Arquivo do mês: setembro 2012

Pré-história da Cidadania

Depois das turbulências sobre parto domiciliar, onde a população civil, a liberdade e a autonomia das mulheres saíram vitoriosas (as determinações do CREMERJ foram solenemente cassadas e nenhuma sanção foi aplicada ao nosso colega), resta ainda uma pergunta para qual não tivemos resposta: Porque a preocupação tão vigorosa com os partos domiciliares por parte do CREMERJ? Será mesmo para “proteger” mães e bebês? Se isso for verdade, porque nunca houve um alerta vigoroso contra as cesarianas desmedidas e abusivas, que são comprovadamente perigosas para o binômio mãe-bebê e não têm respaldo de nenhuma instituição internacional como a OMS, Biblioteca Cochrane, FIGO, RCOG entre tantas outras? Pelo contrário: o Brasil é visto como um país de abusos, de falta de rigor científico, de apatia do setor público e de uma libertinagem médica no que tange à realização de cesarianas.

Ao mesmo tempo em que o Parto Domiciliar é atacado, mesmo provando ser seguro por fontes diversas – e de forma reiterada – a cesariana imposta à população de mulheres desse país não é combatida pelas entidades representativas dos médicos. Se o interesse era “proteger a população”, qual a razão para o silêncio diante da epidemia de cesarianas? Porque se calam as entidades quando a proteção das mulheres esbarra nos interesses corporativos? Afinal, essas entidades se interessam em resguardar a saúde da população, ou apenas salvaguardar benefícios, vantagens e o poder conquistado?

Queremos, nós médicos, um CFM que se coloque ao lado da saúde das mulheres, e não afastado delas, olhando para o próprio umbigo. Atitudes como a do CREMERJ colocam os médicos como vilões da modernidade, atrelados aos interesses menores e pessoais, sem uma visão de saúde ligada à liberdade, assim como às escolhas e recusas informadas.

Por quanto tempo ainda nos manteremos na pré-história da cidadania?

Veja o link abaixo:

CFM nunca advertiu sobre riscos da cesariana

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,entidade-jamais-advertiu-sobre-riscos-de-cesarea-,914802,0.htm

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O Capeta

Essa é uma velha piada da família. Meu filho Lucas, quando pequeno, adorava a música “Capeta”, que é muito antiga, mas foi relançada nos anos 80 pelo Sérgio Mallandro. No meu segundo livro, no capítulo chamado “Paternidade” eu falo dessa passagem quando menciono que…

“… Ele, então, sorriu graciosamente. Desfez a cara de choro e deu mais um salto. Pulou de satisfação. Girou, rodopiou. Lançou-se ao vazio. Gritou como se não houvesse espaço nem tempo. Cantou mais uma música de palavras embaralhadas. Sorriu um sorriso gigantesco e mágico. Talvez ele estivesse percebendo, na sua cabecinha prodigiosa de criança, que, ao seu lado, seu pai acabara de nascer.”

Pois nessa música o Lucas cantava “Onecy” e não adiantava a gente explicar que a letra da música era “Co-nhe-ci um capeta em forma de guri“. Ele sapateava e dizia que era assim e pronto. Um dia estávamos todos assistindo ao programa do Sérgio Mallandro na TV, em que as crianças se apresentavam num show de variedades, quando uma delas pediu para cantar uma música. Oferecendo o microfone, Sérgio Mallandro perguntou “Qual a música?”, ao que o menino (que tinha a idade do Lucas, uns 5 anos) respondeu “A música do Capeta!!”. Eu e a Zeza imediatamente chamamos o Lucas dizendo:

“Lucas, aprende agora como se fala. Presta atenção como é a letra verdadeira da música!!”.

Então a criança esperou os primeiros acordes do playback e disparou:


“O-necy, um Capeta em forma de guri!!”

Bem, fomos obrigados a escutar um “Eu não falei!!!“… e a partir desta data resolvemos que era inútil tentar dizer qualquer outra coisa. Hoje em dia até eu tenho sérias dúvidas sobre qual a verdadeira letra dessa canção…

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Pensar Diferente

Há algum tempo eu publiquei um texto exatamente tratando dessa questão: a importância do contraditório, do estranho, do diferente e do aparentemente absurdo. Acho que foi a velhice que me deixou assim: se alguém me procurar para falar de cesariana a pedido, eu apenas digo: “Traga a sua tese em poucas palavras, e vejamos se há algo de interessante nela para debater“. Não acho indecentes essas propostas, e nem inadequadas por si. Mais ainda, acho que a única forma de energizar as nossas convicções é colocá-las constantemente à prova. Debater as convicções que nos são mais caras é a melhor maneira de deixá-las firmes e fortes.

