Menos Médicos

Não é justo cobrar que entidades médicas se interessem pela saúde da população. Essas entidades estão centradas na saúde… dos profissionais que as compõem. Imaginar que as corporações darão apoio a iniciativas que diminuam seu poder político é pura ingenuidade. Elas não foram criadas para isso, mas para manter e garantir o poder social e econômico ao grupo que representam. Por esta singela razão, jamais podemos oferecer posição decisória a grupos criados para olhar para a saúde de forma parcial, sem observar a complexidade que esta atenção demanda. Pacientes não podem ser reféns de quem analisa a saúde de maneira unilateral.

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Etarismo

Muitos casos tem nos mostrado um dilema evidente no nosso cotidiano: a proteção às pessoas de um determinado grupo supostamente oprimido (pessoas mais velhas, trans, gays, negros, etc) fatalmente as transforma em “pessoas especiais”, o que, ao meu ver, retira delas o protagonismo. Como já foi dito centenas de vezes, quem é vítima não pode ser protagonista; o primeiro é objeto enquanto o segundo é sujeito. Em diversas oportunidades vemos pessoas de mais idade tornando-se (ou sendo tratados como) sujeitos que precisam de “cuidado” e, portanto, incapazes de cuidar de si mesmos. Entretanto, existem muitas pessoas nesta faixa etária que se rebelam contra esse tipo de atitude, que em verdade dissimula uma perspectiva diminutiva fantasiada de “atenção”. Lembro muito bem do meu pai em férias que se negava a fazer “ginástica na praia” por medo de ser cuidado e tratado de forma carinhosa pelos professores, como se ele fosse um bebê incapaz de fazer os exercícios sem supervisão.

A proteção excessiva é a face cor de rosa da exclusão. Por isso a proteção abjeta à estudante de 44 anos fui um exemplo pedagógico de “suco de etarismo concentrado”. Lembrem apenas das crianças que recém aprenderam uma habilidade (amarrar os sapatos, por exemplo) e da sua reação indignada e saudável em direção à autonomia quando tentamos fazer isso por elas. “Eu não sou mais bebê”, dizem eles.

Estas ações também me fazem questionar a proteção oferecida às gestantes que, assim que acessam o hospital, são colocadas em cadeiras de rodas. Muitas são tratadas como “princesas”, sem se dar conta que esse tratamento de exceção apenas revela o (pré)conceito que temos delas. No hospital são vistas como deficientes, dotadas de “fraqueza”, “fragilidade”, e incompetência, algo que elas carregam pela sua essência feminina – fraca e dependente. Ou seja, não é possível empoderar e fortalecer a maternagem se continuarmos a tratar as mulheres – e em especial as gestantes – como bonecas frágeis que demandam cuidados especiais.

Michael Klein, um colega médico do Canadá 🍁 cuja esposa sofreu um grave acidente automobilístico, certa feita me contou sobre a trajetória de recuperação de sua esposa. Depois de se recuperar do acidente, e sabendo da sua condição de deficiência pelo resto da vida (ela ficou paraplégica), pediu ao marido que a deixasse sozinha por duas semanas na sua casa de campo. Disse a ele para não aparecer por lá em nenhuma circunstância. Garantiu a ele que tinha um sistema de emergência que seria acionado caso necessário, mas que não tinha interesse em usar. Precisava usar este período para provar para si mesma que era capaz de continuar a viver apesar de suas óbvias condições de dependência. Não desejava se colocar na posição cômoda de cobrar do mundo um cuidado especial. Seu objetivo era fugir da atitude sedutora “agora sou deficiente e mereço ser cuidada”. Não aceitava ser objeto de cuidado dos outros, mas conquistar autonomia para cuidar de si mesma. Ou seja, assumir a posição de sujeito, com limitações e dificuldades, mas sem desistir de alcançar autonomia e protagonismo em sua vida.

