Arquivo do mês: outubro 2015

Uzomi

cultura-machista

Uma feminista, claramente indignada com a saída da menina do Master Chef, escreveu há algumas horas a seguinte frase: “Uzomi venceram”….

Eu sei que “uzomi” é um termo usado para identificar machistas. Sei disso… Entretanto quando um médico diz “eu fiz o parto da fulana” a gente tenta corrigir explicando que quem faz o parto é a mulher, e que essa frase carrega escondida entre as palavras uma clara expropriação de um evento sagrado como o parto por parte de quem deveria apenas garantir a sua segurança e acompanhá-lo. Pelas mesmas razões, usar “os homens” para se referir a machistas, abusadores e pedófilos nos dá a entender que a luta não é contra aqueles que naturalizam sistemas de poder e usam da força física e política para oprimir as mulheres, mas que é contra todos os homens – pelo simples fato de serem homens.

Minha crítica não tem NADA a ver com a saída dessa menina do programa, até porque eu me afasto desse assunto (abusos, pedofilia, agressões), pois me causa tristeza e raiva. A ÚNICA ressalva que faço é a generalização ofensiva com os homens, como se todos nós fôssemos parceiros de pedófilos e abusadores. Pior, como se essa fosse uma luta dos homens contra as mulheres. Isso é um erro brutal e uma suprema injustiça, que só afasta os homens que poderiam se associar nessa luta.

Se cobramos dos profissionais que parem de expropriar partos e garantam o protagonismo deste evento às mulheres, também é justo pedir a algumas feministas (não todas… as que estão ao meu redor concordaram que este termo não deve ser usado) que parem de utilizar termos ofensivos contra os homens quando, em verdade, querem se referir a um grupo extremamente minoritário de pessoas que acreditam em uma pretensa superioridade masculina ou que o corpo da mulher é um objeto que pode ser usado apenas para satisfazer seus desejos.

Se queremos um mundo livre de sexismos precisamos vigiar TODAS as falas, sob pena de perdermos cada dia mais homens interessados nessa luta e que são tratados como inimigos, pela simples razão de serem homens.

Não se trata de desmerecer as lutas feministas, mas pedir que não generalizem para fazer valer seus pontos e nem apontem suas armas contra os inimigos errados: os homens. Não somos nós os inimigos: o inimigo é o machismo e o modelo que nós todos construímos na sociedade. Ele sim deve ser trocado por algo melhor e mais justo. Essas expressões afastam aqueles que gostariam de se aproximar mas se sentem imediatamente rechaçados.

Para fazer com que uma ideia seja aceita por todos o confronto nem sempre é a melhor solução. Muitas vezes a palavra doce e a compaixão – procurando sempre entender o ponto de visto do outro – são mais efetivos, mesmo que durem mais tempo. Se as mulheres desejam uma sociedade mais justa, abandonem os termos ofensivos e agressivos que aprenderam a usar com os machistas. “Uzomi” ofende quem não merece ofensa, e afasta quem desejava se aproximar.

PS: A bem da verdade, essa moça – que se identifica como uma feminista que não tem ódio de homens – corrigiu sua expressão e escreveu “os machistas venceram“. Eu me senti satisfeito.

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Equívocos

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Não faz sentido comparar os equívocos cometidos pelos governos militares com os de agora. Os erros do governo militar são comprovados: sequestros, mortes, torturas, perseguições, falta de liberdade, mordaças, maquiagens econômicas, endividamento externo e interno, etc. Também não faz sentido achar que a liberdade oferecida por este governo às instituições que combatem a corrupção foram “concessões pela governabilidade”. Não se trata disso: é um projeto claro de cortar a pele a abrir o abscesso da corrupção.

Contra o governo de Lula e Dilma, por enquanto apenas apareceram boatos (no que diz respeito à corrupção). Os erros na questão econômica poderão ser julgados no futuro, quando forem avaliados dentro dos contextos a que pertenceram. O que Dilma fez não foi algo “ao apagar das luzes do seu governo“. NÃO: foi um política clara desde o primeiro dia do seu primeiro mandato de oferecer garantias à Policia Federal e ao Ministério Público para investigarem tudo e a todos. NÃO FOI uma atitude desesperada, e nem uma “saída honrosa”; foi uma atitude do governo de curar a ferida da corrupção acabando com seu principal agente: a IMPUNIDADE. Por esta razão até mesmo José Dirceu foi condenado de forma irregular e SEM PROVAS, num escândalo jurídico (e que ainda não acabou, posto que irá para as cortes superiores da OEA). Mesmo cortando na própria carne este governo GARANTIU a continuidade do projeto de combate incessante à corrupção, e por esta razão, apesar das mentiras e das falsidades de inimigos ideológicos, é o governo mais HONESTO que tivemos neste país.

