Arquivo do mês: agosto 2019

Religião anti corrupção

Essa religião da limpeza ética e contra a “corrupção” vai continuar existindo até o dia em que ficar explícito e evidente para todos que esse combate moralista é tão falso quanto às pregações furiosas dos pastores cristãos contra a “obscenidade e a luxúria”. Em verdade a “cruzada contra a corrupção” sempre foi usada em momentos de crise do capitalismo. Foi usada por Hitler e Mussolini. Também contra Getúlio, Juscelino, Jango e agora para atacar Lula e o PT. No fundo ela tenta encobrir elementos inconfessáveis do inconsciente coletivo.

Aqui no Brasil, o sentimento racista que foi atiçado com a emergência – ainda que acanhada – das classes populares precisava de uma expressão política. Essa saída veio com o bolsonarismo, onde esse sentimento de exclusão social e racial poderia se expressar de forma travestida, com a roupa da virtude e da lisura na coisa pública. Não é a toa que o bolsonarismo é mais forte e persistente no “Brasil branco” – Rio Grande do Sul e Santa Catarina – também a parte mais racista do país.

É fácil diagnosticar está falsidade no discurso anti corrupção quando vemos que todas as “outras” corrupções comprovadas que nos cercam não mereceram nenhuma atenção desses mesmos bolsonaristas. Aécio, Temer, Queiroz, Bolsonaros e mesmo a corrupção comprovada da Lava Jato não merecem uma batida sequer de panelas ou uma indignação de qualquer natureza.

Como diria o sociólogo Jessé de Souza, a raiz dessa perseguição às esquerdas é o fato de que elas ensaiaram combater – mesmo que de forma tímida – o verdadeiro mal desse pais: a desigualdade e a injustiça social. Para essa classe média branca e “remediada”, a ascensão dos pobres representa uma ameaça muito maior do que opressão dos ricos. Estes, no Olimpo do capitalismo mais cruel do planeta, acenam para a classe média com a ilusória ascensão meritocrática, tão enganosa quanto as benesses garantidas pelos pastores, prometidas aos dizimistas depois da morte.

É o racismo, nossa ferida mais profunda, o que nos permite aceitar tanta iniquidade e tanta injustiça. Enquanto essa chaga não for cauterizada continuaremos a matar negros e pobres como formigas.

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A Cartola e a Bengala de Karpov

Olhou para seus interlocutores com um ar de enfado e regurgitou seu clichê sem nenhum pudor:

Sou um homem muito dedicado à família”.

Na realidade Karpov é um solitário, incapaz de cultivar amigos, reservado e tímido. Taciturno, indignado e misantropo. Um fóbico social, desajeitado e desinteressante. Não lhe sobram muitas alternativas além dos filhos e da mulher, que por força das pressões sociais continuam a manter com ele um contato protocolar. Fosse ele um mero desconhecido, sua mulher e filhos não veriam nele nenhuma das inúmeras qualidades morais que enumera para si mesmo. Deveras, se o encontrassem, murmurariam entre cochichos: “que velho chato e inoportuno!!“.

Mais do que entreveros consuetudinários, os laços de sangue lhe servem de boias salva-vidas. Não fosse pelo sangue que compartilha com os seus sua alma seria nada mais do que uma diminuta semente presa à casca corpórea, que solitariamente rolaria pelo jardim de uma casa há muito abandonada.

Sua proteção contra o completo abandono as produziu metodicamente com as ferramentas mais primitivas: manter a dependência de sua família à relativa segurança dos bens que adquiriu. Karpov antevia que seu destino era a solidão.

Alexei Ustinov, “Цилиндр и трость Карпова” (A Cartola e a Bengala de Karpov), Coletânea de contos, Ed. Vostok, pág. 135

Alexei Ustinov nasceu em Astrakhan, no Império Russo, em 1820. Sua infância passou às margens do Volga e envolvido nos estudos e na literatura. Com 11 anos de idade leu Noites na Fazenda de Dikanka (1831), do seu compatriota Nikolai Gogol, o que lhe produziu profundo impacto. No início de sua adolescência leu Arabescos (1835) e Mirgorod do mesmo autor, e quando da leitura dessas obras decidiu-se pela carreira de escritor. Como Gogol, especializou-se em contos, cheios de ensinamentos e crítica social. Alexei jamais escondeu que “A Cartola e a Bengala de Karpov” foi baseado em “O Capote” de Gogol, assim como “O Regente Ivan Aleksándrovitch” é uma referência óbvia ao falso inspetor enviado para fiscalizar a cidade em o “Inspetor Geral”. Escreveu várias coletâneas sobre a vida no campo, o Volga, os passeios de barco no Cáspio e também sobre as interações das crianças com seus cuidadores diante da educação severa – e por vezes brutal – na Rússia imperial. Escreveu em 1852 um conto chamado “Adeus ao Mestre” em que faz referência a Nikolai Gogol, falecido naquele ano, e sua obra, através do personagem Misha, que sai de sua cidade do interior da Rússia e vai viver em São Petersburgo, a idêntica trajetória feita por Gogol em sua infância. Alexei Ustinov morreu em Moscou em 1895, vítima de pneumonia.

