Arquivo do mês: janeiro 2013

Tragédia de Santa Maria

Nesse momento de dor e sofrimento, em que estamos consternados e tristes pela tragédia que vitimou tantos jovens em Santa Maria, eu fico feliz em escutar minha filha falando da sua especial maneira de analisar o que ocorreu. Infelizmente muitas pessoas gastam seu tempo no justiciamento, na raiva, no ódio e com pensamentos de vingança. O que aconteceu para os proprietários dessa casa noturna, assim como para o jovem da banda (cujos nomes eu não quero saber), TAMBÉM foi uma tragédia, e nem os mais empedernidos e raivosos fascistas acreditam que eles, por algum momento, imaginavam que isso pudesse ocorrer, e muito menos que tinham o desejo de carregar o peso de tantas mortes pelo resto de suas existências. Mesmo reconhecendo como fundamental a apuração de TODOS os fatos relevantes deste caso, o que inclui a adequada punição dos culpados, o desejo de linchamento que eu percebo em muitas pessoas (inclusive jornalistas) é lamentável.

Pior ainda: quanto mais tentamos colocar as culpas nas pessoas (pois tal atitude parece nos confortar de alguma estranha forma) menos lições positivas tiramos do caso. A tragédia de Santa Maria precisa ser vista como um marco, a partir do qual as condições que lá estavam presentes não se repitam. Enquanto Fulano e Sicrano forem os culpados não se torna necessário olhar para dentro de nós e descobrir o que precisa ser mudado, o que está equivocado, inclusive nas nossas próprias atitudes.

Bebel me disse: “Perdemos tempo demais em atitudes ruins, pensamentos raivosos, disseminando as “energias negativas” do ódio, rancor e mágoa. Não vejo razão em odiar alguém em meio a tanta dor, e estes sentimentos jamais construíram algo de bom para a humanidade. Os responsáveis devem ser punidos pela lei, mas apenas para que suas culpas (onde houver) sejam reconhecidas e nos ajudem a evitar mais desastres, e não pelo prazer de ver mais gente sofrendo.

Nenhum ódio é capaz de trazer essas vidas de volta. Nenhum linchamento, físico ou moral, poderá nos ajudar. Espero que, entre as lições que a tragédia possa nos dar, o perdão e a compreensão possam estar presentes, tanto quanto a necessária e indispensável justiça para aqueles que cometeram erros.

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Entrevista

Entrevista com o médico obstetra Ricardo Jones, Janeiro/2013

O termo “parto humanizado” ainda é desconhecido por boa parte das mulheres. Então, do que se trata o parto humanizado? No que ele se difere do “parto normal”? 

Parto normal normalmente se refere a parto vaginal, aquele que ocorre de acordo com a programação normal do processo de parturição, fisiologicamente estabelecido que culmina de forma o mais natural possível. Usamos o termo “parto normal” para contrapor à cesariana, ou nascimento cirúrgico. O parto “natural” normalmente é aquele que também chama­mos de “humanístico”, ou “parto humanizado”.  O conceito de parto humanizado passa pelo entendimento da mulher como condutora do processo, colocada na posi­ção de protagonista, e não na posição objetual e coisificada na qual é frequentemente colocada na atenção obstétrica cotidiana. Sem a restituição do protagonismo à mulher todos os esforços na atenção ao parto poderão apenas sofisticar a tutela a ela imposta. Além disso, o parto humanizado se es­mera em oferecer às parturientes uma assistência baseada em evidências científicas atualizadas e um ambiente propício ao estado alterado de consciência que ocorre no transcorrer de um parto, principalmente pela ação do coquetel de hormônios que são produzidos durante o processo. A humanização do nascimento é uma corrente de pensamento que existem no mundo inteiro e que se propõe a dignificar o parto combatendo as interferências desnecessárias no processo fisiológico.

Sobre as intervenções, como elas são vistas pelos médicos humanizados? Existem algumas que são aceitáveis, ou o parto humanizado não admite nenhuma delas?

Intervenções no âmbito da assistência ao parto podem salvar a vida de ambos: mãe e bebê. Entretanto o abuso destas práticas está acima de qualquer consideração. É inegável que esta elas deveriam ser usadas em casos extremos, mas inegavelmente são utilizadas por razões outras além dos possíveis benefícios para a paciente. Entre as intervenções usadas de forma abusiva destaca-se a cesariana. Esta cirurgia de grande porte deve ser evitada dentro dos limites de segurança, pois aumenta consideravelmente os riscos para mães e bebês. Os números variam nas centenas de estudos que avaliam os riscos e be­nefícios das modalidades de nascimento, mas todos são categóricos ao afirmar que, de maneira inequívoca, a cesariana acrescenta riscos ao processo, por ser uma ci­rurgia e invadir a intimidade do corpo. Além dos riscos maternos, podemos afirmar que a cesariana dificulta grandemente a amamentação por atrapalhar o processo de vinculação inicial entre mãe e bebê imediatamente após o nascimento, naquilo que os pesquisadores Klauss e Kennell convencionaram chamar de “A Hora Dourada”. Além da cesariana sabemos que qualquer intervenção ao processo natural e fisiológico do parto apresenta riscos inerentes, pois não existe nenhum substituto para o nascimento natural que seja mais seguro do que o processo construído nos milênios de adaptação. Entretanto, em situações patológicas, algumas intervenções corrigem trajetórias perigosas para o binômio mãe-bebê. A utilização de drogas como o sulfato de magnésio em casos de pré-eclâmpsia (pressão alta no final da gravidez) é um caso exemplar. Antibióticos para o tratamento de infecções maternas, o uso de um hormônio, a oxitocina, para corrigir transtornos de contração do útero, assim como outras intervenções, podem trazer segurança e auxiliar no processo de parto em casos selecionados. Nossa crítica será sempre direcionada ao abuso de tecnologia aplicada ao parto, e não contra a essência da tecnologia aplicada em benefício do homem. O parto normal é o melhor aprendizado possível para os dilemas e dificuldades de criar um bebê pleno de necessidades e sequioso de aten­ção. Diante do questionamento frequente sobre os limites da utilização de tecnologia, eu estabeleci uma proposta de as­sistência humanizada ao nascimento que se assenta sobre um tripé conceitual:

