Arquivo do mês: outubro 2021

Condescendências

Quando vejo lideranças indígenas falando dos “brancos” penso que é tão errado e preconceituoso quanto dizer “os índios”. Pior, romantizar os indígenas é pura ingenuidade e essencialismo, que não resistem a 5 minutos de evidências. A ideia de que existe uma perspectiva de mundo essencialmente diferente entre os indígenas e os “brancos” não faz sentido. Os indígenas não “amam” a floresta como nós gostamos de pensar, apenas estão envoltos por ela e não possuem (como nós) as condições de destruí-la – ou modificá-la.

Tratar indígenas assim não ajuda suas causas. Nosso erro continua sendo estabelecer diferenças morais entre brancos, negros, indígenas, mulheres, homens, héteros e gays. Quando se examina sem preconceito vemos que em todos esses grupos existem virtudes celestiais e defeitos horrendos. Somos todos feitos da mesma massa bruta e nossas diferenças são meramente circunstanciais e contextuais.

Sabem quanto tempo por dia um indígena ou aborígene que vive em um sistema de “caça e coleta” trabalha em suas funções específicas, para produzir alimentos, moradia, proteção, etc?

Duas horas, em média, por dia. Exato, apenas duas horas de trabalho, porque o estilo de vida que está à sua disposição oferece de forma muito abundante os recursos necessários. O resto do tempo é usado para “curtir”, contar histórias, namorar, tomar banho no rio e contemplar. As populações pré agriculturais tinham este tipo de relação com a natureza e, portanto, não é a essência dos indígenas que os torna mais “respeitosos” com a natureza, mas a sua simplicidade cultural e sua forma de relação com o meio ambiente. Todavia, basta que achem uma garrafa vazia de Coca-Cola para que sua estrutura social se transforme completamente, e valores que sobreviveram por milênios sejam desafiados de forma marcante (aqui me refiro à brilhante comédia sul-africana dos anos 80 – “Os Deuses devem estar Loucos”).

Regredimos ao nos tornarmos “civilizados”? Bem, de uma específica perspectiva sim, em especial no que diz respeito à criminalização do lazer e do prazer, mas não se percebermos que este estilo de vida produz uma brutal dependência da natureza. Quando uma criança da comunidade vira comida de jacaré a gente começa a pensar um pouco mais sobre as vantagens da civilização e o quanto a aplicação de tecnologia pode ter seu valor. Uma proteção maior contra as fúrias naturais vai ocorrer na medida em que temos mais controle sobre a natureza e menos dependência de sua “bondade” para conosco. Com isso deixamos a posição de meros objetos da natureza e passamos a ser sujeitos dela. Mas, não há duvida de que a existência de agrupamentos nativos com uma estrutura social muito próxima dos caçadores coletores é uma excelente forma de analisar os (des)caminhos das civilizações contemporâneas.

Não esqueça dos “tigres de dentes de sabre”, que habitaram o continente americano (inclusive no Brasil) durante a pré-história, e desapareceram há cerca de 10 mil anos, mas que foram exterminados pelas populações NATIVAS, e não por exploradores brancos malvadões. O mesmo fenômeno nos fala Zizek a respeito dos búfalos americanos, e porque não seria igual com os “nativos” europeus e sua relação com os mamutes?

Por fim, “patronizing” é uma palavra de difícil tradução para o português, mas é a melhor palavra para explicar este fenômeno de tratar grupos oprimidos como se fossem moralmente superiores. Acho que a melhor tradução ainda é “condescendência”. Creio que sempre que temos este tipo de essencialismo condescendente com indígenas estaremos atrapalhando sua autonomia. O mesmo com outros grupos historicamente oprimidos, como mulheres, negros, imigrantes, gays, etc…

Abaixo a manifestação de Zizek sobre o tema…

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Desatenção

Mais uma vez eu estava saindo do Bazaar sem comprar o que tinha em mente. “Não temos seu número”, disse a simpática vendedora. Ok, pensei eu. Afinal, para ser bem franco, eu não tinha mesmo nenhuma necessidade de comprar nada, muito menos um “tênis para longas caminhadas” em promoção. Bastou a menina da loja me dizer que não poderia satisfazer meu impulso consumista e um alívio tomou conta de mim. Melhor assim. Volto para casa de mãos vazias, mas com a consciência limpa.