Que ainda há muito a fazer, não resta dúvida. Mas olhe bem para os partidos que são acusados de corrupção: o PT é o NONO (9º colocado). Tudo isso nos deixa claro que existe uma manipulação extensiva para culpabilizar o PT naquilo que ele faz de BOM, como o combate à corrupção. As críticas falsas, daninhas, sem provas, sem embasamento são usadas pelos mesmos grupos poderosos que agem desde 1954 para que as reformas (como o combate à corrupção hoje, ou a reforma agrária em 64) sejam interrompidas em nome da “moralidade”, ou para punir os “ladrões”.

O que me dói é ver gente pobre ou da classe média trabalhadora servir de massa de manobra para estes mesmos grupos que há séculos comandam os fios invisíveis de onde pendem nossos corpos. Não se trata de obstruir a crítica SEVERA aos erros MÚLTIPLOS que este governo cometeu e ainda vai cometer, mas de perceber que as críticas à HONRA só proliferam quando existe algo mais do que elementos de macroeconomia e políticas estruturais a combater. Nesse caso, o interesse é barrar as investigações, impedir que se chegue ao Cunha, ao Aécio, ao Nardes, à RBS, à cúpula do PP, ao PMDB (o mais corrupto de todos). É essa a luta para derrubar Dilma, que acaba sendo orquestrada pelos tolos da vez, pessoas que acham que atacando o bisturi poderão melhorar o abscesso.

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ATAME!

The Collector

Pedro Almodóvar, em seu filme “Ata-Me!”, desenvolve um instigante tema que já havia sido abordado no filme “O Colecionador” (The Collector, de William Wyler) de 1965. Nesta obra o genial diretor espanhol discorre sobre o amor como produto objetivo da procura amorosa. Em verdade, sob um ponto de vista filosófico, o filme do espanhol poderia ser analisado como um “remake” do filme de Wyler. Em ambas as películas um jovem, obcecado por uma paixão, sequestra sua vítima, foco de seu amor desmesurado, mantendo-a trancafiada e aguardando que ela um dia venha a se apaixonar por seu raptor. Após tal desesperada atitude, os sequestradores de ambos os filmes se esforçam em demonstrar – de variadas maneiras – a sua dedicação e desvelo com as vítimas, dizendo amar-lhes com devoção e respeito. Refreiam até seus impulsos sexuais, fazendo da contenção uma prova adicional do respeito que nutrem por suas adoradas cativas. Em “O Colecionador” a tragédia é o desenlace fatal, pela impossibilidade de sustentar-se a absoluta assimetria da relação. Vitimada pela penúria psicológica e física, a protagonista vem a morrer de pneumonia, nos braços de seu algoz.

Almodóvar, em seu filme de 1989, resolveu aplicar ao seu final uma solução mais otimista: o amor descoberto por detrás das capas de violência.

Atame

Em ambos os filmes a temática é clara: a possibilidade de criar-se o amor como fim, e não como meio. A ideia que perpassa é a tentativa de criar-se o afeto como o “produto” de um encontro. Forçadamente os protagonistas procuravam constranger a afeição de suas eleitas como se esta fosse uma conquista típica do universo masculino: “subjugue e imponha”. Entretanto, o afeto nunca é produto: oferece-se sempre como acessório, ou subproduto de uma relação. “Os subprodutos põem em xeque a soberba racionalista de que podemos conseguir moldar tanto o mundo exterior como o nosso próprio meio intra psíquico, fixando nossas metas e pondo imediatamente em ação os meios ou recursos adequados(*). Podemos impor o medo e o terror; jamais o respeito, o amor e a confiança. Estas aparecem como que “magicamente”, no transcorrer de um processo. Surgem quando menos se espera, e revoltam-se contra as determinações externas. As relações amorosas carregam sempre esta marca de imprevisibilidade: nunca seremos capazes de reconhecer e vislumbrar os encontros adequados, posto que apenas o engajamento de um no desejo do outro é capaz de produzir o florescimento do amor. E, como bem o sabemos, não temos como prever tal acontecimento, pois que escapa ao controle do racional.