  • O protagonismo restituído à mulher, sem o qual estaremos apenas “sofisti­cando a tu­tela” imposta durante milênios pelo patriarcado.
  • Uma visão integrativa e interdisciplinar do parto, retirando deste o caráter de “pro­cesso bi­oló­gico”, e alçando-o ao patamar de “evento humano”, onde os aspectos emocionais, fisiológicos, sociais, culturais e espirituais são igual­mente valorizados, e suas específicas necessi­dades atendidas.
  • Uma vinculação visceral com a Medicina Baseada em Evidências, deixando claro que o mo­vimento de “Humanização do Nascimento”, que hoje em dia se espalha pelo mundo in­teiro, funciona sob o “Império da Razão”.

Quais são as vantagens de um parto via vaginal tanto para a mãe quanto para o bebê?

Primeiramente, não existe nenhuma “desvantagem” em oferecer às mulheres o que existe de mais moderno em termos do que a ciência médica nos fala da segurança aplicada ao parto. O parto humanizado tem suas condutas “amarradas” aos protocolos mais atuais no que diz respeito à segurança e à proteção do nascimento, entendendo-o como elemento vital na estruturação do sujeito. Uma postura mais ativa e participativa prepara a mulher, e por consequência o casal, para os dilemas da maternagem e os cuidados com o bebê. Como diria a antropóloga Barbara Katz-Rothman, “Parir não é apenas fazer bebês, mas fazer mães capazes e competentes para enfrentar as dificuldades da maternidade”. Entre­tanto, a humanização do parto pressupõe uma participação efetiva do casal em todas as decisões. Desta forma, com a adoção de um modelo centrado na mulher, a alienação que frequentemente observamos nos partos institucionais no Brasil tende a diminuir, pois a gestante e seu companheiro passam a ser participantes do processo, ao in­vés de meros espectadores. A responsabilidade passa a ser compartilhada. Se é óbvio que os profissionais continuam a ser responsáveis pela parte técnica, é também verda­deiro que o casal passa a ter uma posição muito mais importante na tomada de deci­sões. É deste debate entre a proteção do protagonismo da mulher e a proteção dos profissionais que surgirá um modelo mais eficiente e seguro. Muitos países estão adiantados nesta discussão, que precisa conclamar os profissionais que atendem nascimentos, o poder público, o judiciário, os homens e, evidentemente, as próprias mu­lheres.

Assunto espinhoso, até imagino a resposta, mas é preciso fazer o papel de “advogada do diabo”: os médicos e ativistas pró parto humanizado são “contra” a cesárea (é a imagem que muita gente tem)? Como eles se posicionam em relação a essa cirurgia?

Quando se estabelece uma crítica contra o abuso de uma atividade é natural que muitas pessoas pensem que ela se refere ao “uso” desta conduta. Entretanto, o movimento de humanização do nascimento surgiu no mundo inteiro como uma crítica à prática inadequada, excessiva e abusiva destas intervenções sobre o nascimento. Jamais os ativistas da humanização se posicionaram contra um procedimento que pode salvar vidas, tanto de mães quanto de bebês. As nossas queixas se direcionam ao excesso de cirurgias, drogas e outros procedimentos utilizados sem uma devida investigação quanto aos potenciais malefícios à mãe e ao bebê. A cesariana é uma operação maravilhosa, capaz de resgatar para a vida mulheres que, sem ela, estariam condenadas à morte. Todavia, o abuso de sua realização vem evitando a necessária queda na mortalidade materna mesmo em países desenvolvidos como os Estados Unidos. Questionar os excessos na sua utilização é fundamental para implantar boas práticas e acrescentar segurança no nascimento.

O que o Sr. diria para uma mulher que prefere cesárea porque tem muito medo de parir naturalmente? 

Minha postura diante dessa escolha é a de acolher seus medos e tentar trabalhar com eles. Entretanto, negar à elas a possibilidade de escolher é que me parece inaceitável, mas poucas mulheres se aventuram a falar sobre isso, e preferem desfiar justificativas intermináveis. O problema para mim nunca foi mulheres escolherem cesarianas por medo de sentirem uma dor temida e imaginada, mas quando essa “dor” é estimulada por práticas arcaicas, pela solidão, pelo uso exagerado de medicamentos, pelo afastamento da família e pela absurda proibição da presença de doulas em alguns hospitais como vimos ocorrer ultimamente. Para estas mulheres acena-se com a cesariana salvadora, e para elas parece que esta é a única opção digna existente. Se o parto normal fosse imposto às mulheres eu também sairia às ruas como defensor das escolhas informadas. Infelizmente o que se lê nos debates sobre a cesariana ainda é a ladainha desagradável e anacrônica do “menos mãe” e as explicações enfadonhas para cesarianas realizadas, na sua maioria injustificáveis à luz da Medicina Baseada em Evidências.