Meu pai diz que criou seus filhos mais velhos com essa ideia em mente: fomentar o debate e a contradição. Para isso, estimulou que um fosse gremista e o outro colorado (quem é do sul sabe que isso é mais complicado do que a relação entre israelenses x palestinos) , colocando-se (mentirosamente, depois soube) como “isento”. Com isso eu passei a infância inteira tendo que conviver com um cara que gostava de outro time, aguentar as “flautas”, aprender a debater e respeitar a grandeza do outro clube. Não foi fácil, mas isso me ajudou a suportar as agruras de combater sempre junto aos pensamentos minoritários.Todos queremos ser amados e receber a aprovação das pessoas que estão ao nosso lado.

Assim sendo, pensar “diferente” é um esforço complexo diante da sedução constante de agradar seus pares. Contestar, brigar por teses contra-hegemônicas e sustentar suas convicções com a coragem para mudar é um aprendizado que deveria começar na primeira infância. Depois disso fica sempre mais difícil…

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Cesariana “Humanizada”

O problema de expressões como “cesariana humanizada” ocorre porque existe um conceito no mundo da humanização do nascimento de que tal procedimento cirúrgico não pode ser chamado de “humanizado”, pois lhe falta um elemento essencial na humanização: o protagonismo. Sem o resgate do protagonismo nunca haverá verdadeira humanização. Portanto uma cesariana pode ser “humana”, gentil, digna e respeitosa, mas jamais “humanizada”, pois carece do elemento mais fundamental para contemplar essa definição. Não existe “apendicectomia humanizada”, “histerectomia humanizada”, ou qualquer cirurgia que mereça esse epíteto, pois o protagonismo será sempre do médico, e jamais da paciente. Numa cesariana a mesma coisa. Cesariana é cirurgia obstétrica, não é parto; portanto é um procedimento técnico, regido por protocolos médicos, e nesse contexto as mulheres são necessariamente passivas.

O parto, pelo contrário, é ativo. É algo que a mulher faz, e não ao qual é submetida. Somente aí poderão aparecer os elementos constitutivos e definidores da humanização: o protagonismo, a visão integrativa – que inclui os aspectos biológicos, psíquicos, socais, emocionais e espirituais – e a firme vinculação com a medicina baseada em evidências.

Hoje em dia eu acredito que o ativismo só tem sentido quando está focado no bem estar subjetivo daqueles que procuram assistência. Até a biblioteca Cochrane se vacinou contra esse tipo de essencialismo obliterante e homogeneizante ao difundir a Medicina Baseada em Evidências. Creio também que nossas convicções, por mais adequadas e humanistas que sejam, não podem solapar a individualidade. Sou um defensor da liberdade, e acredito mesmo que o individualismo – mesmo com sua tendência egocêntrica – é o único anteparo que temos à barbárie. Com a ideia onipresente de que cada mulher é diferente da outra fica impossível dizer “eu jamais faria isso“. No que concerne a um evento tão complexo como o parto, é injusto condenar mulheres que optam por uma cesariana “sem andar 100 km calçando seus mocassins“, assim como não é adequado julgar um médico que, por alguma razão bem específica realizou uma cesariana a pedido, sem indicações clínicas evidentes. Se isso não nos autoriza a realizar cesarianas à rodo, pelo menos nos mostra que existem exceções, e que algumas vezes elas podem ser justificadas.

A multiplicidade das circunstâncias e a infinidade incontável de histórias constitutivas do sujeito fazem do parto um evento absolutamente único, vinculado às formas mais primitivas de organização psíquica. O nascimento conjuga no mesmo evento morte, vida e sexualidade, no dizer de Holly Richards. Como imaginar, então, que sua manifestação não seja repleta de dilemas únicos e de profunda complexidade? Portanto, a partir do momento em que aceitamos a visão complexa e subjetiva do fenômeno humano, expresso no nascimento, as posturas “fechadas” como “eu sempre” ou “eu nunca” acabam se tornando slogans do passado, anacrônicos, que apenas nos lembram dos ímpetos da juventude, mas que necessitam da  sabedoria que vem com o amadurecimento.

Mesmo que não compactuemos com a barbárie das cesarianas desmedidas, isso não pode significar abandonar as pessoas em função de suas escolhas. Podemos condenar as cesarianas sem indicação clínica, mas não as pessoas que, movidas por traumas, sofrimentos passados ou até desinformação, fazem escolhas que nos parecem inadequadas. Nosso compromisso é em primeiro lugar com aqueles que precisam de nossa ajuda, e em segundo lugar com nossos ideais. Todavia, isso não significa abrir mão da radicalidade de nossas propostas, que se direcionam ao bem estar, à segurança, à liberdade e à autonomia de nossos pacientes. Nada disso; tal posicionamento reforça a ideia de que não nos cabe julgar as motivações recônditas que determinam as escolhas que nossos pacientes fazem.