Eu fiquei indignado e triste com a atitude da estudante “velha”. Sim, velha, pois foi assim que ela mesma se reconheceu. Sua ação foi um desserviço para todas as outras mulheres maduras que chegam ao ensino superior, que a partir de agora serão tratadas como deficientes, incapazes de suportar as dificuldades que qualquer outro estudante precisa encarar. Fosse ela a esposa do meu colega e iria conversar com as meninas, explicar sua vida, mostrar suas conquistas, apresentar a família, convidar para um café, mostrar onde mora e criar proximidade com as garotas. Ou responderia de forma desaforada para as “pirralhas”, mas não se fecharia como uma ostra. Mostraria sua força e o quanto é forte para suportar por si mesma as críticas e gracejos inevitáveis na vida social. Infelizmente ela preferiu ser a princesa frágil que chamou o príncipe (o Estado, a Justiça burguesa) para resolver o problema por ela.

Para ver como esta questão pode ser vista com os olhos do humor, veja aqui

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Críticas

A cultura do cancelamento produziu a estagnação do pensamento crítico estabelecendo barreiras para qualquer análise. Assim, o “lugar de fala” foi usado como mordaça por determinados grupos que acreditavam que uma unidade pétrea de postulados, infensa a qualquer crítica externa, produziria fortalecimento. Pelo contrário: produz fanatismo e atrofia, além de fomentar um contraditório cada vez mais poderoso. O que vemos hoje é o crescimento muito grande de grupos que contestam de forma sistemática as teses pós-modernas sobre gênero, sexualidade, raça, etc. fortalecidos pela postura muitas vezes autoritária, fechada e punitivista daqueles que supostamente defendem minorias.

O cancelamento, por certo, fez bem a ambos. Procuro manter uma respeitosa distância com aqueles que atuam no maniqueísmo identitário que destrói as propostas inovadoras de convívio com as diferenças. Todavia, o que eu queria ressaltar neste texto é a importância de manter viva a crítica. É evidente ser impossível realizar juízos severos aos erros que testemunhamos sem correr o risco de ofender pessoas; arriscar-se a ofender está implícito em qualquer análise de valor. Mesmo quando ela é impessoal e técnica ainda assim é possível que o sujeito, alvo da crítica, se sinta pessoalmente atingido. Isso porque muitos ativistas incorporam as ideias como se fossem parte de si mesmos, como fervorosos religiosos que se sentem mor(t)almente atacados se alguém questiona seus dogmas. Criticar a fé das pessoas é ameaçar o próprio crente, pois que ele não distingue suas crenças de si mesmo.

A cultura do cancelamento produziu a estagnação do pensamento crítico estabelecendo barreiras para qualquer análise. Assim, o “lugar de fala” foi usado como mordaça por determinados grupos que acreditavam que uma unidade pétrea de postulados, infensa a qualquer crítica externa, produziria fortalecimento. Pelo contrário: produz fanatismo e atrofia, além de fomentar um contraditório cada vez mais poderoso. O que vemos hoje é o crescimento muito grande de grupos que contestam de forma sistemática as teses pós-modernas sobre gênero, sexualidade, raça, etc. fortalecidos pela postura muitas vezes autoritária, fechada e punitivista daqueles que supostamente defendem minorias.

Essa cultura também produziu a exaltação do individualismo que nos coloca na posição de soberanos absolutistas do gosto. Ou seja: se eu gosto então é maravilhoso e a opinião do outro (não importa se for um estudioso da área) é irrelevante diante da suprema autonomia da minha opinião própria. Mais ainda em campos como literatura, cinema ou música. Nesta última tornou-se comum a ideia de que a trajetória do músico é mais importante do que sua obra. Assim, o passado de pobreza, as fotos de quando era uma pessoa comum, o impacto das dificuldades pelas quais passou e as barreiras que teve de ultrapassar tornam, magicamente, proibidas quaisquer críticas às suas produções e performances musicais. Se o(a) cantor(a) for membro de uma minoria oprimida qualquer juízo será tratado como preconceito ou xxxx-fobia. Com isso produzimos uma geração incrível de artistas medíocres cuja produção não pode ser questionada, sob pena de imediato cancelamento. Criou-se uma blindagem que protege a produção ruim de qualquer comentário negativo.