Em que momento um parto humanizado pode virar uma cesárea? Essa cesárea pode ser “humanizada”?

Um parto normal poderá virar cesariana em qualquer momento em que os riscos de manter a assistência natural e fisiológica do parto suplantarem – de forma inequívoca e clara – os riscos inerentes de uma cesariana. Esse momento deveria ser de aparição muito mais rara do que ocorre na modernidade. Muitas vezes os médicos agem por medo e despreparo, realizando um procedimento invasivo e perigoso por terem medo das possíveis consequências para si mesmos do uso da paciência e do bom senso. Não consideramos que uma cesariana possa ser “humanizada”, pois, por ser ela uma cirurgia de grande porte e controlada por profissionais médicos, ela não é “feita” pela paciente, como um parto normal. Por essa razão, por lhe faltar o necessário protagonismo restituído à mulher, ela não pode ser chamada de “humanizada”. Entretanto, ela pode ser digna, respeitosa, afetiva, correta, humana, gentil e embasada em evidências, desde a sua indicação (alicerçada em evidências) até o último ponto realizado no abdome.

Em linhas gerais, por que hoje é tão difícil conseguir um parto humanizado?

Temos poucos profissionais com coragem suficiente para serem questionadores, críticos, estudiosos e desejosos de defender a integridade – física, psicológica, emocional – de suas pacientes, correndo o risco de serem desconsiderados por seus pares e tratados como hereges. Além disso, na vigência da “mitologia da transcendência tecnológica”, muitas pacientes ainda acreditam na superioridade da tecnologia sobre a natureza, mesmo que tenhamos infinitos estudos demonstrando o contrário. Para mudar a forma de nascer precisamos repensar nossos valores culturais e nossas crenças, e tal empreendimento demanda tempo e paciência. Tais valores de uma sociedade não se alteram por decreto; são modificados pela lenta erosão de crenças antigas, substituídas por modelos que explicam melhor a realidade, num infindável embate entre teses digladiantes. No futuro, os profissionais humanistas – aqueles que colocam a paciente e seu bebê acima de qualquer outra consideração – serão escolhidos pelas próprias pacientes para serem ajudantes de um novo modelo de atenção que terá a horizontalidade como ética, a participação como norma e o protagonismo respeitado como lei.

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Os Dilemas da “cura” do Câncer

Eu nunca me interessei por trabalhar com câncer ginecológico e seus tratamentos, apesar de reconhecer ser este um campo muito interessante e promissor, e evidentemente com um mercado imenso em função do estilo de vida ocidental e do envelhecimento das populações. Entretanto, desde os primeiros contatos com a oncologia eu entendia os tratamentos para o câncer como grosseiros e bizarros. “Como assim usar um tóxico sistêmico, destruidor da capacidade de multiplicação celular em TODO o organismo, para tratar um pequeno grupo de células em crescimento descontrolado?” Isso me parecia estranho e sem sentido. As radioterapias também me pareciam tão insensatas quanto as cauterizações à fogo nos ferimentos de bala que eu via nos filmes de bang-bang. Para mim, não havia um sentido “superior” de tratamento (apesar de reconhecer vantagens locais, parciais e paliativas), pois aparentemente tais métodos apenas mascaravam o câncer, escondiam a sua aparência exterior, usando a famosa “técnica do gato”, de colocar terra por cima dos excrementos. O câncer era algo que eu via como uma enfermidade sistêmica, geral, e que integrava os aspectos emocionais, psicológicos, hormonais e bioquímicos. O “tumor” não era mais do que a capacidade orgânica de produzir localização, envolvendo-o por um contingente grande de células normais, com a mesma lógica de localizar e “cercar” um corpo estranho qualquer no organismo. Além disso, eu notava que os pacientes cancerosos tinham uma rica história de recalques emocionais importantes que faziam parte do conjunto de elementos a construir a sua doença.

Mais que tudo, um câncer é sempre uma entidade abstrata, pois só existe aninhado num sujeito, o que lhe confere uma estrada de desenvolvimento absolutamente única. Um câncer pode evoluir para a cura espontânea (existem infinitos relatos anedóticos sobre isso), cursar por 4 anos ou ficar praticamente inerte por duas décadas, dependendo do sujeito que o alberga. Intoxicar o organismo, ou cauterizar células com radiação não poderiam mais do que tangenciar a localização manifesta dessas doenças, e não a sua essência. Entretanto, sempre respeitei esses modelos de tratamentos exatamente por não poder oferecer nenhuma alternativa que fosse suficientemente segura para os pacientes e para os cuidadores. Tratar uma paciente de câncer com homeopatia ou fitoterapia é inaceitável para o modelo cientificista atual. Por outro lado, é absolutamente natural e compreensível que um paciente morra em consequência dos tratamentos químicos violentos usados pela medicina contemporânea. O que é preciso é avançar no estudo das verdadeiras variáveis que compõem as neoplasias, e os tratamentos que tratam a essência dessas patologias, e não apenas a aparência – externa ou interna – que elas produzem.