Quando defendemos o arrefecimento das posturas radicais, não o fazemos pela desistência aos ideais. Pelo contrário: é para que os mesmos sonhos não se dissolvam no calor da arrogância ou na insensatez dos extremismos. Todas as ideias renovadoras na humanidade precisam ser bafejadas pela visão humanista, que coloca o Homem como centro de nossas ações. Nossa luta por partos humanizados só pode ter sentido se nos lembrarmos constantemente de que as ideias de nada valem sem as pessoas.    

E só pode ser para elas, em sua característica única, a nossa atenção.

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Função Paterna

Esse é é um tema que sempre me atraiu e que deveria ser mais explorado, já que o movimento de contracultura no mundo inteiro trouxe o pai para a sala de parto na esteira das profundas modificações dos papéis masculinos e femininos do pós-guerra. O tema é: “Função paterna no nascimento. O pai (dis)funcional”. Minha posição de homem presente no nascimento me propiciou muitos momentos delicados em que pude observar de uma forma evidente a função paterna no processo. Entre tantos, lembro-me do episódio de um parto que acompanhamos, eu e Zeza, em Coimbra Portugal.

Estávamos acompanhando um conhecido parteiro português, em um atendimento domiciliar. O local era ermo, distante da cidade; uma espécie de sítio bem afastado. Lá estava uma menina de uns 17 anos em suas dores. Primeiro filho, o namorado não passava dos 20, mas se comportava como se tivesse 16. Lá também se encontravam o pai da menina e a namorada deste (a mãe morava na Inglaterra). Ah, detalhe importante: eram todos ingleses, que moravam em Portugal. Lá pelas tantas, no período de transição, ela começou a fazer os resmungos que nós tão bem conhecemos, típicos da famosa “fase de transição”: “não aguento”. “parem tudo”, “me deixem”, “quero uma cesariana” e assim por diante. Continuou com esse comportamento por muitos minutos, enquanto na sala contígua, eu e o pai dela conversávamos, tentando desviar a atenção das tensões inexoráveis de um trabalho de parto. Num determinado momento, incomodado com as reclamações da menina, e sem sair da sala em que nos encontrávamos, o pai se levantou e bradou:  

– Escute aqui, pare com essa choradeira. Você escolheu isso. Vai continuar até o bebê nascer. Você não tem outra escolha. Agora feche a boca e se concentre em ganhar esse bebê!  

Ele disse isso no limite tênue que separa a “voz alta” do grito; entre a firmeza e a grosseria. Eu achei que o comportamento do pai havia resvalado para a rudeza desnecessária, mas o que se viu a seguir foi deveras interessante. Depois dos brados paternos só o que se ouviu foi o silêncio; mais nenhuma palavra, muxoxo, reclamação ou pedido. Apenas um leve ranger de dentes entremeado com suspiros profundos. Da sala contígua só podíamos imaginar o que ocorria no quarto, onde o parteiro acompanhava a parturiente, ladeada pela madrasta e por sua irmã. Mais alguns minutos e ouvimos os sons graves que anunciam um bebê achegando-se ao portal vaginal; o limite último do túnel que o leva à luz e à vida.

As palavras exultantes do nosso amigo enfermeiro nos anunciaram a chegada do menino antes que ele pudesse chorar. As mulheres gritavam e podíamos escutar os seus abraços, mesmo que seja difícil definir a sonoridade que eles produzem. Alegria, lágrimas e a festa que tanto conhecemos.

O que restou como interrogação para mim foi a intervenção paterna, cortando um ciclo de vitimização, numa espiral de fragilidade que a estava levando a uma desistência. Sua voz firme e autoritária pode ter cumprido uma função que mesmo eu, no papel de médico, jamais poderia realizar. Para mim, havia, sim, alternativas. Não me caberia acabar com a possibilidade de desistência, pois que nunca poderia julgar os desafios que só ela poderia aquilatar. Desistir de um parto é, apesar da dor que possa nos causar, uma das alternativas legítimas. Mesmo que isso possa ser motivo de um eterno arrependimento, qualquer intervenção da equipe médica nessa decisão entra na categoria de “tutela”. Não nos cabe tomar esse tipo de deliberação; apenas a mulher pode decidir em que ponto de suas dores – do corpo ou da alma – ela considera ter alcançado o limite.  