“Mesmo sendo o Antônio Banderas! Que mais poderiam desejar?”, perguntava eu às minhas amigas, ao que elas respondiam que, não sendo do seu agrado, nenhum homem poderia dispor de sua afeição ou de seu corpo. Como na fábula de princesa monstruosa de dia e linda à noite, o segredo estava na possibilidade de escolher.

“Acontece que a donzela,
e isso era segredo dela,
Também tinha seus caprichos.
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e cobre
Preferia amar os bichos”.

(Chico Buarque, Geni e o Zeppelin)

Mesmo Geni, que representa o “esgoto social”, (**) sabia destas imponderáveis características do desejo. Os encontros de amor trazem sempre seus caprichos. Acima de tudo, o que todos queremos é o protagonismo de nossas vidas. Oferecer a elas um Banderas, sem que isso passe por sua decisão, não é capaz de produzir o amor como produto.

Marina, a heroína pornô do diretor Máximo, acaba resgatando na sexualidade desperta, o amor por Ricky. Ali encontrou Almodóvar a possibilidade redentora de seus personagens. O sexo selvagem entre eles (que tanta celeuma produziu na época) acendeu a chama que os capturou, um ao outro. O contrário se observou no filme de William Wyler, onde nada conseguiu produzir a ligação entre a dupla, e a morte tornou-se o único desfecho possível. Não havia, imagino eu, nos anos 60, essa via de redenção. Seria demais pedir que as mulheres, há quase 40 anos, buscassem na sexualidade desperta uma possibilidade transformadora. Pelo menos não no imaginário social.

Prefiro analisar a modificação temática ocorrida nos mais de três decênios que separam as películas como a possibilidade de conquista de um amor mais livre e mais justo. O filme dos anos 60 nos mostra que o inconsciente social recém despertava para a necessidade de uma maior liberdade para as mulheres, mas não traçava um horizonte mais claro pela impossibilidade de compreensão das alternativas que produziriam tal revolução. O resultado só poderia ser sombrio e lúgubre. As mulheres ainda estavam numa total subserviência ao controle patriarcal, mas o romance de Freddie e Miranda em “O Colecionador” apontava para a ideia de que, se não lhes fosse oferecida a possibilidade de escolha, o resultado para a sociedade só poderia ser funesto. Em “Ata-Me!”, Almodóvar acena com a redenção: o protagonismo conquistado, e só ele, como capaz de reverter a submissão humilhante e degradante. Marina desperta seu desejo e, na cama, como metáfora de sua opção, troca de posição com Ricky. Sobre o corpo de seu amante, acena com a subversão da dominação, impondo sobre a violência a vitória imperiosa dos seus desejos e direitos. Ali se estabelece a mudança, o corte profundo, a guinada em direção ao “amor conquistado”, em substituição ao “amor imposto”.

Quando vi o filme de Almodóvar, e fazendo a conexão imediata e natural com o drama de Wyler, foi para mim impossível não traçar um paralelo com a humanização do nascimento. Nos filmes, como na trajetória de qualquer mulher, surgirá o tema das escolhas e da autonomia. O encontro médico-paciente é um encontro entre pessoas, onde fluem energias afetivas que compõe o cenário terapêutico. Negar esse fenômeno é cegar-se à própria essência do processo de cura onde, muito mais do que drogas e intervenções, operam os processos afetivos que permeiam este encontro. Médicos podem “atar” seus pacientes em transferências sadomasoquistas, ou aprisioná-los em medicamentos e terapias, mas somente quando estes se sentem livres é que a cura pode ocorrer. Não existe terapia verdadeiramente frutuosa que não remeta o paciente a libertar-se do seu egoísmo, de suas dores, culpas, ódios e rancores. A medicina, tal qual ocorreu com os desesperados protagonistas, por vezes procura forçar o bem-estar, a despeito da autonomia, da vontade e do desejo de quem se serve dela, desconsiderando o paciente como legítimo condutor de seus desígnios.