Eu, assim como Freud, acredito que “Não há grito do corpo que não venha de Eros“. Não existe doença crônica que não esteja profundamente relacionada com as emoções do sujeito. Sua forma de viver, de sentir, de amar, ou de não-amar, são os alicerces de qualquer enfermidade. Portanto, a “cura” só pode ser através desse caminho. Qualquer outra forma terapêutica que não envolva a compreensão profunda do sofrimento como forma de expressão integral, psicológica, emocional, fisiológica e por fim anatômica, está fadada a ter resultados meramente estéticos, parciais e/ou superficiais.

Por essa razão achei interessante a análise que está sendo realizada sobre as mitologias que cercam o tratamento convencional do câncer, que a cada dia criam sobre si mais suspeitas.

Para maiores informações sobre este tema controverso e instigante vá em:

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A Internet de todos nós

A internet mostra o pior e o melhor de todos nós. Todos ficamos estupefatos com a realidade da pedofilia, problema social que sempre existiu, mas que a Internet tornou uma calamidade global. Entretanto, ela só apareceu porque agora os pedófilos podem ficar incógnitos atrás do manto protetor do anonimato. Os perversos de toda ordem encontram abrigo nas ondas cibernéticas da rede, fazendo dela um escoadouro de suas mazelas pessoais, disseminando rancor, mágoa e violência. Os exemplos estão por toda parte. Qualquer matéria criminal produz de imediato uma onda de ódio, raiva, violência e clamores por vingança (que as pessoas normalmente confundem com “justiça”). Basta ler uma matéria nos jornais, com reportagens interativas, para ver os comentários.

Há algumas semanas, diante da notícia de um jovem de 20 anos que morreu de acidente de automóvel durante a madrugada, eu li alguns comentários, logo abaixo do corpo da informação. O primeiro deles era: “Já vai tarde, bêbado“…

Argumentei com o cidadão de que ele não sabia as circunstâncias do acidente, e mesmo que fosse o que ele acusava, deveria se lembrar que havia uma família enlutada, sofrendo o martírio da perda de um filho, um irmão e um amigo. Ler essas palavras, ditas por um estranho e alguém que não tinha suficientes informações para acusar dessa maneira, poderia ter um efeito terrível aos olhos de quem conhecera a vítima. Recebi do sujeito uma série de gargalhadas como réplica. Os reacionários, os perversos, os machistas, os grosseiros, os pedófilos e tantos outros doentes encontraram na escuridão da internet – pela primeira vez na história em grande escala – a possibilidade de externar seu ódio, seu preconceito e seus desejos descontrolados.

Por outro lado, nunca houve tanta disseminação de afeto, boa informação, debate sério, contraditório e discussão “do bem”, o que nos deixa com uma ferramenta que, por ser meramente utilitária, pode nos levar para a paz ou para a violência. Nós é que escolhemos.

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Racismos

Uma página do site do hospital que proíbe doulas mostrava uma criança negra, linda por sinal, e uma pergunta abaixo da imagem: “Minha filha tem os cabelos excessivamente crespos. Com que idade posso fazer alisamento”? Muitas pessoas se indignaram com a pergunta (fictícia ou não) dessa mãe, por entenderem que se tratava de racismo, além de estimular vaidade em crianças muito pequenas. Depois da chuva de protestos contra a proibição absurda e grosseira da presença de doulas, a página que continha essa pergunta sobre cabelos de bebês também saiu do ar.

Tenho uma história que pode lançar uma luz sobre isso. Claro, entendam como uma história que ocorreu há 30 anos, em um hospital da minha cidade, no sul do Brasil.

Estava na fila do hospital para o almoço. Era residente do primeiro ano do Hospital e meu irmão residente de segundo ano. Conversávamos sobre tratamentos clínicos, interações entre pediatras e obstetras (meu irmão estava terminando a residência em pediatria aquele ano) quando um casal com um bebê se aproximou. Era um casal de negros. O homem um sujeito de estatura média, cabelos raspados ao estilo “afro”. A mulher era uma negra, com o tom da pele bem mais “café com leite”, uma cor, aliás, bem brasileira, que dificilmente se vê nos Estados Unidos, pois que os puritanos americanos a achavam degradante.

Nosso “cadinho de raças” tem, para muitos estudiosos, esta raiz cultural. Somos um país mulato, misturado e, como diria o nosso ex-presidente Fernando Henrique, “só é racista quem não conhece sua árvore genealógica”. Eu, por exemplo: nome inglês, cara de branquelo, pai pernambucano, avós ingleses, bisavós espanhóis e portugueses do Alentejo. Do Alentejo uma pele mais escura, da “mouraria”. Dos mouros para a África, e de lá venho eu. Mas, voltando à história, o pai do bebê chamou meu irmão, que estava na fila, e pediu para falar-lhe. Marcus afastou-se da fila e por alguns minutos falou com o casal, que mostrava para ele uma ficha verde, para onde apontavam com insistência. Alguns minutos depois meu irmão volta para a fila com um ar assustado.