Entretanto, a intervenção moral das palavras do pai teve um efeito apaziguador. Parecia que a ela faltavam o “limite”, a contenção e a borda. Quando ele bradou, exigindo que ela mantivesse seu propósito original, a mim pareceu que ela acordou (mesmo que ainda dentro do seu sonho de partolândia) para um compromisso maior, anteriormente firmado.  

Funcionou. Mesmo que seja um espaço impossível de ocupar por quem aceita o pleno protagonismo feminino no parto, tal ação com a marca da função paterna parece ter algum ensinamento a nos oferecer.

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Rifles e Bisturis

O problema com o uso excessivo da tecnologia obstétrica não depende de pessoas ou profissionais. Nós precisamos nos livrar da ideia anacrônica de “Doutores = maus” e “Parteiras = Anjos”. Isso não é verdadeiro, e todos nós já tivemos a oportunidade de conhecer grandes médicos humanistas e parteiras “não tão maravilhosas e angelicais”. O importante não é apenas mudar as pessoas, mas mudar o sistema, transformar o paradigma, resgatar o parto para as mulheres e deixá-las decidir sobre seus corpos e nascimentos. Com o modelo de assistência ao parto que temos nenhum profissional consegue trabalhar de forma humanizada, da forma como é preconizada pelas grandes instituições. O problema no meu país, o Brasil, é que 90% dos nascimentos são assistidos por médicos, exaustivamente treinados no tratamento de patologias e no emprego de cirurgias. Os médicos, egressos das escolas médicas do meu país, não estão interessados na fisiologia “alargada” do parto, e são, em sua maioria, incapazes de compreender os dilemas psicológicos, emocionais, sociais e espirituais implicados no parto.

Precisamos, evidentemente, de profissionais largamente treinadas na fisiologia do parto: as parteiras. Nós, médicos não fomos ensinados a ver o nascimento como um processo vital; em vez disso, nós o vemos como uma doença, ou um “evento vital potencialmente ameaçador“. A grávida é frequentemente entendida como uma “bomba relógio” prestes a explodir. Normalmente nós obstetras somos bons para resolver problemas no parto (muitos deles criados através de excesso de intervenções), como as pré-eclâmpsias, diabetes, partos obstruídos, etc. Além dos medicamentos, possuímos uma ferramenta maravilhosa para ajudar nos casos que se afastam da fisiologia do processo de nascer: a cesariana. O problema é que uma vez que oferecemos para uma categoria profissional a capacidade de “resolver” o nascimento de forma tecnológica, a sedução para usá-la de maneira abusiva é tremenda. Vivemos na envolvidos pela “mitologia da transcendência tecnológica”, e ainda acreditamos cegamente que seu uso faz mais bem do que mal. Infelizmente, as pesquisas nos mostram que já fomos longe demais.  

A respeito disso, eu me lembrei de uma história interessante sobre o uso de tecnologia. Em uma específica “reserva natural” na África do Sul, os guardas ocupados com a proteção da vida selvagem eram recrutados entre os moradores locais, grupamentos populacionais que viviam próximos da selva por séculos. Certo dia, um guarda da reserva foi morto por um leão, algo muito raro naquela região. Em função dessa fatalidade, o diretor do parque foi acusado de não cuidar adequadamente dos seus funcionários oferecendo-lhes armas para a proteção pessoal. Pressionado pela mídia e pelos outros guardas, ele decidiu comprar um rifle para cada um, como forma de defendê-los de possíveis ataques. “Ok, feito; agora eles estarão protegidos“, ele pensou.  

Certo tempo após essa decisão, ele notou que vários animais haviam sido mortos por guardas, em um ritmo nunca visto antes. Logo ele descobriu que, uma vez que eles tinham armas pessoais, qualquer risco, por menor que fosse (como a proximidade de um rinoceronte, ou um leopardo), era suficiente para assustar os trabalhadores do parque, um convite irresistível para usar a sua nova “arma tecnológica”.

Depois de alguns meses, o diretor do parque estava convencido de que as habilidades milenares desenvolvidas para lidar com os animais (o silêncio, o contato visual, os sons, a posição do corpo para encarar os felinos, a “linguagem” utilizada, o respeito pelos seus habitats, etc.) estavam sendo exterminadas por causa do atalho sedutor de “resolver” as ameaças dos animais com tiros de rifle. Os animais estavam perdendo suas vidas por causa da crescente incapacidade de compreender a forma como viviam, e a maneira de conviver com eles. Após essa constatação a decisão da reserva foi radical: os guardas do parque nacional voltaram a receber treinamento intensivo para proteger os animais, e as armas não foram mais permitidas na reserva.