“Liberdade é nossa meta última”, repetia-me Max. “O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar”, cantavam os doces bárbaros. Não existe relação verdadeira sem a liberdade de escolher.

Não existe verdadeira humanização do nascimento sem protagonismo. Entretanto, cabe dizer, o que fazer daqueles que optam pelo cativeiro por se julgarem inaptos para a liberdade, e que se jogam nas mãos dos algozes para, abrindo mão da autonomia, encontrarem pelo menos a segurança que almejam? Esta é uma questão que se responde através da educação e da informação, pois só elas levam à descoberta das alternativas para a alienação.

Ata-me

Ricky, assim como Freddie, esmerou-se em oferecer tudo o que estava ao seu alcance para proteger, ajudar e cuidar de sua amada. Ambos fizeram sacrifícios, arriscaram-se, quase morreram. Entretanto, não conseguiram oferecer aquilo que de mais valioso era possível ofertar: a liberdade. Travados por um modelo de controle e dominação, não conseguiam entender um processo que não fosse pela coerção e através do medo. Ambos foram pródigos em “sofisticar a tutela”, dando às suas amadas o que de mais rico eram capazes de oferecer: sua devoção sincera; porém, também sabiam que, se a liberdade fosse oferecida, elas poderiam ir embora. Temiam o resultado dessa atitude, pela possibilidade da perda do seu amor. Entretanto, esse amor nunca floresceria, em “O Colecionador”, e só ocorreria em “Ata-Me!” quando a própria estrutura autoritária da relação foi subvertida, o que não pôde ocorrer na relação doentia de Freddie e Miranda. Note-se que a morte da protagonista nesta película pode ser lida, simbolicamente, como a “desistência da vida”, causada pela falta de liberdade a ela imposta.

No cenário do nascimento humano, apenas a possibilidade de oferecer às mulheres o controle sobre seus corpos poderá lhes “salvar” da tragédia da sua anulação enquanto sujeitos. Nenhuma “sofisticação de tutela”, por mais dedicada que seja (como fizeram Ricky e Freddie), será capaz de resgatar as mulheres da “inanição” de um cárcere de si mesmas.

A estrutura social, com o qual convivemos, precisa descobrir as alternativas (como Marina) para resgatar a essência profunda das relações, nem que para isso precise rever os próprios alicerces que a sustentam. Uma sociedade em que se busque incansavelmente a liberdade e a justiça como metas é o destino que nós mesmos precisamos construir.

Talvez estejamos mesmo vislumbrando o ocaso de um modelo baseado na conquista e na submissão, assim como nas ilusões racionalista e positivista que permeiam tanto as relações pessoais quanto a nossa medicina autoritária. Certamente que muito ainda há que ser construído, mas não acredito em nenhum direcionamento que nos afaste do necessário rebentar de grilhões e do indispensável arrancar de mordaças.

Porque não há futuro sem liberdade, e esta jamais é oferecida ou imposta, pois que é da sua essência ser conquistada.

Referências:

* “O que Sócrates Diria a Woody Allen” – Juan Antonia Rivera – Ed Planeta

** “Violência e Homossexualismo”, Valéria Amim – Univ. Estadual de Santa Cruz/UESC – Ilhéus/BA

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Velhos

Velho apaixonado

“Em conversa telefônica com meu amigo Max chegamos a um acordo: o que existe de bom na velhice é acharmos irrelevante o que outrora pensávamos indispensável; o que há de ruim – segundo ele, torturante – é continuarmos desejantes quando já não somos desejáveis.”

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Muro

Muro Berlim

Quando escrevo que percebe-se ao longe uma luz no fim do túnel sou – com frequência – metralhado virtualmente. Sei que é uma luzinha tênue, como uma lâmpada de árvore de Natal. Mesmo assim, algo aos poucos está acontecendo. A truculência típica da corporação está lentamente cedendo espaço para a aceitação de postulados mais modernos e alinhados aos direitos humanos reprodutivos e sexuais. Acredito que, com o tempo, os “caciques” fixados no biopoder e na manutenção de privilégios se sintam cada dia mais constrangidos e isolados.