– Que houve, perguntei.
– Não vais acreditar o que eles estavam solicitando. Eu fui o pediatra que atendeu o nascimento daquele bebê há dois dias. O papel que eles me mostravam era a ficha pediátrica. Nela estavam escritos os dados principais do nascimento do menino: peso, comprimento, apgar, e … cor. Evidentemente eu coloquei a cor como sendo “negra”. Pois o pai estava solicitando para que eu mudasse a cor do bebê na ficha. Sim, ele queria que seu filho fosse oficialmente… “branco”.
– Mas… como assim?, disse eu. Eu vi o casal, o pai era preto, a mãe mulata. E também vi a criança. Você por acaso não esqueceu de fazer o…
– Sim, ele disse… claro que eu fiz o “teste do saquinho”. É preto, cara, claro que é…
– Mas por quê? Qual a razão para isso? perguntei
– Só um mundo ainda racista pode explicar isso, disse meu irmão desanimado…

Uma sociedade que criminaliza a cor da pele, que desvaloriza o ser humano pela etnia e afasta seres humanos por graus variáveis de melanina acaba produzindo cenas como essa. O pai dessa criança estava apenas tentando tirar do seu filho a penalização social de ser negro em uma sociedade dominada e controlada pelos brancos. Eliminar a negritude de seu filho parecia o melhor a fazer, pois tal ação poderia livrá-lo de um fardo pesado que carregaria por toda a sua vida. Ser negro, nos anos 80, era muito pior do sê-lo hoje em dia. Agora temos o sistema de cotas, que de uma forma rápida tenta equalizar o fosso que que a cultura escravagista cavou nesse país, separando negros e brancos pelas diferenças de oportunidade. Somente agora estamos vivendo em uma sociedade mais respeitosa, e ainda assim alguns abusos são encontrados.

Entretanto, muito ainda há a fazer para se construir uma sociedade justa e digna para todos. Eliminar o racismo é uma dessas tarefas que precisamos tratar com urgência.

A mãe que quer livrar a filha dos cabelos crespos não está fazendo algo semelhante ao que este pai desejava para seu filho, há 30 anos?

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Disponibilidades

A “disponibilidade médica” foi assumida pelos conselhos de medicina como sendo um procedimento ético com o objetivo de legalizar o que estava sendo feito há muitos anos pelo Brasil afora. O problema da obstetrícia é de que a atenção ao parto é constituída de DOIS trabalhos essenciais, ao invés de apenas um. O primeiro é a atenção ao parto propriamente dito: avaliação, internação, acompanhamento do trabalho de parto (de tempo imensamente variável), atenção ao parto, puerpério e alta hospitalar. O mesmo modelo pode ser feito com a cesariana, a amidalectomia e a retirada de uma vesícula. Entretanto, em minha opinião, essa parte da atenção ao parto é a menos sacrificial, sendo que a outra parte é a que mais energia e tempo consome: a disponibilidade para atender um evento que é – por natureza e em essência – imprevisível.

É razoavelmente fácil entender que a disponibilidade é importante e precisa ser remunerada, basta que a gente compare com um policial, um bombeiro ou um militar. Essas profissões lidam com a eventualidade imprevisível de um crime, um incêndio ou uma guerra. Mais ainda: quanto MENOS trabalham, mais ficamos felizes. Mas eles estão disponíveis 24h por dia para nós, para serem chamados assim que forem necessários. Estão lá, de prontidão nas delegacias, no corpo de bombeiros e na caserna. E recebem seus salários exatamente para isso: estarem à nossa disposição.

Mas como recebe um médico que está à disposição de sua paciente para que ela o chame a QUALQUER momento para a eventualidade de um parto? Como é ressarcido pelo tempo que esteve preparado e pronto para atendê-la? Eu já tive casos de pacientes que combinaram o atendimento de partos que deveriam ocorrer no meio de fevereiro, por exemplo. Isso significa que o mês inteiro não havia possibilidade de viajar para longe (Torres, por exemplo, é longe “demais” para atender um parto), não podia ir ao cinema, desligar o telefone celular, teatro nem pensar, viagens para fora do país ficavam impraticáveis e a atenção era constante e total para qualquer telefonema durante a noite. Por volta do final de fevereiro a paciente liga para você avisando que o bebê nasceu muito rápido e que ela foi a um hospital de sua cidade. É isso: você passou um mês inteiro “preso” ao compromisso com uma paciente que não teve o parto com você, fazendo que sua disponibilidade (a mesma do bombeiro, policial e militar, lembram?) não fosse ressarcida.

Ora, mas há uma maneira de fazer com que a “disponibilidade” seja inexistente ou muito rara: marcando cesarianas. Com “cirurgias de parto” – marcadas da mesma maneira que marcamos uma operação de vesícula ou se opera um cisto de ovário – retira-se do parto a sua imprevisibilidade, a sua essência errática e o incógnito de seu aparecimento. Dessa forma os médicos podem organizar suas horas de consultório, seus fins de semana, suas férias e sua vida familiar. As pacientes também podem deixar a sua vida sob controle, fazendo do nascimento um evento programável, sem ser importunada pela chegada inesperada de contrações e bolsas que se rompem no meio da madrugada.

Que maravilha, não lhes parece?

Sim, parece… mas não é. Todos os estudos contemporâneos demonstram de forma inequívoca que burlar o “jogo da vida”, atropelando a sequência de eventos que culminam nas contrações naturalmente surgidas, prejudicam o complexo e delicado processo de adaptação do bebê ao mundo extrauterino, além de acrescentar riscos elevados a ambos, mãe e bebê. Portanto, colocar o nascimento à serviço da comodidade ou de valores outros que não o bem estar da mãe e do bebê são atitudes claramente equivocadas e perigosas. O surgimento natural das contrações, no término do processo de gestação, e o delivramento suave, natural e fisiológico do bebê, é ainda a forma mais segura e saudável de chegar a esse mundo.