Esta história de um retorno ao modo “natural” de lidar com o encontro com os animais selvagens pode nos oferecer algumas analogias preciosas. Estaremos destruindo a capacidade dos profissionais que atendem o nascimento de ajudar as mulheres em trabalho de parto e nascimento através do uso excessivo e abusivo da arma da cesariana? Para quantas mulheres e bebês ainda vamos recusar o direito de passar pelo processo mágico, transformador e natural do parto em razão do nosso medo e da nossa ignorância a respeito dos intrincados segredos do processo de parir? Estaremos perdendo completamente as nossas habilidades de ajudar mulheres no nascimento de seus filhos seduzidos pelo canto das sereia das tecnológicas?  

Eu espero que estejamos no meio de uma grande revolução, reavaliando a desnaturalização do parto, entendendo os problemas decorrentes da hiper medicalização e o drama da alienação Mais ainda, eu sonho com o dia em que as mulheres não serão mais prejudicadas pelo sistema objetualizante que criamos.

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No Texas, com Vitor e Bebel

Uma tarde de julho de 2011, na modorrenta cidade texana de Austin, eu trafegava na Capital of Texas Highway com minha filha Bebel Jones, de volta de Barton Creek Mall e em direção ao Barton Springs Swimming Pool, local ideal para nos refrescarmos do calor escaldante do verão texano. Ao passar exatamente pela ponte da I360 – um dos mais bonitos cartões postais da cidade de Austin – o locutor da rádio da UT – University of Texas – anunciou a próxima música a ser tocada. Disse que essa canção era do sul do Brasil, de um local próximo da Argentina, uma cidade chamada “Porto Alegre”. Ao ouvir a nossa cidade ser comentada com um sotaque anasalado texano eu e Bebel pulamos do assento. “Quem será?”, pensamos em uníssono mental. Quem estaria ali conosco, no Texas, representando a arte do sul do Brasil? Lupicínio? Alguma música regional? Música de gaudério?

Ele continuou sua fala elogiando o intérprete e compositor, chamando-o de “grande talento da música brasileira”. Finalmente nossa angústia chegou ao fim, e ele disse o nome do autor da próxima música. Eu e Bebel sorrimos ao ouvir o nome óbvio, dito pela voz enrolada do “speaker”. Sim, só poderia ser Vitor Ramil, e a música escolhida foi “Livro Aberto” do seu CD Satolep Sambatown. Abri o vidro do carro e coloquei a música no volume total. “Escutem, gringos, a música do Brasil!!”. Grande emoção, como se um pedaço dos meus valores e lembranças viesse me encontrar em um local distante através das ondas e da sonoridade de um rádio.

Esta é a Pennybacker Bridge em Austin, Texas, que passa por cima do Lake Austin. Eu me emociono sempre que passo por sobre ela, também porque me lembro da canção do Vitor Ramil e da companhia da minha filha Bebel Jones.

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Homossexualidade e Futebol

Vou abrir um espaço para falar o que penso, sem brincadeiras (que, aliás, não apenas curto como estimulo, pois se trata da possibilidade de fugir do politicamente correto). Eu não acredito que exista um clube mais homossexual (em termos de torcida) que outro. Simplesmente não faz sentido. Aliás, se houver algum será o Flamengo, e depois o Corinthians, simplesmente porque detém as maiores torcidas. Simples assim, mas isso não significa que eles sejam percentualmente mais gays que outros. Aqui mesmo nana Internet apareceram fotos de homossexuais (postadas pela torcida adversária, claro) de todas as agremiações; basta procurar por alguns minutos na Internet que se acha.

Olha… eu sou do tempo em que o Grêmio teve uma torcida chamada “Coligay”. Era formada por um grupo de jovens homossexuais que frequentavam uma boate chamada Coliseu. Eu cheguei mesmo a assistir Grenal em que estava esta torcida, e ela era não apenas tolerada, mas até exaltada como um exemplo de diversidade; alegre, divertida, barulhenta e colorida. Havia também outra torcida no Grêmio chamada de “Força Azul” comandada pelo “Careca” que era um notório homossexual. Há relatos que ele praticava felação com os jovens  durante os jogos, escondido no meio das bandeiras. Entretanto, mesmo sabendo esse tipo de “viadagem”, isso não nos incomodava ou ofendia: entendíamos como o exercício da liberdade sexual. Olhava quem queria, chegava perto quem tinha curiosidade e entrava na roda quem precisava. Havia, curiosamente, um respeito pela diversidade sexual, algo impensável para os dias de hoje.  

Mas por quê?   O que se modificou na relação que nós temos com esse tipo de atitude? O que houve nos últimos 30 anos que modificou a estrutura da sociedade contemporânea penalizando a atitude homossexual, com as óbvias repercussões nos fenômenos de massa, como o futebol?  