A necessidade do contraditório e a proteção da crítica são elementos fundamentais em qualquer sociedade. É certo que algumas julgamentos (como certas piadas) são ataques violentos e preconceituosos travestidos de “opinião e análise”. Todavia, o bom observador, percebe rapidamente qual o real objetivo da análise ou do gracejo. Além disso, não se pode cancelar a crítica e o humor sem que haja um transtorno grave na sociedade, o que leva inevitavelmente ao emburrecimento e à estagnação. Mesmo quando ela possa levar à ofensa e ao ataque pessoal – práticas que também merecem censura – ainda assim não podemos permitir que ela seja cerceada.

“Tão triste quanto o retrocesso dessas conquistas, que vimos na era fascista, é vermos hoje uma nova geração com clamor identitário, herdeira de lutas emancipatórias, equiparar-se aos censores reacionários, inimigos da liberdade, em estratégias moralistas patéticas e antidemocráticas. (…) A garantia do ‘lugar de fala’, legítima quando promove, é tirânica quando apregoa que se calem outras vozes e lugares”. (Francisco Marshal, coluna Zero Hora, 25 março 2023)

Para uma análise mais madura e qualificada sobre o tema aqui está o texto do Juremir Machado da Silva.

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Preconceitos

Esse é o cerne do identitarismo: a ideia de que para defender meu grupo não importam as demandas que os outros grupos sociais fazem, igualmente atacados pela sociedade injusta em que vivemos. Para defender uma suposta superioridade de um gênero sobre outro (leia-se sexismo) vale atacar a classe trabalhadora, os pobres, o “lumpenproletariat“, os trabalhadores braçais, os estivadores, todos colocados na posição de “burros de carga”. Pois se o movimento feminista pretende um dia ser uma força ativa na sociedade o ataque ao proletariado é a ação mais insensata possível.

E sim, o sujeito a quem foi endereçado este comentário vai pensar. Seu pensamento será: “ok, esta é uma disputa, nós contra elas”. Os proletários, ao fazerem sua revolução, desta forma já sabem que não poderão contar com quem os trata como tolos animais de carga. E quando estas mulheres saírem às ruas com cartazes “parem de nos matar” de nada vai adiantar gritar, pois estes pobres trabalhadores estarão ocupados no porto, carregando as caixas cheias de produtos que chegam para tornar a nossa vida mais fácil.

“Sem diálogo ou negociação, as batalhas morais beneficiaram os conservadores, já que, historicamente, se associa a eles o monopólio da moralidade. O ativismo e a própria área de pesquisa em gênero e sexualidade contribuíram para sua própria derrota ao lidarem com seus adversários em termos que os favoreciam” (Richard Miskolci, em Extra Classe)

Ou seja: usar as armas do machismo nessa luta apenas favorecerá os conservadores. Essa retórica favorece a narrativa dos machistas que enxergam nessa disputa seu terreno mais favorável. Parabéns ao envolvidos.

Dizer que homens carregam sacos de 50 kg é apenas a verdade. Talvez você nunca tenha visto um caminhão de uma obra sendo descarregado, mas isso ainda é muito necessário. Não só isso: bombeiros, policiais, eletricistas, todos os trabalhadores da construção civil são obrigados a realizar muito esforço físico. E nem vou debater o argumento dele de “cotas para serviços pesados”, mas apenas a resposta absurda que a engenheira deu.

Portanto, não foi ele quem se colocou como “burro de carga”, mas a própria sociedade construída para que estas tarefas duras, arriscadas e perigosas sejam atribuição dos homens. Existem milhões de homens que carregam sacos, pedras, cimento, areia e carregam os móveis para nossas casas. Chamar estas pessoas de “burros de carga” mostra duas coisas: primeiro, a profunda ignorância de uma engenheira (!!!), que não sabe que para certas situações as rodas não ajudam em nada, e o trabalho físico pesado continuará sendo necessário – até que a evolução da tecnologia impeça o sacrifício dos homens nessas tarefas – algo que ainda estamos muito longe. A segunda coisa é que chamar o trabalhador braçal de “burro de carga” apenas afasta qualquer tipo de simpatia para a causa feminista.