Todavia, eu também acho difícil poder testemunhar uma verdadeira revolução no sentido da plena humanização do nascimento ainda em vida. Sei que as transformações que tratam de valores profundamente inseridos na rocha das culturas só produzem efeito após uma lenta erosão. Por outro lado, quando eu era residente no hospital escola da universidade no final dos anos 80, um colega me disse:

Ricardo, essa sua história de parto de cócoras, parto fisiológico, parto humanizado – apesar de estar absolutamente correta por qualquer ponto de vista – jamais vai “colar” pois está ligada ao poder. O poder é o motor do mundo e fazemos qualquer coisa para, depois de conquistado, mantê-lo conosco. E ninguém abre mão do poder sem luta ferrenha. Olhe ao redor e veja o mundo em que estamos. Os poderosos vencedores da segunda guerra mundial ergueram um muro separando a Alemanha há 40 anos que ainda está de pé. E eu te afirmo que ele jamais cairá“.

Nunca esqueci de suas palavras “proféticas”…

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Parto “autoral”

A respeito do debate sobre “Parto Autoral” surgido recentemente. Ao me ver este termo é uma tentativa de oferecer uma nova roupagem ao termo “protagonismo”, nosso velho conhecido. A “autoria” do parto é um aspecto de um conceito mais amplo de humanização do nascimento. Parto autoral não avança para além do sentido já debatido da garantia do protagonismo à mulher, algo que enfatizamos desde que o debate sobre uma “nova forma de nascer” começou a ganhar corpo no Brasil e no mundo. Por esta perspectiva a “autoria” é o eixo central a partir do qual os outros elementos da humanização vão se estabelecer. Isto é: sem plena “autoria” nunca teremos humanização, apenas ações parciais que não atingem o cerne da questão do parto: os direitos das mulheres sobre seus corpos. Ou, como diria Max, “sem o protagonismo só resta a sofisticação de tutela“.

protagonismo

Por outro lado, aprofundando-se no debate sobre o protagonismo, um parto pode ser “autoral” e NÃO SER humanizado, desde que para isso não se obedeçam os outros pilares que sustentam esse conceito, a saber: a visão interdisciplinar do evento (retirando dele as amarras de procedimento médico) e as evidências científicas (sem as quais somos presa fácil das mitologias, via de regra misóginas e potencialmente perigosas). Como exemplo podemos citar uma mulher situada no extremo do espectro do protagonismo: uma gestante diabética e hipertensa que resolve de forma autônoma ter seu filho em casa sem o auxílio de qualquer profissional ou tecnologia. É autoral, mas é uma decisão que não tem interdisciplinaridade ou evidências científicas que a sustentem. O mesmo pode ser dito das cesarianas sob demanda: são autorais, mas agridem as evidências científicas no que diz respeito à segurança para mães e bebês.

Por esta razão eu acho que vale a pena esclarecer esses termos novos que surgem no cenário da humanização do nascimento para que não causem confusão.

Resumindo: a Humanização contempla a autoria, pois ela é a parte central do modelo que preconizamos. Por outro lado, a autoria não necessariamente se abriga sob a proteção da humanização. Uma decisão “autoral” não precisa ser humanizada.

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Suzane

Suzane

A maioria dos “cidadãos de bem” desse país são meros linchadores de merda. Eu não exijo compaixão de ninguém, apenas admiro e exalto esse tipo de sentimento como um dos aspectos mais nobres da alma humana. Qualquer julgamento dessa menina é injusto e estúpido, pois ninguém pode aquilatar seus valores e suas dores. A ninguém é dado o poder de sentir a dor de outrem.

E, por favor, julgar Suzane é completamente diferente de julgar seu ATO. Um ato criminoso como o dela PRECISA ser punido, e o foi. E foi punido dentro da lei, onde a progressão de pena cumpriu o ritual legal. Ao meu ver ela não representa uma ameaça à sociedade e pode gozar desse benefício, conforme determinado legalmente. Não há nada a questionar nessa ação juridicamente embasada.

Quanto àqueles que diante disso disseminam ódio e raiva eu apenas penso que não são dela muito diferentes. Com uma arma na mão e o auxílio dos “irmãos Cravinhos” talvez fizessem o mesmo crime que tanto desejam realizar contra ela. O que os diferencia é apenas oportunidades, circunstâncias e contextos. Em essência, estão mais próximos do que admitem da Suzane que tanto odeiam.

Realmente, perdoar – em sentido amplo – é difícil porque impõe empatia e compreensão dos limites impostos no entendimento do outro. Os tolos confundem perdoar com “absolver“, quando na verdade o perdão significa trazer a ação criminosa para dentro do seu espectro de compreensão. Perdoar é humanizar, e Jesus mesmo, diante do apedrejamento da prostituta, deu a lição mais profunda e simples sobre a questão: “Atire a primeira pedra aquele que for isento de pecado“.

Os julgadores ferozes do Facebook são, em essência e completamente, sujeitos incapazes de conhecer o próprio percurso de suas vidas e os pequenos pecados que os compõem. Iludidos por uma falsa ideia de pureza e retidão, cegam-se às próprias falhas e erros, projetando-os em figuras públicas que fizeram de seus crimes espetáculo de catarse coletiva. Por isso a ferocidade implacável de seus comentários.

Perdoar as pessoas, e não seus deslizes, é tarefa difícil, mas uma imposição da civilização. Reconhecer a falibilidade humana é um caminho tortuoso quando implica olhar para dentro de si mesmo.

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Derradeira luz

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“Então, ao descerrar as pálpebras pela derradeira vez, só restarão esses ruídos, sensações dispersas e pedaços de imagens: o choro de um bebê, um sorriso solto no espaço, os bigodes do meu pai, um aroma, um afago cálido, fragmentos de uma carta, luzes fugidias e o calor do corpo que te acolheu no frio de uma solidão. E a certeza da volta. Afinal, não somos mesmo daqui, não?”

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Carandiru e o Escafandrista

Carandiru

Eu li faz muitos anos, entre 15 e 20 anos, mas certamente quando ainda vivia a minha vida anterior, no milênio passado. Eu o vi nas mãos de uma estudante de direito que trabalhava no hospital onde eu atuava e resolvi investigar.

Quando o li, gostei.

Gostei porque contava histórias de pessoas, de dores, tragédias e infortúnios. Sempre me senti atraído por histórias assim e gosto de contá-las também. Gostei também porque mostrava um mundo desconhecido para mim, o mundo dos “pecadores”, o “Inferno na Terra”. Um mundo que não era para os da minha espécie, os “cidadãos de bem”

O livro de Dráuzio Varella trazia uma descrição entre pitoresca e trágica da vida nesse universo. O estado repressor, as pressões internas, os sistemas de poder, os grupos, a violência crua, o confinamento, a sexualidade. O livro me fez pensar na “Vida Sexual dos Selvagens”, do Malinowski, uma leitura das diferenças culturais. Mas esse mergulho numa realidade e cultura diferentes é que me sinalizou que havia algo na obra que me causava desconforto.

É necessário haver distanciamento para produzir a análise de uma cultura. Para Malinowski os Trobiantes eram alheios ao seu código valorativo. Era possível a um europeu analisá-los por serem eles suficientemente diferentes para causar estranhamento. Eram aborígenes, e não reconheciam as mães como participantes na formação fetal, como erradamente supôs. Poderia, assim, analisá-los de um ponto distante, longínquo e sem influências.

Dráuzio, ao adentrar os muros da prisão como um cidadão, fez o mesmo mergulho numa cultura alienígena, vestindo o escafandro para manter intactos seus valores e referenciais. Mas para isso era necessário tornar os “bandidos” diferentes de si mesmo, cuja essência diversa o afastava inexoravelmente daqueles a quem observou. Dráuzio nunca reconheceu-se naqueles a quem descreveu.

Alguns anos se passaram e o livro fez sucesso, assim como o autor. Entrevistas, reportagens e um programa no Fantástico. Ok, ele era casado com uma atriz da Globo, mas isso por si só não explicaria a importância que se dava às suas palavras. Ele dizia algo – talvez uma voz messiânica portando a boa nova da tecnologia – que desejávamos ouvir. Não há como negar: ele falava algo que nossos ouvidos aceitavam de bom grado.

Drauzio Pumba

Em uma dessas entrevistas Dráuzio disse, em alto e bom tom: “Eu não gosto de bandido!”. Essa sua frase, e os posteriores comentários demeritórios sobre o parto clarificaram a ideia que vim a formar sobre esse personagem.