Há várias interpretações.  

A minha é a queda do muro de pedra.  

Não, nada a ver com o muro de Berlim. É sobre outro muro, do outro lado do mundo. Este muro é igualmente de pedra, chamado de “Stone Wall”, uma famosa boate gay na cidade de Nova York, no início dos anos 70. Uma feroz e desumana batida policial realizada naquele local colocou seus frequentadores diante das câmeras pela prática da “pederastia”.  Diante dos televisores dos lares americanos apareceram os “doentes”, os “transviados”, ou “perversos” praticantes de uma doença que parecia se alastrar, colocando em risco a estrutura da família americana. Mas, para o assombro geral, os sujeitos presos e humilhados durante a abordagem policial eram pessoas como nós: pais, jovens, velhos, advogados, avós, médicos, professores, arquitetos. Gente. Pessoas perigosamente parecidas demais conosco, os heterossexuais.  

É importante recordar que para nós, nos anos 70, não havia homossexualidade, que só foi inventada nos anos que se seguiram. Havia um distúrbio, uma doença, um desvio e uma aberração biológica e moral chamada “pederastia”. Diante desse nome, dessa marca e desse diagnóstico paradoxalmente sentíamo-nos seguros e protegidos. “Eu não sou homossexual, não tenho essa enfermidade”. A homossexualidade era tratada, curiosamente – e de forma um tanto jocosa – como uma doença contagiosa, num modelo “vampiresco”. Os próprios homossexuais ingenuamente diziam “Ah, você se julga hetero, mas se um dia você “der” nunca mais vai ser o mesmo”. Era folclore, misturado com preconceito e com a ignorância do determinismo de desejo que se aplica à orientação sexual.  

Pois a queda de Stone Wall acabou por provocar uma onda de protestos por todos os Estados Unidos, pelos direitos da livre expressão da sexualidade. O início desse movimento pode ser visto no filme MILK, grande obra de Sean Penn. Daquele ponto em diante a homossexualidade passou a ser vista como uma bandeira de luta pela liberdade, contra o moralismo e a favor da autonomia do sujeito sobre seu próprio corpo e seu desejo. A bandeira multicolorida, o orgulho gay, as paradas e as manifestações, assim como o surgimento de grupos em todo o mundo (como o “Nuances” no Brasil) marcam a trajetória de um movimento de resgate da homossexualidade como manifestação legal e legítima de afeto entre as pessoas.

Entretanto, a saída do armário acabaria produzindo um notável movimento de reação. Somente depois do surgimento da homossexualidade é que nós criamos a homofobia. Esse sentimento (que em geral não se expressa de forma organizada, mas como uma posição subjetiva) é derivado do medo de que os sentimentos homossexuais, derivados de nossa configuração sexual primitiva na tríade amorosa primordial, sejam descobertos pelo outro, e expressos como preconceito. A homofobia, portanto, nasce como contraponto à expressão livre da sexualidade na cultura. Ela é a forma como nos defendemos de nossas próprias inseguranças, refugiando-nos num estereótipo “macho” para esconder nossas fragilidades. O homossexual é sempre o outro, assim como na escola nos apressávamos em chamar o colega de “baixinho” antes que alguém pusesse os olhos em nós e visse que nossa altura era igualmente desfavorecida. 

Homossexuais são as torcidas adversárias : As Marias, o Gaymio, os Coloridos (moranguinhos), o Gaylo, os Bambis e todos aqueles que não são “nós”, num exorcismo que fala muito mais de nossas inseguranças do que de uma verdadeira preferência sexual do outro.   Hoje em dia vemos que os xingamentos de torcida são todos exorcismos sexuais. Os outros são “putos”, são “viados” e “bixas”. Na minha época de criança xingávamos a mãe, foco de nosso amor desmedido e centro da nossa proteção. Tudo mudou: ofendemos o outro por suas preferências supostas, imaginadas e/ou temidas.  

Eu achei que seria interessante abordar um fenômeno novo (porque não tem mais do que 30 anos) no futebol: a homofobia. Muito mais do que a defesa ingênua e tutelante que eu as vezes presencio, eu acredito ser mais interessante entender as origens da homofobia em função da conjuntura atual, decorrente dos movimentos de liberação gay. Nessa perspectiva, a homofobia (como manifestação, não como sentimento e nem como prática) é uma consequência dos movimentos GLTB (ou queers, que engloba tudo). Antes da extroversão dessas modalidades de expressão sexual não havia necessidade de expressão homofóbica, pela simples razão de que ela não ameaçava a maioria heterossexual. Bastou os homossexuais se assumirem publicamente, mostrarem seus rostos na rua, para nos apavorarmos com a semelhança (e não com as diferenças) que eles possuem com o mundo dos “normais”.