Porém, aqui se coloca o grande dilema: os convênios de saúde oferecem o pagamento de algo chamado “parto” e para tanto oferecem aos profissionais um pagamento muito baixo. Estes pensam: “Bem, atender um parto de 18 horas por X não há condições, mas uma cesariana de 40 minutos pelo mesmo valor ainda vale a pena”.

Pronto, está formada a equação perversa dos planos de saúde e cesarianas. Os médicos recebem pelo procedimento hospitalar de um nascimento, mas não recebem pela disponibilidade, que os planos de saúde não reconhecem como trabalho. Ao mesmo tempo, oferecem um pagamento padrão para um “parto”, entendido como a saída de um bebê, não importando como ele seja feito. Um acompanhamento de 20 horas de trabalho de parto (e estrita vigilância médica) e uma cesariana de 30 minutos com hora marcada são ressarcidos quase que de forma idêntica pelas empresas de seguro saúde, mas a “hora-trabalho” de um parto normal vale no mínimo 20 vezes menos que a de uma cesariana (divida o valor recebido pelo número de horas que efetivamente esteve ao lado da paciente e terá o valor da “hora-trabalho”).

Sabemos do drama das cesarianas no Brasil, e suspeitamos do desastre que isso pode acarretar para uma geração de crianças e adolescentes que vieram ao mundo com falhas no processo de apego, falta de amamentação, colonização intestinal inadequada, obesidade, transtornos psíquicos de toda ordem e problemas imunológicos múltiplos decorrentes de cesarianas marcadas ou realizadas de forma equivocada, apressada ou atabalhoada. Todavia, sabemos que o pagamento dos profissionais também é importante. Temos conhecimento de que, em alguns lugares do Brasil, a equipe de filmagem do parto ganha MUITO MAIS do que os médicos que efetivamente atendem o parto. Temos conhecimento de tudo isso, mas o que podemos fazer?

Uma das maneiras é fazer com que a parte mais pesada e sacrificial da atenção ao parto seja efetivamente paga. Da mesma forma como pagamos os bombeiros, militares e policiais para que estejam à disposição para as eventualidades, poderemos também usar esse raciocínio para o pagamento dos profissionais médicos que atendem partos. Ao contrário das outras especialidades médicas, os parteiros vivem na incerteza de quando seu trabalho será necessário, e isso precisa ser reconhecido.

Ora, argumentaremos, esse pagamento poderia ser feito pelas próprias administradoras de planos de saúde“. É verdade, mas aí teríamos um grave problema de controle financeiro. Como provar que você estava mesmo à disposição por muito tempo e atendeu a cesariana (necessária, é claro…) no dia 23 de dezembro às 8h da manhã? Como provar, pelo contrário, que você realizou uma cesariana numa sexta-feira à noite, mas esteve um mês inteiro de sobreaviso? É difícil, e talvez impossível para as administradoras trabalharem sem que materializem de forma muito clara o tipo de trabalho que estão pagando aos profissionais.

No trabalho privado é outra história. O médico pode cobrar o que bem entender em livre negociação com seus clientes. E pode explicar que sua cobrança cobre exatamente essa disponibilidade. Aceita quem quer, negocia-se livremente e o médico será responsável por honrar seu compromisso de cumprir o combinado. Já no sistema de “seguros saúde” é diferente; onde um terceiro intermedeia a relação médico-paciente a história torna-se muito mais complicada.

Entretanto eu sou pessimista em relação a esse modelo. Não acredito que a cobrança da disponibilidade atinge o cerne da questão e poderá diminuir o índice alarmante de cesarianas. O que vai ocorrer é que os cesaristas cobrarão uma “disponibilidade”, mas no final da gestação usarão a mesma retórica da “bomba relógio” e agirão como sempre agiram: operar intempestivamente por medo e insegurança. Infelizmente, os índices de cesariana não serão tocados por essa medida. Teremos médicos cobrando mais, mas não mudaremos de forma impactante as nossas vergonhosas taxas de interrupção cirúrgica da gestação.

Resumindo, eu entendo a cobrança e creio que ela é ética, pois oferece um pagamento ao tempo que os médicos ficarão ao dispor de seus pacientes. Por outro lado, creio que tal medida não cumprirá com seus objetivos de reduzir o intervencionismo no processo do parto. Temos ainda muito trabalho pela frente para oferecer um pagamento adequado aos profissionais ao mesmo tempo em que possamos garantir segurança e dignidade no nascimento humano.

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Ventre Fechado

Apesar do ativismo pela humanização do nascimento, e da luta para que as mulheres tenham autonomia e liberdade para fazer escolhas informadas sobre sua maternidade, eu ainda creio na existência de “distócias psi”, como diz o Max. Digo isso porque eu mesmo testemunhei vários casos em que os obstáculos para a concretização de um nascimento estavam profundamente alocados nos porões obscuros do inconsciente. Tais distócias podem ser entendidas por bloqueios psicológicos que dificultam – ou até mesmo impedem – o trabalho de parto e o parto.

Ora – dirão os incrédulos – então como as mulheres davam conta dessas distócias no século XVI, já que tais transtornos devem acompanhá-las desde o início dos tempos humanos?

