravação desse momento especial da música. Elis começa seu lamento dizendo:

Você penetrou como o sol da manhã
E em nós começou uma festa pagã
Você libertou em você a infernal cortesã
E em mim despertou esse amor
Atormentado e mal de Satã

Depois ela continua a nos envolver, dizendo da dor da separação inexorável, já na manhã seguinte, e nos fala da paixão como uma doença inoculada, aguda e incurável. Acusa sua amante de um feitiço destrutivo e doentio, pois que eterno em sua dor. “Você me plantou a paixão imortal e malsã, que me enraizou e será meu maldito final… amanhã.

E aí, quando a música repete os acordes e o som – por uma fração de segundo – parece desaparecer, eu posso ver diante dos meus olhos um enorme spot de luz se abrindo, varando a escuridão do palco e, saindo de trás das cortinas negras, aparece a figura bizarra, exótica e invulgar de Cauby Peixoto. Vestido com um indefectível smoking negro com abotoaduras douradas e balançando sua cabeleira negra e histriônica, ele abre sua inconfundível e poderosa voz de veludo e, sem dó, nos fuzila:

E agora me aperta a aflição
De chorar louco e só de manhã
É a seta do arco da noite
Sangrando-me agora
São lágrimas, sangue, veneno
Correndo no meu coração
Formando-me dentro esse pântano de solidão.

Eu sei que os jovens não vão entender, até porque nunca conheceram ao vivo estes luminares da música brasileira. Sei também que essa explicação soa para muitos como as palavras de minha mãe falando de Chico Alves ou Orlando Silva. Eu sei, eu sei… é um papo de velho, saudosista, cafona. Um texto com cheiro de mofo. Sei tudo isso.

Mas tenho mais de meio século de vida. Posso dizer que, agora sim, já tenho esse direito.

A foto acima é a projeção de como estaria Elis se eu tivesse abandonado a minha lua de mel para resgatá-la… Mas, se querem entender o que estou falando, cliquem no link abaixo, escutem e me digam se não tenho razão…

1 comentário

Arquivado em Pensamentos

Futebol

Sim, sempre fui um apaixonado pelo futebol. Ontem fiquei sabendo de um colega que está abandonando os estádios, deixando de assistir partidas do seu time e devolvendo a carteira de sócio. Quando perguntado da razão para tal ele disse: “Não quero que meus filhos sejam influenciados pela violência, o “dinheirismo”, as maracutaias e a paixão irracional pelo futebol“. Uma bela atitude de um pai preocupado com o futuro de seus filhos. No meu caso, eu passei esse gen para a minha filha, que sofre como eu. Já meu filho, cartesiano, racional e agnóstico, a peste da paixão futebolística passou e não desenvolveu a doença. Seus anticorpos racionais foram efetivos para neutralizar o ataque do vírus pernicioso da paixão clubística.

Mas… há lugar, nos dias de hoje, para o futebol enquanto espetáculo de massa? Se entendemos o esporte de forma geral como um apaziguador testosterônico, um civilizador de batalhas e um amortecedor para a nossa natural propensão destrutiva, ele pode ser validado?

Eu creio que sim… aliás, o futebol é o escoadouro de nossas frustrações, o lugar onde existe mais verdade e mais sinceridade na cultura ocidental. Ali, como no carnaval, abrimos uma porta para a expressão pura de nossos ódios, rancores, frustrações e traumas. Somos muito mais verdadeiros na arquibancada do que numa cerimônia de formatura ou entre os lençóis. No local sagrado dos embates do esporte bretão as pessoas se tornam naturalmente mais transparentes, porque se lhes oferece uma capa de proteção social. “Tudo bem, eu briguei no estádio. Bati num velhinho, mas tu vi a roubalheira do juiz para cima de nós?”

Quantas vezes eu e o meu irmão Roger vimos demonstrações claras e inequívocas de racismo na torcida que seriam inadmissíveis em outros contextos. Quantas vezes assistimos raivas, brigas, socos, voadoras e xingamentos que surgiam da explosão de emoções que confluíam para aquele momento. Nada mais livre e puro do que nossas mais profundas emoções encontrarem um canal de manifestação socialmente aceita.

Mas, também é verdade que ali a paixão é mais cristalina, translúcida, quase infantil. Somos mais verdadeiros quando somos expostos às paixões primitivas. Ali aparece um pouco mais da verdade do sujeito. Todavia, brota dessa constatação uma dúvida: queremos de verdade que as pessoas sejam “sinceras”, “autênticas”, “verdadeiras” e “transparentes”? Eu creio que não… O processo civilizatório nos ensinou a mentir, respeitando o sentimento alheio. A civilidade, assim construída, nos oferece a hipocrisia como ferramenta fundamental de convívio. O brilhante filme “A Invenção da Mentira” – com Rick Gervais – deixou para mim essa realidade muito evidente…

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos