Arquivo do mês: março 2024

Chuva

… e de repente as cores se modificaram. Um silêncio oco se apressou a sussurrar nos meu ouvidos que a tempestade dobrava a esquina e vinha bater à porta. De súbito o hálito frio da chuva trouxe às minhas narinas o cheiro do saibro molhado misturado com as folhas da laranjeira. Vou sentir saudades quando tamanha explosão de vida me for interditada. Guardarei o frescor destas gotas por sobre as rugas da pele como uma tatuagem colorida na memória dos sentidos.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Empatia

Ficamos naturalmente horrorizados com o holocausto judeu na segunda guerra mundial ou com as circunstâncias terríveis para os habitantes da Ucrânia na atualidade. Para quem tem mais idade, os horrores causados pelos nazistas contra a população de judeus, ciganos, homossexuais etc. ainda estão em nossa memória, mostrando o poço profundo de maldade e miséria humana em que a humanidade é capaz de se envolver em busca de poder. Imagens desses desastres humanos, quando mostradas, ainda hoje causam imediata reação. É simples e natural sentir em nós mesmos o sofrimento a que foram (ou ainda são) submetidos aqueles que sofreram a perversidade de uma guerra. Entretanto, se houver uma consciência mais ampla das razões que nos fazem sofrer pela dor alheia, é forçoso considerar que tais dores são consideradas indignas e insuportáveis apenas porque as vítimas são brancas, falam nossas línguas e parecem muito conosco. É esse este espelho de nós mesmos que torna possível estabelecer uma conexão com elas. A semelhança permite que nos vejamos dentro de suas peles claras e europeias.

Por outro lado, para nós é fácil produzir uma capa de proteção contra o horror da opressão criando um isolamento emocional. Basta para isso que os martirizados sejam os congoleses – destruídos pelo Rei Leopoldo – quando são os milhões de chineses as vítimas – massacrados pelos japoneses – ou quando quem sofre são os vietnamitas, os coreanos, os afegãos e os sírios destruídos pelo Império americano, composto por brancos cristãos e tementes a Deus – como nós. Essa é a razão que nos faz chorar por uma falsa agressão contra mulheres israelenses mas não nos faz pegar em armas ao ver a brutalidade do holocausto palestino, a morte de milhares de mulheres e crianças, o bombardeio de hospitais, a morte de médicos, enfermeiras e jornalistas e a fome e a sede produzidas pelo sionismo.

Nossa empatia é por semelhança; temos afeto por golfinhos – que parecem sentir e agir como humanos – mas não por atuns, que vivem no mar e são tão grandes e bonitos quanto os golfinhos. Nossa simpatia é seletiva, e parece ser despertada apenas com gente parecida com a gente e por esta razão, para que a paixão de Cristo fosse dolorida em nossa própria carne, era preciso construir um Jesus loiro, caucasiano e de olhos azuis. Pouca importância seria dada a um preto revolucionário, anti-imperialista, revisionista judeu, se sua pele fosse morena e seu cabelo preto e enrolado. Foi preciso ocidentalizar o Cristo, torná-lo palatável para, só assim, ser consumido pelos consumidores europeus. . Isso pode ser visto de forma muito simples nas coberturas de guerra, tanto nos conflitos da Ucrânia, ode os jornalistas deixavam claro que as mortes aconteciam com “gente loira e de olhos azuis” e que por isso deveriam ser repudiadas, ao mesmo tempo em que mortes de israelenses ganham muito mais atenção – e impacto – do que as milhares de mortes que ocorrem há mais de sete décadas na Palestina, e que agora atingem sua face genocida mais explícita.

Enquanto nossa empatia for pela cor da pele – qualquer uma – e não pelo que existe de humano que habita em cada um de nós, não poderemos receber o nome de “humanidade”

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Mestre

Uma vez eu estava debatendo com colegas da humanização do nascimento nos “list servers” que existiam na época e chamei um colega médico de “mestre”. Imediatamente uma doula do seu estado me chamou em privado pelo Messenger dizendo “Não o chame de mestre. Ele não é o que parece”.

Achei um pouco duro; afinal não havia qualquer discordância entre o nossas perspectivas. Chamá-lo de “mestre” seria uma sutil deferência, uma forma de mostrar minha adesão aos nossos pressupostos compartilhados. Entretanto, com o passar dos anos, percebi que ela tinha razão. O colega tinha uma retórica humanizada, mas uma prática muito centrada em suas necessidades pessoais, a ponto de sacrificar os desejos de suas pacientes em nome de seus compromissos.

Esta é uma questão bastante prevalente neste debate, e por isso eu costumo citar tanto as palavras de Vladimir: “O critério da verdade é a práxis”, ou seja, não há verdade consistente que não seja estabelecida sobre a realidade da prática. Não há mentira que sobreviva se for desmentida pelos fatos. Esta foi a questão dos partos domiciliares na história da obstetrícia: na teoria eles seriam mais perigosos porque as ferramentas existentes no hospital estariam ausentes no domicílio. Desta forma, a distância do centro obstétrico, moderno e tecnológico, aumentaria os riscos e os resultados inevitavelmente seriam piores. O que a prática dos partos domiciliares planejados demonstrou é que os riscos teóricos não se expressam na realidade dos fatos, da prática cotidiana, nos números e nas análises frias. Partos assistidos em casa são tão seguros quanto os partos de risco habitual atendidos em ambiente hospitalar. A ideologia foi, então, obrigada a se curvar à realidade material.

Entre os humanistas do nascimento podemos aplicar a mesma perspectiva. De nada adianta um discurso bonito, ideias profundas e uma vinculação ideológica com os pressupostos da humanização do nascimento sem que isso se traduza em diferentes resultados na sua atuação como profissional. Por isso é que, diante de uma promessa de atenção diferenciada, guiada pelo ideário do parto fisiológico, mais importante é investigar a realidade dos seus partos, a taxa de cesarianas, o índice de episiotomias, a quantidade de intervenções, etc. Nenhum falso mestre passa por este teste.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto

Cavadinha

O Internacional, clube de Porto Alegre, perdeu para o Juventude de Caxias a vaga para a final do campeonato gaúcho 2024 nas penalidades, após os empates em 180 minutos de disputa. O último pênalti do Inter foi cobrado por um garoto revelação, 23 anos, de “cavadinha”, o que deixou crônica desportiva e torcida furiosas. Na sequência o jogador Kelvi marcou e o Juventude fez a festa no Estádio Beira Rio.

É minha convicção que esse guri, o Robert Renan (nome característico de boleiro), por ser de fora e muito jovem, talvez não tenha percebido o que estava em jogo naquela disputa por penalidades máximas. Não era apenas uma semifinal de campeonato regional; era a esperança de tirar o Internacional de uma fila de longos 7 anos sem vitórias. Esse gauchão, para o Inter, valia o mesmo que o de 1977 para o Grêmio: um mundial de clubes. É possivel que, por não ser da aldeia, não entendeu a gravidade da situação. É isso que reclamam dele: a displicência e o descaso com o drama colorado.

Compare com o Luiz Suárez dando uma “cavadinha” na última partida pelo campeonato brasileiro do ano passado, contra o Fluminense no Maracanã. O Grêmio já ganhava o jogo – que não valia absolutamente nada – e a partida marcava a despedida de Suárez do Brasil e do Grêmio; também para o Fluminense a partida não passava de um apronto para o mundial. Para o avante gremista errar não significaria nada: o Grêmio ainda continuaria ganhando por 2 x 1 e ele se despediria após o jogo. Foi uma cobrança festiva, de despedida do Grêmio, do Brasil e do futebol competitivo de verdade. Foi sua derradeira partida como jogador de futebol (ele agora pratica “soccer”), e a cobrança do “penau” foi o espetáculo que se viu.

Já o pênalti contra o Juventude era vida ou morte para o Internacional. É essa a indignação do grupo de jogadores – há relatos de que, por pouco, não houve vias de fato no vestiário após a partida – e ainda mais indignante foi esta atitude para a torcida machucada e magoada do seu clube. Ele não conseguiu a empatia essencial para incorporar a angústia colorada pela busca de um título a tanto tempo sonhado. Faltou a ele a maturidade para entender o momento grave pelo qual o clube passa.

A culpa é do técnico que sequer sabia que ele já havia cobrado penalidades assim“, dizem alguns. Difícil dizer. O rapaz foi mesmo irresponsável. Mas uma coisa pode ser dita: o Inter ter um time com bons valores, jogadores caros e de renome, mas carece de jogadores da base. O Inter nos últimos anos deixou de ser “celeiro de ases”; todo mundo é estrangeiro. Isso dificulta o aparecimento de algo que eu valorizo muito: o boleiro que joga pela camisa, quem tem historia no clube e desrnvolve por ele gratidão e afeto. Não peço que sejam “amadores”, que joguem por amor ao time; isso acabou há 100 anos. Porém, creio que uma vinculação mais forte com o clube impediria uma atitude irrefletida como esta do Robert Renan, que atira o clube em mais um buraco difícil de sair.

Sim, mas ele é um garoto. Se eu fosse enumerar as tolices que fiz aos 23 anos seria um texto longo e enfadonho. Ele vai se recuperar e vai voltar a jogar em alto nível. Espero que essa queda o faça crescer como pessoa, cidadão e atleta, e que em sua vida colecione inúmeras vitórias.

Mas nenhuma contra o meu Grêmio.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Contra o sionismo

O jornalista Breno Altman tem feito um périplo pelo Brasil – e até pelo exterior – para a divulgação do seu livro “Contra o Sionismo”, e está obtendo um enorme sucesso. Um grupo crescente de pessoas começa a se interessar nas questões da Palestina, porque ela concentra de forma muito didática as grandes questões dos últimos 100 anos: colonialismo e imperialismo. Ele tem se tornado a mais importante voz da esquerda na luta contra os massacres do governo fascista de Israel na Faixa de Gaza, em especial pela sua condição de judeu antissionista. Pois, para surpresa apenas daqueles menos avisados, Breno teve sua presença contestada na Universidade Federal de Santa Catarina pela pró-reitoria de “Ações Afirmativas e Equidade” desta universidade, que recomendou a retirada do apoio à sua palestra por seu conteúdo “antissemita”.

Todos sabemos do interesse de grupos ligados à Israel em fomentar a confusão oportunista e mentirosa entre antissemitismo (que deploramos) e antissionismo (que é o tema da palestra e foco da nossa luta). Por que então o repúdio desse setor da Universidade ao evento? Quem está por trás da condenação a esta conferência? Quem se opõe ao debate que vai se seguir e a quem interessa censurar as vozes que denunciam o holocausto palestino? Ora, a pró-reitora responsável por este repúdio à luta anticolonial chama-se Leslie Sedrez Chaves, uma mulher negra, feminista, acadêmica e reconhecida pela sua luta antirracista. Todavia, cabe perguntar: se ela tem todos esses predicados, por que se posiciona na contramão da luta antirracista na Palestina? Por que se coloca a favor de Israel e da opressão do povo Palestino? Por que vira as costas ao clamor de milhões que, no mundo inteiro, condenam o fascismo, o Apartheid, a violência desmedida e a morte de crianças e mulheres, que já ultrapassam os 30 mil? Para entender esta dinâmica é necessário aclarar vários pontos:

  1. O identitarismo é uma força conservadora, individualista e à direita no espectro politico. É uma corrente de pensamento surgida dos think tanks do partido democrata americano para obstaculizar as perspectivas revolucionárias e a luta de classes. Não possui uma visão abrangente da sociedade e seu foco é a visão fragmentada desta, entendendo as identidades como recorte estanques sobre os quais é possível agir sem agir em toda a complexidade social,
  2. Ser mulher, negra, feminista e antirracista não garante uma postura progressista e em defesa das lutas de classe e em favor dos outros povos que sofrem opressão e são vítimas das forças imperialistas. A negativa em apoiar a Palestina em sua luta anti-imperialista é um exemplo claro dessa visão tubular da sociedade, ignorando a dinâmica econômica que a controla, muito mais do que os gêneros, cores de pele ou orientações sexuais.
  3. O lobby sionista, que age através de ONGs imperialistas (StandWithUs e aqui no Brasil a CONIB), tem uma enorme pervasividade, atingindo todos os setores da sociedade. Estas instituições se ocupam em atacar a oposição crescente das sociedades do mundo inteiro aos desmandos e crimes contra a humanidade perpetrados por Israel com a conivência e apoio dos Estados Unidos. Esta adesão aos pressupostos identitários e a favor do sionismo corrói a consciência de classe que lentamente estamos construindo. O mesmo processo que ocorre na luta antirracista ocorre também na luta feminista, no movimento LGBT e até na humanização do nascimento. 

Esta Pró-Reitoria não tem capacidade de veto, muito menos de impedir a palestra do camarada, porém sua postura reacionária deve aumentar ainda mais o interesse pela conferência de Breno Altman, marcada para o dia 3 de abril 2024 no auditório central da Universidade. Cabe a todos nós darmos a resposta a esta tentativa de calar as vozes que lutam contra a chacina contra o povo palestino.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Palestina

Protocolo

Logo após o término da faculdade e da residência comecei a trabalhar em um hospital de periferia onde o atendimento era 100% SUS. Eu era o responsável pelo atendimento nas sextas-feiras no Centro Obstétrico, e acredito que aquele plantão, pelas características de atender pessoas desconhecidas que haviam realizado pré-natal no sistema público de saúde, foi uma forma bastante desafiadora de levar adiante a prática dos elementos fundamentais da humanização do nascimento. Eu tinha na mente uma clara inconformidade com a forma como aconteciam os atendimentos ao parto, mas além dela uma perspectiva humanista, centrada nos elementos constitutivos do sujeito, que mesclava os fatores físicos, hormonais e mecânicos mais grosseiros com os elementos sutis, emocionais, psicológicos, sociais e espirituais das mulheres que estavam parindo seus filhos. Esse foi o terreno fértil para uma postura de confrontação ao modelo alienante da obstetrícia dos anos 90.

Na época destes plantões eu criei um programa para uso pessoal que chamei de PAOH – Protocolo de Atenção Obstétrica Humanizada, que nada mais era do que uma lista de princípios gerais para que me orientariam no projeto de otimizar resultados. Para mim, o objetivo mais importante é de que o parto fosse realizado com o máximo de segurança, e que culminasse com o nascimento de um bebê saudável e de uma mãe que tivesse obtido, além do seu bem-estar, todo o proveito da experiência. Para além da mera sobrevivência – o essencial – era fundamental oferecer à experiência do parto a possibilidade de alavancar o crescimento pessoal. Partos fisiológicos, bebês saudáveis, contato precoce, amamentação livre, fortalecimento dos laços familiares, etc. O protocolo era composto de 6 elementos simples:

1. Ambiente propício

Muito já se falava à época dos trabalhos de Frederik Leboyer e seu “nascimento sem violência”, e o quanto as interferências de luz e som na condução do parto tinham a potencialidade de atrasar e prejudicar seu bom andamento. Por esta razão, decidi que uma das mais importantes ações para garantir a segurança do parto seria diminuir tanto o barulho quanto os estímulos visuais na sala de parto. Os partos assim seriam conduzidos no silêncio e na penumbra, para não interromper o fluxo fisiológico do parto e favorecer o “apagamento neocortical”. A ideia era tratar o parto como “parte da vida sexual normal de uma mulher”, como afirmava Michel Odent, e ter os mesmos cuidados de privacidade e intimidade das relações sexuais. Com isso esperávamos diminuir a adrenalina circulante e aumentar os níveis de oxitocina entre todos os participantes da cena do parto.

2. Suporte psico-afetivo

Eu acreditava nas premissas básicas do obstetra britânico Grantly Dick-Read e sua ênfase nas questões ambientais para o sucesso do parto. Esta é uma das razões pelas quais partos conduzidos por mulheres compassivas – parteiras profissionais – têm mais sucesso do que aqueles conduzidos por figuras técnicas cuja vinculação afetiva é muito mais difícil: os médicos e cirurgiões. Desta forma criei o compromisso de não me afastar das pacientes durante todo o processo, ficando acessível aos seus pedidos e queixas para quando elas achassem necessário. Também acreditava que o acompanhante poderia trazer inúmeros benefícios para a condução do processo, e estimulava a presença do marido ou de qualquer outro acompanhante de livre escolha. O que hoje parece simples, há 35 anos era uma batalha diária.

3. Posição verticalizada preferencial para o parto.

Minha experiência com a posição de cócoras para parir já foi descrita no meu primeiro livro “Memórias do Homem de Vidro”, mas quando construí este protocolo – no fim dos anos 80 e início dos anos 90 – eu já estava absolutamente apaixonado pelos resultados que eu mesmo havia observado, e no que era possível encontrar em trabalhos e livros (como “Aprenda a Nascer com os Índios”, de Moysés Paciornik). Mais tarde esta recomendação deu lugar a uma proposta muito mais aberta, que garantia às mulheres a liberdade para escolher a posição que mais lhes agradava. Entretanto, no início desta caminhada, era preciso ser mais enfático e mostrar de forma bem explícita algo que a cultura havia sonegado: a vantagem das posições verticais e uma ergonomia mais fisiológica, natural e segura para o nascimento dos bebês. Também não foi fácil chegar a este ponto: colegas médicos me acusavam de “humilhar as mulheres”, fazendo que parissem como “galinhas botando ovos“.

4. Uso restrito e criterioso de medicações, sempre que possível

Toda medicação tem efeitos indesejáveis e com repercussões imprevisíveis. É notável a crescente drogadição da sociedade, e isso é uma preocupação das grandes organizações internacionais relacionadas à saúde pública. A simples “correção de dinâmica” (melhorar as contrações) através do uso de uma droga chamada “oxitocina sintética” pode levar a uma “taquissistolia” (aumento na frequência das contrações) que tem a potencialidade de criar grandes riscos para o bebê, inclusive produzindo stress fetal – que leva a cesarianas de urgência. Assim, todas as drogas utilizadas, incluindo aí os antibióticos, uterotônicos, etc, só poderiam ser utilizados de forma muito criteriosa; caso contrário deveriam ser evitadas.

5. Uso restrito de intervenções e manobras, sempre que possível

Boa parte das manobras médicas em obstetrícia parte de uma lógica perversa: a crença de que as mulheres são incapazes de levar adiante a tarefa de gestar, parir e maternar sem a intervenção da tecnologia e dos profissionais que a controlam. Desafiar essa ideia, encarando as mulheres como intrinsecamente capazes de realizar o trabalho multimilenário de parir, significaria questionar o poder médico exercido sobre seus corpos grávidos. Isso jamais aconteceria impunemente; todavia, quando testemunhamos setores da sociedade, como a classe média, que ostentam taxas inacreditáveis de intervenção – tipo, 90% de cesarianas – fica claro que, mais cedo ou mais tarde, alguém questionaria este tipo de intromissão abusiva, perigosa e sem respaldado na ciência sobre os corpos das mulheres grávidas.

6. Trabalho com as doulas

Meu trabalho com as doulas se iniciou nos estertores do século passado quando tomei contato com as mulheres que se dedicavam a dar suporte afetivo, emocional, psicológico e físico para as mulheres durante o processo de parir. Elas ofereciam uma parte da atenção que a mim era interditada: o profundo contato físico e amoroso oferecido às gestantes durante o trabalho de parto. Além disso, elas ofereciam o toque, o apoio emocional, o cuidado com o ambiente, o auxílio à família e a sintonia feminina que se pode testemunhar entre a doula e a gestante sob seus cuidados. Foi uma grande descoberta, pela qual eu me apaixonei e dediquei décadas da minha vida à sua divulgação, formação e disseminação. Infelizmente, esse foi um item acrescentado à posteriori, pois no início da década de 90 aquele centro obstétrico não estava preparado para a revolução das doulas, e os responsáveis pelo centro obstétrico jamais aceitariam sua presença nos partos.

Esse protocolo foi usado durante toda a minha vida profissional, mas jamais me iludi com o fato de que isso incomodaria os donos do poder, os mesmos que olhavam a taxa crescente de cesarianas e outras intervenções no ciclo gravido-puerperal sem criticar. Não havia nenhum debate acadêmico, no meio onde eu atuava, que questionasse onde esta escalada intervencionista nos levaria. Todavia, como diria Vladimir, “O critério da Verdade é a práxis”, e desta forma percebi que eu só teria certeza da justeza de tudo que era publicado a respeito das vantagens da perspectiva humanista para o nascimento quando isso se tornasse algo além das letras dispersas em livros e estudos, e se tornasse prática cotidiana de assistência. Era preciso que alguém colocasse mãos à obra e praticasse o que era oferecido pela ciência contemporânea, mesmo que esta atitude afrontasse diretamente os interesses corporativos.

Na época em que eu atendia naquele hospital as taxas de cesariana eram da ordem de 45% – muito maiores (o triplo) do que o recomendado pelas grandes agências como WHO ou OPAS – mas as minhas taxas pessoais de cesariana giravam ao redor de 10 a 15% dos partos, o que comprovava a ideia de que era possível diminuir esses números, bastando para isso um desejo de mudança associado à coragem de fazê-lo. Minhas cesarianas obedeciam critérios muito rígidos para sua execução, e por causa disso logo senti a antipatia dos anestesistas “Por que você não marca suas cesarianas para antes da novela? Seus colegas sabem de antemão quais os partos que ‘não vão ter passagem’; só você nos chama de madrugada”. Não só dos anestesistas percebi antagonismo; era evidente que para os médicos ditos “cesaristas” meu exemplo era um prejuízo para o trabalho que faziam. Assim, é possível imaginar a dificuldade em trabalhar sem a colaboração de pessoas da equipe que, por razões de conforto pessoal, não aceitavam alguém que atuasse em favor das mulheres, seus desejos, seus direitos e sua segurança.

Alguns anos depois de iniciar este trabalho encontrei um velho colega de residência que decidiu trabalhar no interior do Estado, na cidade da qual era originário. Quando me viu, perguntou se eu continuava com as mesmas ideias “estranhas” do tempo em que trabalhamos juntos no hospital onde fizemos a residência, tipo “parto de índio”, “contato pele a pele”, “marido na sala”, “crítica às episiotomias” e uma aversão ao “abuso de cesarianas”. Respondi que sim, que continuava com muita esperança que estas ações pudessem revolucionar a prática obstétrica, mesmo que levasse muito tempo para isso. Sua resposta foi maravilhosa, e a mantenho até hoje na memória para entender como se processam as mudanças.

Admiro sua persistência. Já eu faço o que eles querem. Meus partos são bem  tradicionais, como são feitos desde os anos 30. Tenho uma taxa muito alta de cesarianas, e não me envergonho disso. Nunca discuto alternativas; pacientes não podem controlar os médicos. Não quero ser acusado de nada, e não quero mudar nada; para mim está muito bom assim. Mas, é claro, concordo com suas ideias, apesar de que jamais as levaria adiante. Não sou kamikaze.

Naquela época um velho médico, próximo da aposentadoria, me disse uma frase que resumiria esta situação de forma muito didática. Segundo ele, “Existem dois tipos básicos de médicos: uns desejam resolver os problemas de seus pacientes, enquanto os outros querem resolver os seus problemas através dos pacientes. Cabe a você – e só a você – escolher a qual grupo deseja se juntar.”

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Histórias Pessoais

A Febre do Futebol

Eu lembro que na minha época de garoto, na virada dos anos 60-70, os salários dos jogadores da dupla Grenal eram semelhantes aos proventos de um médico ou advogado bem sucedidos; eram salários de classe média. Naquela época o dinheiro que circulava no futebol era pouco, mas a economia do país também era muito menor, uma fração do que é agora. Não havia ainda transferências de jogadores para a Europa, algo que só começou pra valer nos anos 80, com as vendas de Falcão para a Roma, Maradona para o Napoli e Zico para a Udinese – três grandes craques vendidos para times de segunda linha do futebol europeu. Lembrem que a grande seleção brasileira de 1970 tinha 100% de jogadores jogando no Brasil, inclusive o gremista Everaldo.

“Naquela época o futebol era muito mais humano”, como dizia meu irmão e saudosista profissional Roger Jones. Quando estava no colégio, todos os dias eu passava na frente do edifício onde moravam dois jogadores titulares do grande time do Internacional dos anos 70 ‐ Carpegiani e Tovar – que ficava na esquina da Av. Getúlio Vargas com a Rua Botafogo. Era (ainda é) um edifício simples, parecido com o que minha família morava algumas quadras adiante, no mesmo bairro Menino Deus que encantou Caetano Veloso. Na rua dormia o carro do Carpegiani, que era um “opalão” verde. Sim, nos anos 70 os carros dormiam na rua porque os edifícios mais antigos não tinham garagens. A gente conhecia o carro, passava por ele todas as manhãs no caminho para o Infante Dom Henrique, mas jamais pensamos em vandalizar, apesar de sermos gremistas. Esse ódio de torcidas ainda não tinha nascido, e o mais radical que existia era a flauta, o deboche e a galhofa, mas não a violência.

Outro fato curioso aconteceu quando eu já estava na faculdade. Ainda morando no Menino Deus, eu tinha uma namorada no Partenon. Aliás, a mais linda namorada que eu já tive, além de ser a única. Eu costumava pegar um ônibus, o T2, para ir na sua casa e, em uma dessas viagens, sentaram-se no último banco do T2 e logo atras de mim, dois jovens negros. Começaram a conversar e pelo conteúdo da fala percebi que eram jogadores do Internacional. Passados mais alguns minutos me dei conta que um deles era o zagueiro central titular do Inter que estava falando do interesse do Bahia em comprar seu “passe”. Hoje em dia, quando existem páginas dedicadas a descrever os carros impressionantes dos jogadores, é inacreditável pensar que há 40 anos um jogador titular de um grande clube pudesse andar de “busão”.

O futebol está passando por uma crise existencial muito grave, mas ela não se desenvolve em um vácuo conceitual. Ela é fruto da crise do capitalismo, que se manifesta em todas as dobras do tecido social. Os valores astronômicos pagos a jogadores – em boa parte atletas medíocres – e a eliminação do povo das arquibancadas das modernas arenas são uma demonstração clara da necessidade de alienar o gozo da vida a seus representantes, os heróis, gladiadores modernos, que usufruem – por nós – do gozo que nos é sonegado. Para isso pagamos valores obscenos, imorais e indecentes. Os jogadores não tem culpa disso, são apenas os vetores dessa nossa angústia, nossa insatisfação, nossa dor. “Se minha vida é um lixo, pelo menos meu time é campeão”, diz o torcedor padrão. Se não vejo sentido ou esperança na luta de classes, ao menos pagarei minha mensalidade para que minha equipe seja a grande vencedora.

Eu não acredito que a bolha do futebol vá estourar antes de uma grande crise global do capitalismo. Alguns países, como a Argentina, já saltaram na frente. Seus grandes craques já saem de lá muito cedo, empurrados pela crise econômica grave causada por esse mesmo capitalismo concentrador decadente. Não há dúvida que, mais cedo ou mais tarde, o mesmo vai ocorrer no Brasil e no mundo. O futebol também terá um choque de realidade da mesma forma como a “Febre das Tulipas” terminou na Holanda, e teremos valores circulando no futebol mais próximos da realidade do povo que o sustenta. Quem sabe no futuro os jogadores vão voltar a morar perto da sua casa e terão carros comuns na garagem.

Veja mais aqui

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Os burgueses

Tenho um amigo que por muitos anos se dedicou ao trabalho com os necessitados. Pertencia à uma ONG que constantemente precisava de dinheiro para bancar alimentação e estudos para crianças em situação de rua. Por essa atividade, tornou-se um “pedinchão” profissional: procurava o departamento social de empresas para que fizessem doações à sua causa. Passou anos a fio nessa atividade. Certa feita foi levado a conversar com a mais rica empresa do Estado, que costumeiramente auxiliava a sua e outras instituições de suporte social. Nesta circunstância foi convidado a falar com a esposa do presidente em sua própria casa, pois que ela coordenava o setor de assistência social, como é comum ocorrer com as “primeiras damas” destas megaempresas. Esse encontro com um membro da burguesia o marcou profundamente.

Meu amigo descreveu os pormenores do encontro, assim como da casa, com detalhes indispensáveis: os seguranças, como foi recebido pelos criados da casa, os móveis, o interior da mansão, a espera pela chegada da “madame” e a breve conversa que tiveram, onde em poucas palavras ele descreveu o projeto da sua instituição. Saiu do encontro com a promessa de que lhe seria dado pelo menos uma parte dos recursos que precisava. O relato do encontro nos seus aspectos pessoais também é bem esclarecedor. Disse-me este amigo que, apesar da riqueza e da opulência, os anfitriões do breve encontro eram “pessoas muito simples”, “cordiais”, “educadas” e que ouviram atentamente suas explicações sobre os planos da instituição e suas necessidades financeiras. “Eles são gente como nós”, me disse ele, com um sorriso.

“Não há dúvida que somos feitos da mesma matéria frágil que os constitui”, pensei eu. Entretanto, em uma sociedade estratificada em classes, estamos inexoravelmente distantes e, mesmo que de forma artificial, habitamos mundos bastante diferentes. E para entender o universo sofisticado onde transitam e os valores que mobilizam estas pessoas é importante armar-se com a devida consciência de classe. Esse encanto pelo glamour dos ricos e a percepção enganosa de sua “simplicidade” me fez lembrar outra história. Certa feita, uma amiga, que também é uma famosa doula, foi convidada a atender uma paciente do outro lado do mundo – literalmente. Para isso foi buscada de avião duas semanas antes do parto e ficou hospedada aguardando o trabalho de parto em um dos inúmeros aposentos da mansão da família mais rica daquele país – uma riqueza vinda do império de comunicação que seu pai havia criado. Sua descrição do jovem casal de herdeiros foi muito semelhante à do meu amigo. Para ambos, o contato com a aristocracia, mesmo que em níveis diferentes, foi uma experiência marcante, e para eles os ricos eram essencialmente iguais a nós: pessoas simples e humildes quando despidas de suas capas profissionais e quando deixavam de lado sua persona social. “They are simple people, just like us”, disse ela.

Contrariamente ao que dizia Hemingway, que afirmava que “os ricos são iguais a nós, apenas com muito mais dinheiro”, eu prefiro entender esse fenômeno da mesma forma como o jornalista Chris Hedges o percebe quando descreve a patologia dos ricos. Nascido de uma família de classe média baixa, sendo seu pai um pastor luterano e sua mãe uma professora, Chris Hedges foi agraciado com uma bolsa de estudos em uma escola frequentada apenas pelos extremamente ricos, local onde estudam apenas os filhos de bilionários dos Estados Unidos. Nesta condição de “penetra” em um mundo ao qual não pertencia, ou como um escafandrista que, sendo do mundo de ar explora um universo aquático, ele foi capaz de observar com olhar crítico os efeitos que a riqueza obscena – e o poder que dela deriva – produz nas pessoas, em especial nas crianças.

Sua experiência o fez entender esta concentração de riqueza como um tumor, uma doença corrosiva capaz de transformar tudo – e todos – em mercadoria, bens de consumo e utensílios precificados, os quais podem ser usados e descartados. O fato de viverem em bolhas onde as únicas pessoas do povo com quem convivem são criados e serviçais os faz acreditar – mesmo que racionalmente digam o contrário – que os outros, os que vivem fora da bolha, existem somente para servi-los. Sentem-se especiais, ungidos, eleitos de uma casta diferenciada. Como duvidar disso se todos ao seu redor se comportam como que confirmando essa percepção? Para Chris Hedges o dinheiro em quantidades praticamente infinitas destrói a humanidade que existe em nós, transformando-nos em máquinas de consumo. Sem a interdição do mundo real, como escapar da loucura?

Meus amigos, em seu breve contato com a vida dos aristocratas, deixaram-se seduzir pela aparente simplicidade de suas relações pessoais, sem se aperceber que se trata de uma máscara, uma estratégia de marketing. Aliás, a própria ação de “caridade” cumpre essa função: oferecer uma face humana à perversidade da sociedade de classes, e um alívio para culpas inconfessas. No íntimo existe na alma de todo bilionário a noção de que sua riqueza é imoral e que só ocorre pela expropriação do trabalho alheio. Muita gente se sacrifica para que sua opulência possa ser desfrutada e ele mesmo não precise trabalhar; seu dinheiro trabalha por si.

O mais chocante, para mim, nestes relatos foi a constatação de que os meus amigos realmente acreditavam estar na presença de pessoas “especiais”, devotando a eles a mesma reverência de um aldeão quando encontrava alguém da nobreza. Um encantamento que surge da crença arraigada na sociedade de classes, que nos faz crer que que somos intrinsecamente diferentes em nossa essência, e é esta essência o que nos oferece valor e mérito diferenciados. Uma sociedade verdadeiramente civilizada jamais permitiria que seres humanos fossem colocados em prateleiras diferentes no armário da vida. O deslumbramento dos meus amigos sinaliza que ainda estamos distantes dessa utopia.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Passagem ao Ato

Há alguns dias vi as imagens de um sujeito que passou a mão nas nádegas de uma mulher no exato momento em que ela saía do elevador. Esse acabou se tornando o assunto mais comentado nas redes sociais, porque este tipo de agressão mobiliza muito as pessoas, e a razão para este foco é sempre algo que deve ser investigado. Pelas imagens parece que ela era uma desconhecida, ou ao menos entre eles não havia qualquer intimidade, visto que ela ainda teve tempo de reclamar antes que a porta do elevador se fechasse. Ato contínuo, ele desce até o estacionamento, pega seu carro e sai correndo (parecia mesmo fugir da cena do crime).

Nas repercussões que se seguiram percebi a preocupação de todos com o abuso, com o fato de uma mulher ter sido tocada sem consentimento, o que me parece justo. Essa violência é decorrente do próprio patriarcado, que estabelece valores especiais sobre o corpo da mulher; tivesse o mesmo ato ocorrido com um homem e nada seria dito ou feito, no máximo uma rápida troca de socos. Mas, é compreensível que na estrutura social que temos hoje em dia esta atitude seja envolta em escândalo e considerada uma agressão injustificável.

E vejam: não me cabe julgar o sofrimento de quem passou por este tipo de agressão. O sujeito foi preso e vai pagar pelo crime que cometeu. Não se trata de minimizar o que ele cometeu, mas seguir um pouco adiante e tentar descobrir as reais motivações que levam um sujeito a “passar ao ato”, romper a fina película que separa a fantasia da realidade, colocando sua própria vida em um redemoinho destrutivo que ele provavelmente terá imensas dificuldades de se recuperar.

Desta forma, apesar do choque das imagens e da justa indignação da vítima com o abuso indecente, eu fiquei mais interessado em encontrar a resposta para a pergunta: o que faz um homem bem sucedido, casado, com filhos e bonito “passar ao ato” desta forma tão suicida? O que diabos ele pretendia com esse desvario? Por que o descontrole? Por que saiu correndo assustado? Pelo que pude observar das imagens ele não parecia um abusador contumaz, desses que sentem compulsão por cometer seus abusos em trens e ônibus, onde o risco de ser descoberto faz parte do frisson relacionado ao ato; ele parecia estar nervoso, até ausente, como alguém que perdeu o controle por breves instantes e logo se deu conta do erro absurdo que cometera. Mais tarde, ao ser preso no dia seguinte, teria dito à imprensa que sofre de transtornos psiquátricos.

Sua atitude, pela forma como foi feita, pareceu um surto – ou um pedido de socorro. Talvez haja uma questão emocional bastante grave ocorrendo por trás desta cena grotesca. Como teria ele sido capaz de romper as barreiras da interdição sabendo o quanto teria a perder? É evidente que, por causa disso, agora vê seu mundo desmoronar. Agora todos querem colocá-lo empalado numa estaca para queimá-lo vivo. Afinal, como ousa roubar nossas fantasias e levá-las adiante, enquanto nós aqui só nos encolhemos e recalcamos nosso desejo?

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Bacurau

“Nos EUA, Portugal e Alemanha, muitos brasileiros apoiam políticos que querem fechar fronteiras e fazer deportações. Já vi brasileiras aqui falando: ‘eles não são contra nós, casadas com alemão, são contra os refugiados’.” (Matéria da DW alemã)

Lembra muito Bacurau, não? Tenho conhecidos – imigrantes da Venezuela e do Brasil – que moram em Portugal e apoiam a extrema direita xenófoba do “Chega”, especialmente porque seu “guru”, o fascista André Ventura, ataca o presidente Lula como qualquer mentecapto bolsominion o faria. Sim, infelizmente em Portugal e nos Estados Unidos as colônias brasileiras são as mais reacionárias e fascistas do mundo. Mais deplorável ainda é o fato de que estes expatriados latinos acham que, por serem brancos, são diferentes dos imigrantes escurinhos árabes ou dos pretos brasileiros. “Veja, nós somos como vocês. Somos europeus também”, dizem eles, repetindo a fala dos personagens traidores de Bacurau, sem se darem conta que, para os habitantes de lá, somos todos “cucarachas” ou “brazucas”; não passamos no teste das cores. Somos como o leite, que deixa de ser branco bastando para isso receber uma única gota de café.

Essa falta de autoestima latino-americana é um escândalo e um atraso de vários séculos, e prolifera na classe média iletrada desse país. Se espalha na pequena burguesia que pouco lê, pouco viaja e muito se emporcalha com a propaganda imperialista, produzindo uma malta doente de xenofilia. É gente que acredita na superioridade dos europeus e norte americanos, e os enxerga mais nobres, justos e honestos do que nós, eternos subalternos no sistema de castas planetário. Tolos; mal sabem o quanto de corrupção, imoralidade e perversão existe nestes países ditos “desenvolvidos”, e o quanto a diferença entre eles e nós não está na sua essência ou na sua “cultura superior”, mas é artificialmente construída por uma narrativa imperialista, e seu desenvolvimento atual é obra de meras circunstâncias históricas e pela força brutal e genocida do colonialismo.

A unidade latino-americana ainda será uma grande potência econômica e tecnológica, apesar do combate incessante que recebe da direita entreguista – o Partido do Silvério dos Reis como dizia o jornalista Barbosa Lima Sobrinho. Todavia, para que a “URSAL” seja uma realidade vibrante e poderosa é necessário antes derrotar a mentalidade dos entreguistas de Bacurau, que ainda se acreditam Vikings loiros e de olhos claros.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos