Cor-age

A medida da coragem é o risco. A medida do risco é a perda. A medida da perda é o valor. A medida do valor é o caráter. Para alguns quando a coragem se faz necessária não há firmeza no caráter que a sustente.

Jean Julien Dubois “A Guerra sem alma”, ed. Junot, pág. 135

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Elogio, ainda

Quando passei no vestibular, aos 18 anos, marquei de encontrar com os amigos no local onde as listas com os nomes dos aprovados seriam afixadas nas paredes. Fomos então aguardar no Estádio do Inter, onde funcionava um dos cursinhos pré-vestibular da época. Estas cenas, por certo, seriam impossíveis em um mundo como o de hoje, onde a aprovação seria enviada para seu celular em casa. Pois nos anos 70 as listagens de aprovação vinham impressas em papel e os estudantes corriam desesperados para encontrar – ou não – seu nome nas listas produzidas pelo CPD da Universidade.

Na hora em que as listas apareceram corri para a parede da sala e fui um dos primeiros a ver meu nome impresso. Estava ao lado do meu irmão e da minha namorada – também aprovados – e meus amigos, que estavam lá pela farra. Fizemos festa ali mesmo, na hora, com tinta, água e tesoura; não sobrou um fio sequer na minha cabeça. Depois de comemorar brevemente com a turma, voltei para casa, esgotado pelas emoções daquele dia. Ao chegar, foi meu pai quem abriu a porta. Olhou minha cara suja de tinta e minha cabeça raspada e deu um “meio sorriso”, bem característico para quem o conhecia.

No disse uma única palavra. Não me deu parabéns e nem sequer tapinhas nas costas. Ficou em silêncio enquanto eu percorria o corredor de casa para tomar banho. Depois jantamos e, mais uma vez, nenhuma palavra foi dita.

Assim como os sonhos são organizados enquanto os descrevemos, as palavras só fazem sentido quando são escutadas. Também os silêncios encontram sua maior eloquência no momento em que deixam imóveis as membranas timpânicas. De todos os elogios que recebi na minha vida, a mudez do meu pai no momento em que eu adentrava a vida adulta foi o mais intenso e significativo. Do vão misterioso que emoldurava sua fala sem palavras brotava a confiança de que esta vitória nada mais era do que algo esperado para quem ele tanto confiava.

Muitas vezes o elogio verdadeiro está em não elogiar…

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Sobrevida

A razão pela qual algumas pessoas vivem mais do que outras é porque elas se sustentam na rede de afeto que lhes é oferecida. Sem essas conexões de amizade e reconhecimento a vida torna-se um fardo, tanto para os outros quanto para nós mesmos. Devemos sempre agradecer aos poucos amigos que temos pelo apoio e o carinho, em especial nos momentos tristes e sombrios. A eles devemos nossa sobrevivência.

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Ícaro

O maior inimigo do sujeito é a arrogância; a autoconfiança exagerada produz as maiores tragédias. Por certo que é difícil o exercício da contenção e da humildade quando as rêmoras que cercam o tubarão não se cansam de elogiar suas habilidades e talentos. Todavia, a autoestima delirante é tão viciante quanto ilusória. A queda, portanto, é sempre espetacular. A tragédia que vemos na cúpula da República de Curitiba é o melhor exemplo da queda de Ícaro, pois os falsos heróis que hoje se encontram esfacelados, outrora vagavam cegos em direção ao sol, hipnotizados por seu brilho ofuscante.

O poder irrestrito é a única régua para medir o caráter.

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Cassação

Precisamos parar com essa mania de pedir cassação de parlamentares por qualquer motivo. Há que se respeitar a vontade do povo. Colocar a democracia nas mãos da justiça burguesa será sempre uma tragédia para a classe operária – mesmo que as vezes pareça nos favorecer. Para usar esse instituto (a mais grave das punições) é preciso provas contundentes de crimes gravíssimos, não o simples uso de perucas, palavrões ou o deboche. É inaceitável entregar o poder popular do voto para ser usado de forma arbitrária pelos membros do judiciário. Repito: quem paga por isso sempre serão os partidos populares e de esquerda. Não é necessário lembrar que a lei de ficha limpa, que parecia um avanço, foi manipulada até o limite e usada como instrumento para impedir a candidatura de Lula.

Os partidos da esquerda precisam aprender que pedir cassação dos inimigos todos os dias tentando aplicar censura da palavra sobre os adversários é um expediente que um dia se voltaria contra si mesmos. A esquerda precisa abandonar imediatamente a ideia de que censura e justiça burguesa podem resolver nossos problemas. Assumam a liberdade de expressão como princípio básico e combatam as mentiras com a devida responsabilização e com o contraponto da verdade.

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Suprema corte

Tenho, há muitos anos, uma curiosidade: ao mesmo tempo em que Gilmar Mendes questiona a formação do juiz que fala “conje“, e desconfia do concurso público que o admitiu na magistratura, lembramos que este mesmo juiz, ainda muito jovem, foi convidado a ser assessor da ministra Rosa Weber no STF. Esta ministra foi a mesma que protagonizou o monstrengo jurídico do “não tenho provas, mas a literatura me permite”, um contorcionismo usado uma única vez e apenas para condenar um político que era o “Ficha 1” para suceder Lula na presidência do país. Por que um sujeito nitidamente desqualificado atingiu postos tão altos em tão pouco tempo? Quem está por trás desse personagem?

Mas minha pergunta não deve fazer pensar que tenho simpatias pela Suprema Corte. Até um relógio parado acerta duas vezes por dia. Por isso não aceito a moda atual da esquerda gratiluz identitária que se expressa pela exaltação de ministros da Suprema Corte. “Te amo STF”, dizem eles para qualquer atitude violenta do Xandão. Só pode ser piada. Até o Dudu Bananinha alertou: “As esquerdas ainda não notaram que é da esquerda que virão as próximas vítimas?”.

Então o autoritarismo do STF agora pode ser aplaudido porque a decisão aparentemente está em sintonia com nossos sentimentos de vingança? Esquecemos o silêncio do STF para o impeachment ilegal de Dilma? Vamos passar pano para as ilegalidades inconstitucionais cometidas nos julgamentos de Lula, que só não destruíram o Brasil pela sorte de termos uma VazaJato? Por acaso seria justo ter um “Serjomoro Vermelho” para nos vingar, burlando as regras do judiciário para nos beneficiar? Ou será que ainda acreditamos na ideia de que a justiça burguesa poderá nos salvar?

Será que não percebem que a mão que (agora) afaga é a mesma que (logo em breve) apedreja?

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Minorias

Dave Chapelle (comediante de stand up americano) conta uma história muito interessante em seu último espetáculo. Após um dos seus shows – politicamente incorreto, como todos deveriam ser – foi ele confrontado por uma mulher trans que não gostou de suas piadas. Ele respondeu como é de praxe “Sinto muito que tenha se ofendido. São piadas, não tem a intenção de ofender, mas de nos fazer pensar”, etc. Ela não aceitou a desculpa, e dois enormes amigos gays que estavam ao seu lado resolveram interceder, ameaçando Dave. Houve uma breve troca de insultos. Como legítimo representante da “hood” Dave pagou pra ver. Cerrou os punhos e disse “bring it on”, chamando os dois para a briga.

Um dos gays, então, calmamente pegou o telefone e… chamou a polícia.

“Foi aí que eu entendi com mais profundidade a dinâmica das minorias”, disse Dave em seu show. “Excetuando-se eu, todas as pessoas nesse encontro eram brancas. Os gays se sentiram ofendidos por serem uma minoria oprimida, mas tão logo a situação chegou no limite do confronto físico eles imediatamente se tornaram parte da maioria branca, pois só um branco seria capaz de chamar a força do Estado para resolver um conflito”.

Num passe de mágica, pularam de uma minoria ofendida para uma maioria opressora. Fossem eles gays negros e jamais chamariam os tiras. Numa comunidade de pretos (hood) a polícia sai batendo indiscriminadamente, e não quer saber quem foi o “Clifford que fez a queixa” – todos são iguais para a borracha do cassetete. Precisa ser muito branco para confiar que a intermediação da polícia em uma briga lhe trará alguma vantagem.

A esquerda brasileira deveria aprender com isso. Cada vez que vejo parlamentares ou membros da esquerda exaltando as forças do estado burguês, acreditando que judiciário pode lhes proteger, eu lembro dessa história. Essas instituições servem à proteção da burguesia e não servem ao cidadão pobre que vive nos cinturões de pobreza, e também não estão a serviço daqueles que dão apoio político ao proletariado. Quem fica o tempo todo pedindo censura, exigindo a cassação de cegas parlamentares e apelando às instituições acaba se chamuscado com a própria fogueira que tanto abanou.

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Abandono

Talvez a cena que mais me chocou ao ver “Freud além da Alma”, filme de John Huston de 1962 com Montgomery Cliff e roteiro de Jean Paul Sartre, foi a cena em que Breuer, que funcionava para Freud como uma figura paterna, lhe diz que jamais arriscaria sua reputação para defender as ideias sobre as origens da histeria que ele havia formulado, dizendo não acreditar nas tolices por ele escritas. Naquele momento, em que suas ideias eram atacadas de forma vil pelos médicos da Ordem Médica de Viena, o abandono de uma figura tão importante para sua vida teve uma repercussão determinante e decisiva. Talvez tão importante quanto a morte do seu pai, o abandono de Breuer trouxe sombras à relação que ele manteria dali em diante com a própria Medicina.

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Elogios

É evidente que existem elogios sinceros e justos. Não há dúvida que suas ações – ou muitas delas – são merecedoras de apreço e consideração. Não há razão para desconfiar de qualquer palavra positiva sobre você, seu caráter, suas ideias ou o seu trabalho.

Todavia, os elogios podem ser grandes armadilhas. Muitas pessoas lhe elogiam para receber como recompensa um presente futuro: uma dívida de consideração e apreço. As pessoas podem lhe elogiar esperando de volta a mesma consideração e admiração. Portanto, acreditar em elogios, mesmo quando APARENTEMENTE não há retorno objetivo, é uma atitude no mínimo arriscada, pois que o ganho de quem elogia é inconsciente e subliminar.