Ao dobrar o corredor da cafeteria em direção ao estacionamento eu percebi meu colega Tarik sentado sozinho em uma mesa, absorto com seu celular nas mãos. Encontrei Tarik há muitos anos, ainda na faculdade, e fui o responsável direto pela sua entrada no nosso grupo de trabalho. Conhecia seu serviço e gostava de sua dedicação e iniciativa. Achei, desde o início, que ele poderia somar no trabalho que estávamos iniciando e acreditei que sua presença poderia acrescentar dinamismo aos nossos projetos.

Desviei meu caminho da saída e me dirigi à sua mesa.

– Tarik, tudo bem? Como vai?

Ele me olhou com surpresa, mas de forma pouco expressiva. Eu me sentei à sua frente enquanto ele me dava um “olá” sem muito esforço. Animado pelo encontro fortuito eu lhe disse:

– Eu precisava mesmo conversar contigo rapidamente sobre o que pretendemos fazer no departamento. Estamos com planos importantes e gostaria muito de saber sua opinião e sua posição sobre o que decidiremos na próxima quarta-feira.

Tarik me olhou impassível por alguns instantes e após esta pausa disse:

– Ok, aguarde um instante. Vou buscar o café.

Levantou-se da cadeira e dirigiu-se à cafeteria à frente. Passados alguns instantes ele voltou com uma bandeja que continha uma xícara de café. Olhou-me nos olhos e disse:

– Bem, o que você queria mesmo me dizer?

Foi naquele momento, quando me dirigiu a pergunta, que eu entendi o que, até então, eu havia sido incapaz de perceber. Imediatamente tudo passou a fazer sentido e fui tomado por grande constrangimento. Literalmente eu não sabia o que dizer ou fazer. Por certo que ali estava mais um gigantesco erro meu: uma arrogância imensa e uma profunda incapacidade de enxergar por detrás do meramente aparente à visão desarmada. Fui envolvido por uma nuvem escura de desapontamento, uma vergonha súbita e constrangedora. Baixei o olhar e o fixei mais uma vez no café, seus matizes de marrom e negro, seu vapor hipnótico e seu odor cativante.

– Nada, Tarik, nada. Não era nada. Olha, eu falo com você outra hora, talvez na quarta-feira, antes da reunião. Preciso sair agora. Foi um prazer lhe ver. Mande um abraço para Laila.

Estiquei a mão e cumprimentei Tarik antes de sair. Senti em sua mão um aperto frouxo. Olhei para ele à minha frente e pensei: “Que tipo de pessoa poderia comprar uma única xícara de café ao conversar com um amigo e tomá-la sozinho, sem qualquer constrangimento?”

A resposta era simples: alguém que tinha por mim profundo desprezo. Agora estava explicada a reação de Tarik ao me ver: ele estava claramente constrangido com minha falta de percepção dos seus sentimentos. Eu nunca havia percebido o ódio que Tarik nutria por mim, e o quanto ele me desconsiderava como colega. Estivera ali, por todos esse tempo, e eu nunca fui capaz de enxergar.

Por muitos anos depois desse dia continuei sentindo o gosto amargo da vergonha ao me lembrar de tamanha desatenção. Infelizmente ela aparece com mais frequência no momento em que fixo meus olhos em uma uma xícara fumegante de café.

Aisha Boukhalfa, “Oásis de Ideias”, ed. Sextante, pág 135

Aisha Boukhalfa é uma escritora argelina nascida em Batna, em 1975. Fez seus estudos em Argel na Benyoucef Benkhedda Universidade de Argel, tendo se graduado em jornalismo em 2005. A partir de então tem se ocupado com o movimento feminista argelino, a participação no partido Comunista da Argélia e seu trabalho como doula atendendo partos nas cidades de Argel, Blidas e Boumerdas. Por seu ativismo feminista e seu trabalho como doula ela acabou se tornando cronista, e suas histórias acabaram se transformando em livro. “Oásis de Ideias” é uma coletânea de histórias sobre suas experiências, em especial com o trabalho com gestantes em um país onde os direitos reprodutivos e sexuais ainda estão muito defasados quando comparados com a Europa ocidental. Suas crônicas são distribuídas através do seu blog pessoal e do Facebook. Mora em Argel e é casada com o enfermeiro Omar Boukhalfa, com quem tem uma filha nascida de parto domiciliar chamada Iasmin.