É isso, exatamente, que gerou a homofobia: a parecença, o fato de eles serem humanos, amarem, odiarem, terem medo e orgulho. Como qualquer um. Portanto, ninguém mais estaria a salvo. Saíram dos armários e do DSM (lista de doenças psiquiátricas), e isso os deixou perigosamente próximos de todos os héteros, os que sustentavam a ideia de família cristã e prolífica. Assim, tornou-se imperioso expurgar a suspeita e colocá-la no outro. Foi essa a razão pela qual os xingamentos homofóbicos se tornaram lugar comum nos estádios, e também na vida das cidades: o medo, pânico de que descubram minhas fragilidades…  

Mas sou um otimista inveterado. Eu ainda gostaria de ver de novo uma torcida homossexual no meu clube. Mais ainda: gostaria que a orientação sexual não fizesse diferença alguma para o torcedor, e que as barreiras entre homos e héteros simplesmente ficassem restritas aos leitos e aos corações. Gostaria que os homossexuais gostassem de futebol, se interessassem pelo espetáculo e se apaixonassem pelos gols e vitórias. Gostaria que meu clube não impedisse, através da direção ou da torcida, a livre expressão de amor clubístico pelos grupos homoafetivos. A repressão que qualquer preferência sexual é um mal para a sociedade. 

Mesmo que eu defenda com unhas e dentes a livre expressão, e o direito à homofobia, eu sonho com uma sociedade livre desses preconceitos, em que a comunhão em torno da alegria do futebol seja o traço de união entre todos que o procuram.

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Carta Aberta à Sociedade

Carta aberta

Nós, médicos humanistas, enfermeiras-obstetras e obstetrizes, todos os profissionais, entidades civis, movimentos sociais e usuárias envolvidos com a Humanização da Assistência ao Parto e Nascimento no Brasil, vimos através desta presen te Carta manifestar o nosso repúdio à arbitrária decisão do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) de encaminhar denúncia contra o médico e professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Jorge Kuhn, por ter se pronunciado favoravelmente em relação ao parto domiciliar em recente reportagem divulgada pelo Programa Fantástico, da TV Globo.

Acreditamos estar vivenciando um momento em que nós todos, que atendemos partos dentro de um paradigma centrado na pessoa e com embasamento científico, estamos provocando a reação violenta dos setores mais conservadores da Medicina. Pior: uma parcela da corporação médica está mostrando sua face mais autoritária e violenta, ao atacar um dos direitos mais fundamentais do cidadão: o direito de livre expressão. Nem nos momentos mais sombrios da ditadura militar tivemos exemplos tão claros do cerceamento à liberdade como nesse episódio. Médicos (como no recente caso no Espírito Santo) podem ir aos jornais bradar abertamente sua escolha pela cesariana, cirurgia da qual nos envergonhamos de ser os campeões mundiais e que comprovadamente produz malefícios para o binômio mãebebê em curto, médio e longo prazo. No entanto, não há nenhuma palavra de censura contra médicos que ESCOLHEM colocar suas pacientes em risco deliberado através de uma grande cirurgia desprovida de justificativas clínicas. Bastou, porém, que um médico de reconhecida qualidade profissional se manifestasse sobre um procedimento que a Medicina Baseada em Evidências COMPROVA ser seguro para que o lado mais sombrio da corporação médica se evidenciasse.

Não é possível admitir o arbítrio e calar-se diante de tamanha ofensa ao direito individual. Não é admissível que uma corporação persiga profissionais por se manifestarem abertamente sobre um procedimento que é realizado no mundo inteiro e com resultados excelentes. A sociedade civil precisa reagir contra os interesses obscuros que motivam tais iniciativas. Calar a boca das mulheres, impedindo que elas escolham o lugar onde terão seus filhos é uma atitude inaceitável e fere os princípios básicos de autonomia.

Neste momento em que o Brasil ultrapassa inaceitáveis 50% de cesarianas, sendo mais de 80% no setor privado, em que a violência institucional leva à agressão de mais de 25% das mulheres durante o parto, em vez de se posicionar veementemente contrários a essas taxas absurdas, conselhos e sociedades continuam fingindo que as ignoram, ou pior, as acobertam e defendem esse modelo violento e autoritário que resulta no chamado “Paradoxo Perinatal Brasileiro”. O uso abusivo da tecnologia contrasta com taxas gritantemente elevadas de mortalidade materna e perinatal, isso em um País onde 98% dos partos são hospitalares!

Escolher o local de parto é um DIREITO humano reprodutivo e sexual, defendido pelas grandes democracias do planeta. Agredir os médicos que se posicionam a favor da liberdade de escolha é violar os mais sagrados preceitos do estado de direito e da democracia. Ao invés de atacar e agredir, os conselhos de medicina deveriam estar ao lado dos profissionais que defendem essa liberdade, vez que é função da boa Medicina o estímulo a uma “saúde social”, onde a democracia e a liberdade sejam os únicos padrões aceitáveis de bem estar.

Não podemos nos omitir e nos tornar cúmplices dessa situação. É hora de rever conceitos, de reagir contra o cerceamento e a perseguição que vêm sofrendo os profissionais humanistas. Se o CREMERJ insiste em manter essa postura autoritária e persecutória, esperamos que pelo menos o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) possa responder com dignidade, resgatando sua função maior, que é o compromisso com a saúde da população.

Não admitimos, não permitiremos que o nosso colega Jorge Kuhn seja constrangido, ameaçado o u punido. Ao mesmo tempo em que redigimos esta Carta aberta, aproveitamos para encaminhar ao CREMERJ, ao CREMESP e ao Conselho Federal de Medicina (CFM) nossa Petição Pública em prol de um debate cientificamente fundamentado sobre o local do parto. Esse manifesto, assinado por milhares de pessoas, dentre os quais médicos e professores de renome nacional e internacional, deve ser levado ao conhecimento dos senhores Conselheiros e da sociedade. Todos têm o direito de conhecer quais evidências apoiariam as escolhas do parto domiciliar ou as afirmações de que esse é arriscado — se é que as há.

http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoVer.aspx?pi=petparto

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O Poder Feminino

Rafael Bublitz nasceu há 16 anos em um parto domiciliar na cidade de Porto Alegre. Sua mãe teve os filhos em sua própria casa pela absoluta impossibilidade de se transferir para um hospital. Nunca houve tempo para isso; seus cinco filhos nasceram no aconchego do acanhado apartamento no bairro Cristal. Seus trabalhos de parto não contavam mais do que poucos minutos, e quando ao anoitecer o telefone gritava em minha casa era apenas para anunciar um fato já consumado: “Ela acabou de ganhar o bebê, doutor”, me repetia – sempre com a mesma entonação que misturava assombro e alegria – o seu orgulhoso marido Álvaro.

De tão impactado fiquei ao testemunhar estes nascimentos percebi que era necessário contar a história desses partos, tão puros, simples, rápidos e fáceis. Precisava dizer que o nascimento podia ser entendido de outra maneira, visto por uma ótica mais suave e lírica, e que talvez a forma técnica, fria e impessoal com a qual tratamos as mulheres nesse momento tão especial seja um dos mais importantes fatores para a “desumanização” de um momento tão rico em significados e formas de expressão.

Convencido da importância de não deixar que as histórias se percam no vazio das palavras não ditas, o nascimento de Rafael foi descrito no meu primeiro livro “Memórias do Homem de Vidro – Reminiscências de um Obstetra Humanista” no capítulo “Madalena e os Mistérios do Nascer”.

Hoje “Madalena”, nome fictício da verdadeira mãe de Rafael, veio ao meu consultório com um sorriso no rosto e um jornal na mão. Queria me mostrar o que Rafael tinha escrito. O texto de seu filho havia sido selecionado entre centenas de alunos do ensino médio em um concurso literário cujo tema era “Amélia”. Sim, aquela mesma da música do Mário Lago. O tema, que se escondia por detrás do título, era a “mulher” e sua nova posição na sociedade contemporânea individualista e ocidental. Um imenso desafio para um garoto de 16 anos que sonha estudar direito. Pois Rafael resolveu tratar desse assunto abordando o “Poder Feminino”, e – talvez mesmo sem o perceber – fez uma linda homenagem à mãe poderosa e valorosa que, num ato de coragem e ousadia, recebeu seus filhos neste mundo como cidadãos, e não como pacientes.

Mesmo que o essencialismo de Rafael possa ser criticado, quando fala que “o papel feminino se define pela capacidade de ser mãe”, creio que sua exaltação da maternidade como expressão legítima do poder feminino é digna de elogios. Rafael Bublitz tem apenas 16 anos, e isso explica alguma falha, mas o que se mostra evidente é que um nascimento digno e respeitoso carrega consigo consequências que ultrapassam a nossa experiência imediata, produzindo um “imprint” indelével que marcará a alma por toda a existência.

Abençoadas sejam para sempre, todas as “Madalenas” que despertam para a importância de um nascimento pleno de PAZ.

Aqui o texto de Rafael Bublitz publicado no Jornal Zero Hora em 8 de agosto de 2012:

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