Como seriam os transtornos que se imiscuem nas circunvoluções de afeto, escondidas entre as orelhas , no século XVI? Ou nas imemoriais épocas das cruzadas, entre as populações indígenas (algumas contemporâneas) ou na aurora das civilizações? Talvez se resolvessem da forma mais brutal possível: uma força de nascer sendo contraposta por um muro de músculos e medos a travar o processo. Por outro lado, é possível que tais transtornos fossem tão incomuns no passado que seria pouco comum deparar-se com eles. Eu acredito que o parto é uma expressão do tempo e da latitude, encravado na história e na geografia dos povos. Creio mesmo que tais distócias são produto da cultura, criadas e nutridas por um modelo bem determinado no tempo e no espaço, que funciona para sustentar os valores inconscientes que essas sociedades, por interesses variados, cultivam.

Tais variações culturais explicam porque na antiguidade as deusas eram onipresentes nas manifestações artísticas, incluindo extensa iconografia da amamentação, mas foram paulatinamente substituídas por outras imagens, mais afeitas aos valores e as nuances políticas preponderantes. Hoje em dia, no império da infotecnocracia, os valores humanos e a superação de nossas dificuldades só podem ocorrer pela via da tecnologia. Desvalorizam-se as conquistas femininas de gestar e parir, consideradas pelas sociedades modernas como um “masoquismo insensato e atrasado”. Entretanto, o parto, a amamentação e a maternagem são percorridos por um fio invisível que os conecta, naquilo que chamamos do “continuum da humanização“, onde intrincados processos psicológicos, afetivos, químicos, físicos e até bacteriológicos participam de uma orquestração milenar de adaptação.

Ao mudar de forma atabalhoada tal arquitetura podemos produzir traumas ainda não suficientemente estudados pelas ciências humanas, mas que já são percebidos pelos ficcionistas e poetas. Mesmo reconhecendo a possibilidade de que algo por demais violento ocorra “entre as orelhas” a ponto de impedir um nascimento, lutar para que os partos ocorram de forma espontânea e fisiológica é oferecer as melhores garantias para que um bebê chegue a esse mundo com segurança.

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“Menas Main”

O debate acirrado e, por vezes áspero, sobre “cesariana x parto normal” nunca vai morrer enquanto nascimento for uma clara e evidente manifestação da sexualidade feminina. Expressão do erotismo feminino, o nascimento guarda com a prática sexual relações emocionais, psicológicas, afetivas, físicas, hormonais e até espirituais. Exatamente por não ser uma questão restrita às variantes médicas e de segurança é que as mulheres se digladiam – as vezes de forma deseducada – sobre a questão do parto e suas opções. Nunca se estabelece um debate racional; ele é sempre carregado de afeto – e raiva, remorso, tristeza também são afetos. Sabemos que não é admissível, numa perspectiva subjetiva, julgar as escolhas de cada mulher sobre a sua sexualidade. Nenhuma mulher é menos mulher por namorar outra mulher, ou por se casar com um russo ou japonês, e isso nos parece bastante claro. A liberdade de fazer escolhas se expressa tanto nas suas opções amorosas quanto no nascimento de seus filhos.

A piada em questão aborda uma crítica (sim, mas em forma de humor) contra um MODELO, um PARADIGMA, que dificulta e até mesmo impede a livre expressão da sexualidade no nascimento (o parto normal) e oferece a elas como única opção digna a cesariana “salvadora”. Não é uma crítica contra as mulheres que, por uma razão ou outra, fazem escolhas sobre seus partos. Negar à elas a possibilidade de escolher é que é o verdadeiro crime, mas poucas mulheres se aventuram a falar sobre isso, e preferem desfiar justificativas intermináveis. O problema para mim nunca foi mulheres escolherem cesarianas (ou escolherem outras mulheres para amar, ou estrangeiros…) mas quando essa é a ÚNICA opção digna que se lhes oferece!!!

Da mesma forma, se a heterossexualidade fosse a única opção digna para o encontro amoroso (e há pouco tempo era visto assim…) eu estaria levantando bandeiras para que as mulheres pudessem amar quem realmente desejassem. Se o parto normal fosse IMPOSTO às mulheres eu também sairia às ruas como defensor das escolhas informadas. Infelizmente o que se lê nos debates sobre a cesariana ainda é a ladainha chata do “menas main” e as explicações enfadonhas para cesarianas realizadas, na sua maioria injustificáveis à luz da MBE (Medicina Baseada em Evidências).

E, de uma forma mais intensa e clara nos últimos anos, testemunhamos o fato de que as evidências científicas provando a superioridade inquestionável do parto normal sobre a cirurgia cesariana incomodam cada vez mais as consciências. Antes ainda era comum – e até aceitável – dizer: “Fiz, sim, essa escolha e não me arrependo“. Hoje em dia, com a avalanche de pesquisas provando os malefícios da cesariana (principalmente as com hora marcada) está quase impossível continuar sustentando essa afirmação.

E viva o humor, que nos oferece a oportunidade de falar dessas questões enquanto esboçamos um sorriso especial; aquele que damos ao rir de nós mesmos.

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Responsabilidades

Mostrar a verdade não é a mesma coisa que empurrar a “sua” verdade goela abaixo para que as pessoas ao nosso redor sejam obrigadas a digeri-la. Como diria a minha mãe, a verdade pode ser “exposta”, mas jamais “imposta”. Assim sendo, concordo com a necessidade de respeitar as mulheres que realizaram cesarianas, principalmente naquelas cirurgias que aparentemente não possuem indicação clínica, levando em consideração a visão de mundo das mulheres que se submeteram a ela. Entretanto, acrescento que tais elementos – a liberdade e o tempo do outro – não podem nos impedir de falar e expandir a nossa visão sobre o abuso de cesarianas.

Eu prefiro dizer que TODOS NÓS somos responsáveis pelas cesarianas desnecessárias que ocorrem no mundo, seja por uma postura pouco científica e/ou egoística, seja por inação diante das evidências que nos mostram as vantagens do parto normal. Portanto somos (nós, humanidade), sim, responsáveis pelas mazelas que ainda ocorrem no mundo, até pelos estupros e pelos genocídios. Isso não é o mesmo que ser “culpado” por isso. Se imaginarmos uma menina que sai à noite, de minissaia para uma festa na periferia, eu duvido que alguma mãe de adolescente em face dessa situação não diria: “Minha filha, você está oferecendo graciosamente uma oportunidade à manifestação da perversão de alguém“. Silenciar diante dessa evidência (de que existem perversos e que eles eventualmente cometem estupros) nos torna conectados ao crime, mesmo que de forma indireta e involuntária. Tais mães não são as culpadas do crime, mas pecaram pela falta de prevenção. Quando uma mulher nos diz “Estou consultando com meu médico e ele disse que se tudo der certo será parto vaginal” – e sabemos a fama cesarista do dito profissional – estaremos na mesma situação da mãe que resolveu silenciar.

Como diria Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos (mas há controvérsias quanto à origem dessa expressão), “O preço da Liberdade é a eterna vigilância“. O preço da humanização do nascimento é estar eternamente vigilante com as pressões econômicas e corporativas que colocam o nascimento a serviço de outras forças. Enquanto houver seres humanos, constituídos na infinita diversidade de estruturas psicológicas, haverá a necessidade de nos protegermos da maldade e da perversão. Infelizmente, não há como abandonar a vigilância. Por sua vez, enquanto houver chauvinismo e o desejo de controlar as mulheres, bloqueando a natural criatividade de seus corpos, haverá a necessidade de protegê-las e vigiar as tentativas de subjugá-las. Parir naturalmente ainda é uma batalha árdua, mas já foi ainda mais complexa. Hoje temos ferramentas que no passado não possuíamos, como esta (a internet). Tenho a esperança que no futuro a naturalidade do parto e da amamentação serão incorporadas à atitude de todos os povos, e uma cesariana desnecessária será tão mal vista como jogar no chão um papel de bala numa cidade que todos tentam manter limpa.

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Bactérias do Bem

Minha colega Ana Cristina Duarte escreveu:

 “Ao que parece, a ciência está apontando para o grande e maior problema das cesarianas: o fato de não haver colonização imediata do bebê pelas bactérias do canal de parto. A ausência dessas bactérias no momento do parto traz repercussões para o resto da vida, desde obesidade, doenças autoimunes, entre outros. A outra linha de pesquisa é para o parto como o evento que liga o sistema hormonal do bebê, no eixo hipotalâmico. Estamos, no Brasil, recebendo uma nação de bebês que virarão adultos com doenças crônicas. O sistema privado já pode começar a contabilizar os lucros.

Eu adiciono:

Em Orlando, há 3 anos passados, tive a oportunidade de conversar com o professor Hanson da Universidade de Gotemburgo – Suécia, a respeito da importância fundamental das bactérias para a adequada proteção do recém-nascido no pós parto imediato (1). Ele ficou fascinado com os vídeos que mostrei de partos na posição de cócoras porque dizia que esta posição facilitava que os bebês fossem adequadamente “contaminados” pelas “entero-bactérias do bem” que vivem no ambiente intestinal materno. A presença dessas bactérias na pele estéril do bebê tão logo ele nasce confere uma especial proteção de microrganismos anaeróbicos que impedem a colonização por bactérias danosas que habitam o ambiente hospitalar (estreptococus, estafilococus, pseudomonas, etc.). Outra razão para não dar banho no bebê quando ele está no hospital aguardando a alta: manter o “manto protetor” de vérnix, líquido amniótico e bactérias maternas que o envolvem e protegem. Assim sendo, a presença de bactérias maternas é fundamental para proteger o bebê de infecções! Imaginem quanto tempo perdemos acreditando que a suprema esterilização (e os ridículos enemas que realizamos na admissão do hospital) era benéfica para o parto. A presença dessas bactérias na colonização intestinal dos recém-nascidos é importante para o seu desenvolvimento saudável.

Para além dessas descobertas, agora sabemos que o leite materno NÃO é estéril, e que contém mais de 700 tipos de bactérias. Como dito acima pela minha colega Ana Cristina, sabemos cada vez mais da importância de um equilíbrio adequado da flora intestinal para a saúde de crianças. Meu colega Andrew Wakefield foi um dos primeiros a mostrar que existe uma conexão impressionante entre as questões intestinais e o desenvolvimento de doenças mentais, como o autismo. A preservação do parto normal e da amamentação, para além das questões fisiológicas, emocionais, psicológicas e clínicas, precisa ser analisada também como a mais completa forma de prevenção de doenças. Negligenciar, como temos feito nas últimas décadas, a sua preponderância como elemento preventivo de enfermidades, apostando na suprema cafonice de endeusar a tecnologia sobre os eventos fisiológicos e naturais, pode ser um passo decisivo em direção à extinção do homo sapiens.

(1) Hanson, L.A. Immunobiology of human milk:  How breasfeeding protects babies. Göteborg: Pharma­soft Publishing, 2004. 

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