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Médicos

Eu acho que, inobstante o avanço da ciência e da tecnologia, não há como os médicos tornarem-se obsoletos e trocados por equipamentos, por mais sofisticados que eles se tornem. Por outro lado, estes médicos que consideramos “top de linha” – que em verdade são bons ou excelentes técnicos – poderão ser substituídos por robôs ou terão suas ações realizada por engenheiros, sejam eles mecânicos ou geneticistas.

Além disso, imaginem a transformação radical que vai ocorrer na prática médica quando políticos e sanitaristas resolverem os problemas produzidos na saúde pública pela pobreza, a fome, a competitividade doentia, as guerras, a exploração do trabalho, os acidentes evitáveis, o ódio de classe, o racismo e a xenofobia. O que será da medicina quando o capitalismo for superado e não houver mais ódio e desprezo de classe? Quantas vezes atendi pacientes cujo principal diagnóstico era “síndrome da estrutura social perversa”

Como eu costumo dizer, bastaria que a Medicina fosse praticada com plena observância das evidências científicas para que sua prática se tornasse totalmente irreconhecível daquela que se aplica hoje. Imagine isso combinado com um mundo de paz, com a superação da sociedade de classes. A medicina se tornaria um exercício de pura conexão pela palavra. Por esta razão, o médico que produz uma ponte afetiva e profunda com seu paciente jamais será substituído por máquinas, pois a ligação que ele propõe é de alma para alma.

Isso me lembra a forma como os Navajos classificam seu curadores. Longe de romantizar as populações nativas, eu acho apenas que a experiência da medicina num modelo pré-capitalista sempre tem algo a nos ensinar.

Para estes nativos existem 3 níveis de curadores, numa carreira que prolonga por uma vida inteira. O primeiro nível comanda rituais e utiliza algumas ervas curativas. O segundo nível se especializa no uso das múltiplas ervas e substâncias para as diversas doenças catalogadas por sua cultura. Já o último nível, aquele que se alcança depois de ter passado uma vida inteira na função de curador, se ocupa tão somente em oferecer… conselhos.

Assim, a função do curador segue na direção da sutileza, partindo das artes mais densas dos corpos – pessoal e social – e chegando na palavra, a quintessência da cura. Sim, é possível substituir as ações mecânicas dos médicos, mas sempre haverá a necessidade de conectar-se com o suposto saber de alguém que instrumentaliza sua fraternidade no sentido da compaixão e da cura.

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Espíritos da Luz

O espiritismo versão tupiniquim costuma disseminar uma perspectiva de “classes espirituais”, que muito se assemelha as castas indianas, com seus limites rígidos, hierarquias e diferenças morais. Cresci ouvindo as expressões “espíritos de luz”, “espíritos do bem”, “espíritos zombeteiros” (meu caso), “espíritos do mal”, “espíritos inferiores”, “espíritos das trevas”, “espíritos do Umbral”, etc., sem jamais entender exatamente como se configuraria esta estratificação espiritual.

Sabe por que os espiritualistas descrevem o mundo espiritual como sendo constituído por classes distintas – que vão das angelicais às trevosas – colocando um fosso gigantesco entra os “espíritos de luz” e os pobres coitados “espíritos do mal”? Porque na verdade é dessa forma que se estrutura ESSE mundo terreno. Para todos que olham para o mundo através de uma ótica moralista, existem diferenças de elevação espiritual entre os sujeitos deste mundo, fazendo-os pertencerem a classes distintas, as quais carregam como um rótulo. Infelizmente, não se dão conta que o que é percebido a olho desarmado é tão somente a face externa do caráter de qualquer um; a máscara cotidiana que usamos para viver em sociedade.