Aplaudir esta estupidez dupla apenas atrasa os avanços que são necessários para se criar uma sociedade mais justa. Essa engenheira expôs seu desconhecimento em público, usando um preconceito de classe para tentar combater um pretenso preconceito de gênero. Mais ainda, colocando uma cobertura pouco digestiva de sexismo sobre tudo ao afirmar que “as mulheres são melhores” quando se trata de colocar azulejos, o que não tem nenhuma base em qualquer estudo conhecido – e nem de que os homens sejam melhores neste ofício.

Suco de identitarismo lacrativo. Aliás, quando perguntarem porque os avanços nessa área são tão lentos lembre que estas pessoas fazem de tudo para atrasá-los…

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Os Médicos e a Escuta

Esse é um um dos problemas clássicos da medicina: fale por não mais do que cinco minutos com um médico tradicional, formado em uma universidade padrão, e diga a ele que sua dor de cabeça ocorre quando está para chover, ou que sua pressão no peito melhora quando chora muito. Em poucos instantes verá o quanto a descrença nas palavras dos pacientes funciona como uma religião niilista, que sustenta sua arrogância e mantém a ilusão de superioridade que carrega sobre todos os outros mortais.

Para ele, os pacientes produzem ilusões sobre si mesmos, ficções criadas para dar sentido às suas dores, mas apenas o médico, dotado do saber iluminista e isento de preconceitos, consegue desvendar o que sequer o paciente é capaz de descobrir. Repito a pergunta do amigo Cláudio Sousa: “que satisfação resta a este c(l)ínico tão desencantado com as mentiras que seus pacientes contam?”

A coisa mais bela da arte médica é a capacidade – que raríssimos médicos possuem – de escutar seu paciente, sem confiná-lo a uma lista diagnóstica, uma caixa constrita de verdades pré-estabelecidas, valorizando o que o paciente tem a dizer sobre si mesmo, produzindo suas próprias verdades.

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Livro

Pode ser uma ilustração de 2 pessoas e área interna

Minha irmã ficou usando o computador do meu pai no tempo em que ele esteve doente no hospital, em especial porque nele estavam os programas do banco para gerenciar seu dinheiro. Depois da morte dele o computador acabou ficando para mim, e é nele que eu passo os dias escrevendo. Não troquei nada na sua aparência ou configuração, apesar de adorar formatar computadores. Quem já trabalhou num computador recém formatado conhece a maravilhosa sensação, como de um banho recém tomado depois de jogar bola na chuva. Tudo fica mais rápido, mais simples, mais otimizado; tudo é limpo e claro.

Mas não fiz isso com o PC do meu pai. Nesse caso decidi manter as coisas dele intactas, em especial o “wallpaper”, uma obra sua baseada em um famoso quadro de Norman Rockwell – desenhista do “American way of life” que ele adorava, em especial pelas expressões dos personagens. Ontem, ao procurar fotos antigas no computador, esbarrei numa pasta “artigos”, que julgava serem coisas que eu mesmo havia escrito. Cliquei e para minha surpresa estava ali escondido o que, para mim, é um raro tesouro.

O livro jamais publicado que ele escreveu.

O título é chamativo: “Reflexões de um Espírita Laico”, o que tem muito a ver com as “Memórias de um Homem de Vidro”, livro que humildemente escrevi há quase 20 anos, provavelmente porque, como ele, queria deixar reflexões sobre minha breve passagem pela Terra. Neste livro meu pai busca as origens do pensamento espírita e estabelece o corte epistemológico do espiritismo laico, modelo filosófico e científico dedicado ao estudo da sobrevivência do princípio espiritual desvinculado das amarras moralistas da religião, em especial o sincretismo espírita-cristão como se observa no Brasil. Muitas das crônicas foram publicadas em periódicos e livros, a pedido dos editores, mas ele se negou a formatá-lo em forma de livro. Por certo que tinha medo da sensação de não gostar de algo que não poderia fazer retoques e modificar.

Apesar de ter se negado a transformar suas ideias em livro, creio que esta decisão não mais lhe pertence. Digo isso porque acredito que as ideias dos homens pertencem ao mundo – aliás, uma frase que ele cansava de me repetir. Caso fossem descobertas agora obras de Heráclito, de Heródoto de Aristóteles e de Parmênides nos escombros da Biblioteca de Alexandria com uma nota na capa escrito em grego “Não Publicar” (“δεν δημοσιεύεται” ou “den dimosiévetai”) e com a assinatura do autor, seria lícito aceitar suas exigências? Seria justo privar os leitores das ideias destes homens por um capricho humano seu? Ou, como meu pai sempre dizia, seus pensamentos pertencem ao mundo? O livro que ele escreveu é uma coletânea de reflexões sobre o espiritismo para o século XXI, muitas delas já publicadas no jornal do CEPA. Portanto, não faz sentido impedir que sejam agrupadas em formato de livro.

Minha reclamação para ele durante anos foi de que suas ideias – inovadoras e desafiantes – no campo do espiritismo jamais foram devidamente publicadas. “Não gosto de escrever, prefiro falar”, dizia ele. A verdade é que as palavras ficam registradas e são, por definição, incompletas na tarefa de cobrir a infinitude das descrições do mundo. Era para ele torturante a simples criação de uma frase, pois seria sempre possível ajustá-la, torná-la melhor, mais abrangente, mais enxuta, mais clara.

Mas, inobstante o incômodo pelo perfeccionismo virginiano que sempre o caracterizou, ele escreveu. Ler seu livro agora, alguns anos após sua morte, é como escutar suas palavras na sala de casa, com sua voz suave e seu jeito meigo de conversar.

Espero conseguir publicar este livro em breve. Acho que devo isso ao velho.

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Ventiladores

Esboço para uma piada…

Duas ventiladores conversam. Uma diz para a outra:

– Puxa, como você está bonita. Deveria trabalhar de modelo. Ganharia um bom dinheiro.

– Amiga, eu já faço isso. Por uma boa grana tiro a grade da frente e deixo minhas pás à mostra.

– Wow, sério? E onde faz isso?

– Only Fans…

Safadeeeenha

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Nós e eles

No Facebook ninguém jamais foi egoísta, sacana, maldoso ou ruim. Todo mundo sofreu bullying, ninguém jamais o cometeu. Todos foram injustiçados, mas ninguém foi autor de grosseiras injustiças. Todos guiaram sua conduta pela bondade e pela solidariedade, mas foram vítimas contumazes da maldade alheia. A ninguém jamais ocorreu agir em causa própria para obter vantagens; as ações sempre foram direcionadas para o bem comum. Todos são merecedores de erguer a mão e responder à pergunta de Jesus, afirmando impávidos “Eu, mestre. Sim, eu sou isento de pecado e posso atirar a primeira pedra. Façavor de me alcançar o paralelepípedo”. As redes sociais são pródigas em mostrar estes vestais, seres isentos de pecado, candidatos a atirar as primeiras pedras.

Ao lado da consciência de classe precisamos também aprender a calçar as “sandálias da humildade”. Ou ao menos aprender com o dramaturgo romano Publius Terentius Afer (Terêncio) que dizia “Sou humano, e nada do que é humano me é estanho”. Sem muito esforço consigo perceber toda a gama infinita de maldades humanas dentro de mim mesmo, das mais perversas às mais banais e imperceptíveis. A diferença entre mim e os criminosos que ocupam as prisões é pequena demais para que eu possa reconhecer uma essência distinta entre nós. Muitas vezes circunstância e contextos produzem estas distâncias enganosas, muito mais do que o caráter.

O apontar de dedos e o punitivismo inexorável das redes sociais não cansam de me surpreender pelo seu vigor e resistência. É a sanha punitivista que me espanta, em especial quando surge no seio da esquerda. Por que desacreditamos tão facilmente no perdão e na compreensão das falhas? Por que tanto sentimento de vingança que tanto nos aproxima dos verdugos e algozes da classe média? Qual o sentido de nos colocarmos tão acima daqueles que erram? Por acaso somos feitos de uma matéria distinta? Acreditamos mesmo em diferenças tão marcantes de caráter entre nós e o mar de pecadores que nos cerca? Que retrocesso espiritual é esse que nos faz gozar com a punição e a vingança?

A ideia de colocar-se acima dos outros – inclusive dos reais criminosos – é um erro que eu não tenho coragem de cometer. De novo trago as palavras dos antigos: “Nunca diga que dessa água não bebereis”. Sabe-se lá qual a sede que te consome. Tivesse eu bebido a mesma água que tantos beberam, passado pelas agruras de suas vidas e sofrido na carne o que sofreram e só assim seria possível dizer que jamais cometeria seus erros. Qualquer julgamento feito sem ter calçado os seus sapatos é injusto. E, mais uma vez, a impossibilidade de julgar as pessoas não significa a impossibilidade de julgar suas ações e seus crimes, assim como impor as punições que sejam necessárias.

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Voodoo

Pode ser uma ilustração

Garota liga para o ex-namorado

– Oi Ric, queria te perguntar uma coisa. Não se preocupe, não é sobre nós.
– Diga.
– Alguma vez já sentiu como se alguém distante tivesse um boneco de vodu igual a você e estivesse enfiando nele uma agulha na altura do peito?
– Não, nunca. Por quê?
– …… tá, e agora? Nada ainda?

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Voltar pra casa…

Subitamente “Manhã de Carnaval” é interrompida com dois (talvez três) estampidos secos, que cortaram a harmonia do nosso canto, cruzando o vazio escuro da noite, interrompendo nossos glissandos e deixando o silêncio como rastro. Por alguns segundos o acompanhamento ficou sem a melodia a lhe guiar.

– Um escapamento de moto, disse Claiton, que acabara de afirmar a “beleza da manhã” nas palavras de Luiz Bonfá.

Mantivemos o silêncio por mais alguns instantes, para ver se haveria mais surpresas, mas por ora a noite não tinha mais nada a nos declarar. Mudamos de assunto, cantamos “Canto em qualquer canto”, sorvemos o último gole de cerveja e raspamos o prato de bolo que Lúcio nos trouxe. O ensaio do “DaBocaPraFora” se encerrava, e combinamos nos encontrar em dois dias para cantar no Instituto de Artes.

Depois das despedidas na casa de Luciane coube a mim, mais uma vez, a agradável tarefa de levar Gica e Elba para suas casas. Entramos no carro e imediatamente selecionamos a trilha sonora de nossa curta trajetória. “Almondegas” seria o prato da noite, em preparativos para o show de reencontro do grupo que ocorreria em duas semanas.

Foram necessários apenas 50 metros em nosso caminho para que as coisas, por fim, fizessem sentido. Uma viatura da polícia bloqueava nossa passagem. Alguns metros adiante um corpo jazia no asfalto duro da noite quente.

– Eram tiros, dissemos, quase ao mesmo tempo, como se a ficha caísse em uníssono.

– Vou ter que dar a volta, disse, enquanto a crueza da cena era digerida por todos e o carro desviava da tragédia.

Depois de alguns momentos Gica nos disse, com uma voz pesada e séria:

– Alguém não vai voltar para casa esta noite.

Ficamos em silêncio por alguns momentos. Ela continuou,

– Sabe, não importa o que houve, se era uma boa pessoa ou se era um criminoso. Não sabemos se a vítima era jovem ou idosa. Por pior que fosse, esta pessoa tinha família, irmãos, pais talvez. Foi pequeno, criança, brincou na chuva como todos nós; teve sonhos e alegrias. Mas hoje não vai voltar para casa.

Mantivemos nosso silêncio de reverência. No carro havia um pai, duas mães e três avós. Todos nós temos ideia do que seja o vazio de um filho que não volta, de uma espera angustiante e o som metálico e tenebroso de um telefonema trazendo a pior das notícias. Todos entendemos a tristeza de perder, pois por certo já amamos o suficiente para entender o quanto pode doer a falta de alguém.

Seguimos nosso caminho de volta para casa, para os nossos amores, escutando nossa música, lembrando dos filhos e netos e com nossa mente conectada a alguém que, esta noite, não vai voltar para casa.

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