Elogios devem sempre ser escutados com clara desconfiança. Raramente produzem benefícios, porém podem nos tornar arrogantes e presunçosos, pois carregam o pior dos venenos: a confiança exagerada em si mesmo.

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Jornadas, uma década depois

Estive com a minha família nas jornadas de junho em 2013, mais por curiosidade do que por interesse em participar de algum ato político. Eu já tinha iniciado meu rompimento definitivo com o reformismo e com a esquerda liberal, portanto não trazia comigo muita fé nas manifestações limpinhas da classe média. Chegando ao lado do Palácio do Governo a população se aglomerava enquanto se ouviam os gritos de “chega”, “abaixo a corrupção”, “não é pelos 20 centavos” entre outros bordões. Havia um nítido entusiasmo juvenil, parecido com o movimento surgido poucos anos depois que defendia o uso de shorts curtos pelas meninas de uma escola burguesa da capital. Confundíamos a puerilidade das liberdades burguesas com cidadania.

Na rua estava a classe média. Nao havia operários serventes, trabalhadores, empregadas, faxineira. Claro, havia pobres, mas aproveitavam para vender refrigerante e cachorro quente para os jovens da pequena burguesia. Entrementes, algo me chamou a atenção logo que cheguei ao evento: havia uma estrutura organizada para receber os inflamados discursos, o que deixava claro que existia uma fonte de recursos que sustentava o evento. “Quem paga?” perguntei retoricamente, recebendo de todos o silêncio como resposta.

Subindo pela rua que fica ao lado do fórum em direção à praça da Matriz, eu vi um pequeno grupo de não mais do que meia dizia de jovens tentar desenrolar uma grande bandeira vermelha com duas ferramentas pintadas de amarelo cruzadas ao centro. Foram imediatamente impedidos de fazê-lo por um grupo bem maior de transeuntes que seguiam na mesma direção. O grito deles ecoa até hoje: “Sem partido, sem partido”, gritavam. Para minha surpresa o grito percorria como eco pelas redondezas, chocando-se com as paredes externas da catedral e atingindo com força o Palácio do Governo onde, à frente, estava o palanque.

Como assim “sem partido”? Por que haveria a necessidade de bloquear a paixão partidária, a perspectiva política que unia os sonhos de grupos de cidadãos? E por qual razão estávamos todos juntos em manifestação? Contra o quê? Contra quem? Por qual ideal?

Para um bom observador seria fácil entender que a luta era contra a própria política. Foi nessas manifestações que surgiu o MBL, um movimento de direita, que surgiu à margem dos partidos, cuja intenção era expurgar a esquerda do cenário nacional através das redes sociais, das mentiras repetidas “ad nauseam”, mas que depois viu seus representantes se unirem aos partidos tradicionais da direita brasileira. “Sem partido, se for de esquerda e popular; se for partido burguês está liberado“. Não só isso; eles foram partícipes diretos do golpe de 2016 emprestando apoio a Eduardo Cunha e aos atos a favor do impeachment fraudulento. O cerne das reivindicações era destruir a própria política, transformando-a em uma prática tecnocrática bem afeita ao “fim da história”.

Os avanços da esquerda com os governos de Lula e Dilma se tornaram insuportáveis à burguesia. Não havia como aceitar o risco de que, findo o governo Dilma, o PT lançasse uma nova candidatura e completasse 2 décadas de poder. Havia que se criar um ataque moral à esquerda, pois que era difícil criticar governos que haviam produzido uma melhora significativa em todos os parâmetros da vida nacional. Assim como os ataques à Getúlio, Juscelino e Jango o foco seria a moralidade, o “mar de lama”, a roubalheira, a sujeira ética. Não foi possível com o mensalão, mas seguiria com as “pedaladas” e depois com o Triplex e o sítio de Atibaia. O sucesso dos seguidos ataques nos levou a seis anos de retrocessos com Temer e Bolsonaro, e a destruição de inúmeras conquistas populares.

Existem duas vertentes na esquerda para explicar as jornadas. A primeira diz que as manifestações foram orgânicas, fruto da insatisfação popular, mas que saíram do controle e foram sequestradas pela direita, pelos agentes da burguesia e pelo mercado financeiro. A outra vertente é que as “jornadas” foram desde o início pontas de lança para o golpe, organizadas desde o princípio para tal, assim como as primaveras coloridas, as manifestações na Praça da Paz, o Euromaidan e todas as outras iniciativas imperialistas pelo mundo afora. Ou seja, havia um dedo da CIA nas manifestações, da concepção estratégica à execução.

Eu não tenho mais nenhuma ilusão quanto à capacidade do Império de financiar golpes, por isso acredito que eles estiveram por trás dessas iniciativas desde o seu surgimento. Escolha você em qual perspectiva prefere acreditar. Eu creio, como Lula, que por pior que possa parecer à vista desarmada, não há solução melhor para um país que não passe pela política. Suprimi-la, por seus inquestionáveis defeitos, significa abdicar da própria vida democrática.

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