Nada que aparece à luz do dia é verdadeiro, mas um simulacro do verdadeiro eu que nos constitui. Desta forma criamos a fantasia de um mundo espiritual estratificado, cheio de lugares remotos, de “pouca densidade”, de luz esfuziante e alegria contagiante, em contraponto aos lugares tenebrosos, escuros e densos das “regiões umbralinas“. Esta poderia ser a exata descrição da nossa sociedade; enquanto algumas regiões são repletas de criminalidade, outras nos oferecem a sensação plena de paz e segurança.
A questão é que nossas diferenças muito pouco se relacionam a questões morais, e estão embasadas na arquitetura social, a qual se relaciona com o modelo capitalista e seu sistema de classes. As diferenças contextuais e econômicas explicam de maneira muito mais simples a diversidade entre os sujeitos.

Desta forma, como no mundo espiritual seria difícil imaginar uma sociedade capitalista, a necessidade de manter a divisão artificial em classes se impõe através do artifício da hierarquia moral. Duvido muito que este seja o modelo mais próximo da realidade. Apagados os condicionantes sociais da Terra – família, pobreza, contextos, dificuldades, oportunidades, etc – o que sobra são espíritos muito semelhantes, e não haveria razão alguma para que não estivessem próximos, compartilhando o mesmo céu – ou inferno.

Parto da ideia de que, se houver algum mundo espiritual, ele deverá ser muito parecido com este aqui. Afinal, seríamos tão somente a imagem imperfeita do mundo dos espíritos, nada mais justo que estes planos fossem semelhantes. Desta forma, eu me permito expandir a pergunta: quem entre nós seria considerado um “espírito de luz”?

Madre Teresa? Papa Francisco? Dona Manuela, que criou 7 filhos sozinha? Seu Francisco, bombeiro herói que salvou uma família inteira de um incêndio? Padres? Espíritas? Chico Xavier? Médicos devotados, enfermeiras carinhosas, pessoas sem “maldade” no coração? Pobres e oprimidos? Mártires cristãos? Vou além: o que é um “cidadão de bem”? Seria Jesus considerado um cidadão de bem no seu tempo? Seria São Francisco igualmente um cidadão exemplar? Mandela? Martin Luther King? Bem sabemos como os nossos “cidadãos de bem” contemporâneos têm seus armários lotados de esqueletos. Seria possível existir um critério objetivo para classificar a moral das pessoas? Quantas santidades, por nós consideradas ilibadas, não escondem máculas morais terríveis, muitas das quais jamais saberemos? Quantos criminosos não tiveram – até ao cometer seus crimes – a mais pura das intenções, desejando apenas ajudar, mas de uma forma equivocada e incorreta – que só depois descobrimos?

Quando eu vejo personalidades espíritas falando das “hordas do mal” parece que estou vendo as antigas pregações anticomunistas da minha juventude. Pior, essa perspectiva sempre nos coloca do lado dos espíritos do bem, ou dos “cidadãos de bem”, e jamais do lado daqueles a quem consideramos “do mal”.

No fundo eu acredito mesmo no que o amigo Max sempre me dizia: “Se um viajante interplanetário chegasse à Terra ficaria muito mais impressionado com nossas semelhanças do que com nossas diferenças”. A distância entre o gênio e o tolo é muito mais circunstancial do que das essências. No mundo espiritual não pode ser muito distinto: as pessoas serão muito semelhantes entre si enquanto suas diferenças se diluem na gritante similitude de virtudes e defeitos que nos unem.

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Sociedades abertas

Quando eu vi que algumas instituições que eu respeitava estavam tratando como natural a entrada de verba de organizações ligadas ideologicamente à Karl Popper e à Open Society percebi que a luta pelo Parto Humanizado, pelo Aleitamento, nos grupos anti racistas e pelas mulheres precisa estar conectada com uma visão de conjuntura ampla e abrangente.