No livro Dráuzio deixa claro que a sua entrada no presídio foi para tratar prisioneiros com AIDs. Achava ele – e nos anos 80 isso fazia sentido epidemiológico – que a prisão poderia ser um foco de disseminação da doença que, a partir daí verteria para a sociedade “outra”, a nossa, a dos “não-bandidos”. Desta forma fazia sentido estar lá e mesmo assim declarar não gostar de ladrões e falsários; seu objetivo claro era salvaguardar a parte “boa” da sociedade do mal que a parte “ruim” poderia produzir.

Minha frustração com a obra Carandiru foi esperar dela um estudo sociológico, e ter encontrado uma etnografia bem escrita de uma tribo alienígena: os “meliantes“. Esses seres, que Dráuzio deixou claro não ter simpatia alguma, guardam diferenças quase imperceptíveis conosco.

Dráuzio submergiu no universo prisional sem nunca se aprofundar o suficiente para ver o quanto de nós eles possuem e, mais aterrador, o quanto deles habita em cada um de nós. Sua distância segura da essência do bandido lhe garantia a tranquilidade para atendê-los sem jamais se identificar com suas dores e dramas, conflitos e angústias. Ao mesmo tempo que tal afastamento nos garante um alívio (“isso jamais aconteceria comigo“) também impede que entendamos a dimensão humana do prisioneiro. Ele, assim coisificado e catalogado, deixa de ser uma ameaça para nós. O mesmo fenômeno ocorreu com os homossexuais: quando eram “doentes”, diferentes em essência – ou geneticamente – de nós, jamais nos ameaçaram. Quando os trouxemos para a normalidade sua semelhança conosco tornou-se maligna e perigosa. Era preciso exorcizá-la, e a homofobia contemporânea serviu a esses propósitos.

O escafandrista nunca sente na pele o sal do mar que o envolve. Dráuzio, que poderia enxergar-se nos dramas humanos de cada um daqueles detentos, preferiu descreve-los de uma distância segura.

Afinal, se muito perto chegasse, como evitar que, desavisadamente, viesse a se afeiçoar – e até admirar – um ser que nada mais é do que um “bandido”?

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Droga Milagrosa

fosfoetanolamina

Eu não gosto das manifestações do Dr Dráuzio, até porque tudo que ele fala é “chapa branca”. Nunca se ouvirá dele nada criativo, novo, instigante, questionador, provocativo ou que proponha mudanças na estrutura de poderes na saúde. É tome vacinas, faça pré-natal, exames preventivos, novas drogas etc. Além disso ele é um perfeito tecnocrata, sempre associado ao poder econômico e descaradamente contra o parto normal. Já escrevi um texto há mais de 15 anos chamado “Pumba”, quando de uma entrevista dele à revista Cláudia (ainda existe?) em que ele afirmava que parto era uma coisa muito chata e que era melhor fazer uma cirurgia e…. PUMBA!, se tirava o bebê sem ficar escutando gemidos e reclamações dos familiares, que ficavam de fora do centro obstétrico incomodando. Ele é um exemplar muito fácil de reconhecer da “velha escola médica”, acostumada com uma visão arrogante, pretensiosa, higienista e professoral da saúde. “Escute o que eu tenho a dizer, pois eu entendo da saúde de vocês muito mais do que vocês mesmos“…

Entretanto…. creio que ele está correto em não dar crédito à Fosfoetanolamina, droga que está sendo tratada como a “cura do câncer”. Não se pode vender uma droga – ou mesmo disseminar essa ideia – sem que seus efeitos sejam comprovados. Existem etapas FUNDAMENTAIS que não foram cumpridas, sem as quais não haverá PROVA da eficácia no tratamento de qualquer afecção. Dizer que há boicotes à sua experimentação pode ser até verdade, mas isso não exclui o fato de que sem comprovações ela não pode ser considerada um tratamento adequado para o câncer, seja de que tipo for.

A indústria farmacêutica é uma máfia das mais perversas existentes, e disso temos comprovações muito claras por testemunhos de inúmeros profissionais que foram atacados e perseguidos por suas ações ou descobertas. Entretanto, neste caso específico, não é a ação da “Big Pharma” o problema, mas as etapas que faltam para a comprovação da eficácia do medicamento. Sem isso qualquer atitude será extemporânea e, potencialmente, perigosa.

Não basta parecer um bom medicamento…. é preciso provar. Isso demanda tempo e dinheiro.

E paciência…

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