Negar-se a enxergar as repercussões profundas desse tipo de financiamento é grave, sob pena de sermos apenas massa de manobra para interesses imperialistas e que não desejam nada além de perpetuar o controle sobre a consciência nacional.

Soros, Gates, Koch e outras organizações ligadas a impérios financeiros controlam 1.5 trilhões de dólares no mundo inteiro vendendo benemerência e exigindo em contrapartida a subserviência a um modelo capitalista e totalitário. Faz parte do seu trabalho produzir – em think tanks sofisticados – a modulação da realidade através de câmaras de eco que repetem mentiras até que – por exaustão – elas se transformam em verdade.

Deixar nossas entidades que defendem o parto humanizado, amamentação, equidade social e racial e tantas outras LIVRES da pressão deste tipo de sedução capitalista é uma tarefa tão difícil quanto nobre.

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Baste-se

Não se apegue demais às pessoas. Um dia elas te contam um plano de vida maravilhoso do qual você não faz parte. Por mais solitário que possa parecer, o desapego é o caminho mais seguro para trilhar esta estrada. Em suma, baste-se.

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Mentiras Sinceras

Após um texto em que eu falava dos sentimentos contraditórios que os pais sofrem com o abandono insidioso dos filhos em percebi que houve muitas pessoas negando ciúme sobre filhos. É curioso como estes sentimentos naturais e – digo eu – obrigatórios são suprimidos do discurso. Ora, o ciúme, o desejo, o desprezo, a inveja operam nos estratos mais inferiores da consciência, enterrados pelo nosso eu protetor. Só raramente ele é explícito e abertamente expressado. Todavia, sem dúvida estão lá, por mais que nos esforcemos por recalcá-los.

“De perto ninguém é normal”, diria Caetano, mas quanto mais nos aproximamos mais aparecem os equívocos, as idiossincrasias, as falhas e muitas sujeiras escondidas sob as vestes engomadas.

Quando alguém me diz que nunca ficou enciumado pelo abandono inexorável dos filhos em busca de novos amores eu acho graça da inocência de quem imagina poder esconder dos outros – e de si mesmo – os sintomas de sua condição humana.

O mesmo acontece com o ódio dissimulado daquelas pessoas que me dizem: “Juro, eu não tenho ódio algum do Fulano. Dele eu só tenho pena”. Poucas mentiras são mais reveladoras do que esta. Porém, parece que esconder este sentimento negativo (e transformá-lo numa virtude, a comiseração) é capaz de melhorar um pouco a imagem ilusória que construímos de nós mesmos.

Ainda acho que, apesar de ser uma tarefa insana e custosa, reconhecer e aceitar nossos sentimentos mais primitivos e mundanos só tem a nos ajudar. Se não for por nós mesmos, ao menos nos auxilia a não julgar os outros com tanta dureza quando seus erros tão somente espelham os nossos.

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O Desprezo pelo Povo

Quando me submeti à entrevista para residência médica, há 35 anos passados, havia na sala de reuniões médicos contratados, professores e, representando os discentes, uma residente R3. Esta médica sempre foi para mim o paradigma das residentes do hospital: branca, loira, rica, de família de médicos, altiva, “chique” e uma típica representante da burguesia local. Estava terminando seu tempo no serviço e já tinha seu consultório montado na zona mais rica da cidade.

Eu sempre achei bizarro graduar médicos pela Universidade pública que, logo após formados, nunca mais atendiam a população carente. Estes profissionais centram seu trabalho nas classes mais abastadas, deixando os proletários nas mãos do serviço público, cada vez mais escasso em recursos. Sempre acreditei que deveria haver um sistema de reciprocidade obrigatório, que determinasse aos formados em universidades públicas o trabalho compulsório para a comunidade. Como um “serviço médico obrigatório”, a exemplo do serviço militar. Nunca vi nenhum projeto nesse sentido.

Minha entrevista foi protocolar e sem qualquer sobressalto. Perguntas óbvias e manjadas (o que faria se uma paciente solicitasse um aborto?) ou “pega ratões” tolos (estetoscópio ou esfigmo?) além de perguntas sobre banalidades obstétricas. Lembro apenas que me perguntaram se eu seria “ginecologista ou obstetra” e qual meu hobbie (respondi que era “cinéfilo”).

A entrevista estava terminando quando a colega residente perguntou algo sobre a assistência no serviço público. Não lembro exatamente o que era, e minha resposta hoje seria considerada banal. Ora, eu estava entrando no serviço público, em um hospital público e para atender pacientes do INAMPS – precursor do SUS. Como poderia falar mal de um hospital que me receberia de braços abertos e dos pacientes cujos corpos seriam a mim oferecidos para aprendizado?

Sim, eu sei, fui enfático em demasia nessa defesa. Expus com entusiasmo a honra de atender o povo, pois foi o povo que pagou meus professores, minha universidade, minha formação inteira e eu deveria, de alguma forma, devolver tamanho investimento na atenção aos que tanto se sacrificaram para a minha educação. Não só na Universidade, mas desde muito cedo, quando entrei na escola pública aos 6 anos de idade.

Logo percebi que a minha colega se incomodou com a resposta. Talvez porque ela mostrava o contraponto à postura que ela estava prestes a tomar: esquecer o povo mais pobre e se voltar às elites e à classe média alta. Olhou para mim e respondeu no limite da rispidez:

– Quem sabe então você deveria ser assistente social.

Fiquei em silêncio, pois sabia que não havia espaço para a resposta que gostaria de dar. Todos nós candidatos estávamos nas mãos daqueles julgadores e suas avaliações subjetivas. Há poucos anos havia escutado – pela voz do próprio professor – que ele havia dado “zero” para um candidato à residência de clínica médica por ser “demasiadamente efeminado”. Eu não queria ser mais uma vítima da crueldade de um julgador preconceituoso.

A entrevista se encerrou e alguns dias depois veio o resultado. Fui aprovado em 5o lugar, e três semanas depois fazia meu primeiro plantão como residente de GO naquele mesmo hospital. Mas nunca esqueci o desprezo daquela colega – a quem nunca mais vi – pelo simples fato de que reconheci uma dívida que nós, estudantes das escolas públicas, tínhamos para com o povo – povo este cujo esforço conjunto foi o suporte essencial para a nossa formação.

Quando vejo os velhos representantes da corporação se manifestando de forma tão cruel sobre a população mais necessitada – e contra o SUS – eu penso que eles são egressos dessa geração, onde o trabalho assalariado no serviço público era visto como fracasso.

Mas ainda acho que para mudar a prática da Medicina é preciso revolucionar o ingresso nas Escolas Médicas

Para saber mais sobre o tema, veja esta outra crônica escrita há alguns anos aqui

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Seres Especiais

Afinal, somos ou não especiais?

Eu creio que existe verdade nas duas posições e o equilíbrio é a maneira mais justa de perceber-se no mundo. Sim, somos especiais porque somos únicos e irreproduzíveis, donos de uma história e uma perspectiva de mundo únicas. Portanto, temos valor por carregamos vida e consciência de si, valores especiais da alma humana. Por outro lado, também é verdade que vivemos em comunidade e precisamos nos adaptar à ela, bem como às suas normas e regras – e não o oposto. Não somos “especiais” se isso significa que temos uma essência diversa daqueles que nos cercam. Somos feito da mesma matéria dos gênios e dos loucos, dos covardes e dos mártires.

Inobstante esses fatos da vida em comunidade, a pressão do grupo sobre o sujeito não pode ser de tal monta que destrua os princípios básicos da subjetividade em nome de uma homogeneização forçada. Outrossim, também estas características pessoais não podem servir de desculpa para impor nossa visão de mundo aos outros. Prefiro pensar que… talvez não sejamos mesmo especiais, mas somos únicos, fragmentos mágicos de poeira estelar, e carregamos a centelha da subjetividade dentro de uma alma etérea, o que nos torna especiais diante da criação.

Margareta Klebb, “The Real Tune of the Chords – Astrophysics and Spirituality” (A Real Melodia das Cordas – Astrofísica e Espiritualidade). Ed. Pântano, pág. 135

Margareta Klebb é uma astrofísica, professora, pesquisadora e escritora britânica nascida em Dover, na Cantuária, em 1945. Graduou-se em física na Universidade de Kent em 1960, iniciando seu trabalho com partículas subatômicas no Instituto de física desta universidade. Fez pós graduação em astrofísica e especializou-se na “Teoria das Cordas”. Depois de escrever sua tese de doutorado entrou em profunda depressão pela morte da sua irmã, Linda Klebb, por leucemia em 1975. Passou dois anos afastada da Universidade por razões de saúde, e quando retornou escreveu seu primeiro livro “On the Threshold of Infinity” (Nos Umbrais do Infinito), no qual aborda a física e a teoria das cordas sob uma perspectiva espiritualista. Depois do sucesso desse livro passou a se dedicar a estes estudos, com mais 3 livros com boa aceitação da crítica. Em “The Real Tune of the Chords” ela fala do dilema da espiritualidade na perspectiva da sobrevivência de um “princípio imaterial” que seria a essência da peculiaridade. É solteira, mora em Londres e vive com seu cão Bohr.

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Ciúme

Não creio que exista nada de bizarro neste sentimento. Todo pai (e mães da mesma forma!!!) vai passar por isso, desde que alguma vez tenha sentido amor por seus filhos. Qualquer pai vai se sentir “roubado” quando sua filha descobre uma paixão, deslocando seu amor edípico para uma relação madura.

Negar o sentimento de perda amorosa que os pais sentem com o início da vida afetiva dos filhos é o que poderia ser chamado “bizarro”. O humor que se produz sobre esta cena nada mais é do que o uso do gracejo como bandaid aplicado sobre uma ferida narcísica, fazendo graça com nossos dramas humanos.

Eu acho que a expressão parental de ciúme em relação aos filhos é apenas a natureza humana em ação. Nada bizarro, apenas normal para a nossa estrutura psíquica. Pais terão ciúme – e até possessividade – que precisarão ser vencidos pela ação irrevogável dos filhos. E não creio ser uma perspectiva “machista” da sociedade, até porque este sentimento ocorre da mesma forma com as mães, e certamente antes até da instituição do patriarcado. As relações afetivas dentro do patriarcado tem um determinado ordenamento – que eu não chamaria de bizarro, porque é uma criação social de muito sucesso – e este ciúme não me parece ser patriarcal, mas humano.

Como eu disse, o patriarcado é recente e não passa de 80 séculos, mas mãe e função paterna tem a idade da humanidade, talvez 2 milhões de anos. Todavia, não acredito que esses sentimentos são mediados pela cultura, apesar de serem por ela transformados. Édipo é da essência humana, da estrutura psíquica que nos constitui. Portanto, pré patriarcais, e duvido que haja uma sociedade que revogue o Édipo; enquanto for essa nossa conformação psíquica esses sentimentos serão naturais e inalienáveis da espécie humana. O ciúme do pai está relacionado ao amor da filha, e isso não é cultural; é da estrutura mais íntima do psiquismo humano.

Para mim o ciúme paterno é o contraponto do Édipo, e o triângulo edípico é algo intrínseco à nossa formação emocional, algo inegociável. “Retire-se o complexo de Édipo e a psicanálise se desfaz como castelo de cartas”. Assim, o centro da estrutura psíquica humana está nessa relação amorosa triangular primordial

Outrossim, a expressão desse sentimento – repito, natural – vai se moldar à cultura vigente, relacionada à história e à geografia. Sociedades fortemente patriarcais farão dessa relação um exercício de poder e de violência, exacerbando a possessividade. Mesmo assim, uma sociedade pós patriarcal não fará esse sentimento desaparecer, apenas não o tornará veículo de opressão.

Criticar a piada do “pai com espingarda” protegendo a filha, tão usada no anedotário patriarcal, pode ser válido pela possessividade abusiva ou o uso banal da violência, mas jamais para negar um sentimento absolutamente humano.

Aliás, que maravilha quando um pai é corajoso o suficiente para expor seus sentimentos de forma clara e aberta, reconhecendo-os e expressando-os, mesmo quando contraditórios

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