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Redes sociais

Creio mesmo que as redes sociais ocupam uma importante função deixada em aberto pela igreja: o controle MORAL da sociedade. Hoje em dia as manifestações no Facebook, Twitter e Instagram são vigiadas por uma legião imensa de críticos ferozes e impiedosos da fala alheia. Basta uma vírgula mal colocada ou uma expressão politicamente incorreta para que estas torres de vigia soem o alerta. “Racista maldito”, “misógino”, “fascista” ou “homofóbico” ocupam o lugar de “pecador(a)”, “lasciva(a)”, “infiel” ou qualquer outra danação que frequentava os confessionários.

A patrulha da Internet é cruel. Existem sujeitos e grupos especializados em destruir reputações. A checagem dos fatos ou a interpretação por vezes são inexistentes ou viciosas, mas isso pouco importa; o que vale mesmo é a iconoclastia. Neste terreno as minorias são as mais ávidas em rotular seus inimigos e destruí-los.

Minha única dúvida é se esta vigilância surte algum efeito. Com o controle da sexualidade promovido pela igreja só criamos culpa e farsa. Pasolini mostrou isso muito bem. Não acredito que as patrulhas comportamentais da Internet serão mais eficazes. Nenhum comportamento egoístico ou preconceituoso muda por decreto, intimidação ou ameaça. Tudo o que conseguimos é uma hipocrisia institucionalizada.

PS: Enquanto escrevia isso uma amiga americana escreveu uma frase que me chamou a atenção. Disse que era grande o número de mulheres que estavam “completamente desinteressadas pela companhia masculina“. Arrematou dizendo que isso era “culpa dos homens”.

Bem…. eu respondi dizendo que eu via um fenômeno parecido entre os homens, mas que a culpa não me parecia ser das mulheres e sim da relação que hoje se estabelece entre os gêneros. Sou velho o suficiente para ter visto o assunto “virgindade” frequentar as páginas de revistas semanais, e contemporâneo o suficiente para me atrapalhar na confusão de gêneros e sexualidades. Por isso mesmo tive a possibilidade de ver a grande distensão da sexualidade feminina como uma marca bem importante da virada do século.

Há poucas décadas uma mulher que tivesse múltiplos parceiros era considerada “fácil” e até p*ta. Hoje as mulheres podem exercer sua sexualidade sem culpas sociais ou morais, e o sexo se tornou muito mais acessível do que era no fim do século XIX – quando Freud escreveu sobre a histeria tendo a construção sexual feminina como seu grande campo de pesquisa.

Bastou falar isso (??) para ser rotulado de misógino. Nem me perguntem porque…

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Medicina e Ciência

A prática da medicina se apoia na ciência apenas quando o conhecimento científico oferece sustentação aos seus interesses corporativos ou quando garante mais poder aos profissionais. Monitorização eletrônica foi introduzida sem nenhuma evidência clara de seus benefícios. Episiotomia e ultrassons de rotina, igualmente. Em contrapartida, décadas de estudos científicos bem desenhados que provam a ineficiência e/ou a maleficência destas condutas são insuficientes para desbancar tais procedimentos de nossas rotinas. Evidência científica só é boa se nos beneficia ou nos enriquece.

Henrico di Blasio “L’Uomo e la Scienza”, ed. Metaphisis, pag. 135

Henrico di Blasio é um médico italiano, especialista em medicina de Família. Nasceu em Nápoles e fez mestrado e doutorado em farmacologia na Universidade de Nápoles Federico II. Escreveu “L´Uomo e la Scienza” como um manifesto contra a medicalização extrema da sociedade e o totalitarismo que ocorre com a Medicina Baseada em Evidências quando não se aplica sobre ela uma visão holística e humanista. Mora em Nápoles e é casado com a pediatra Laura Stefanni.

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Partos domiciliares

As críticas que afirmam que os estudos sobre segurança em parto domiciliar são feitos em países onde este local de parto é reconhecido pelo sistema de saúde – portanto não serviriam para o Brasil – vão e voltam toda hora. Isso se diz há muito tempo e de diversas formas. É parecido com o discurso que diz que direitos humanos só funcionam em países civilizados. Isto é, aqueles que… respeitam direitos humanos.

Por outro lado, vejam como o discurso médico está migrando. Antes a oficialidade obstétrica afirmava que “parto domiciliar é perigoso”, ou como dizia um professor daqui, “Parto Domiciliar é violência obstétrica”. Hoje o discurso está se metamorfoseando para “sim, os estudos mostram segurança… mas só vale para países de primeiro mundo!!!” Em suma: “parto domiciliar só funciona para europeus”. Lembro que na faculdade professores enchiam o peito para bafejar tolices como “parto de cócoras é só para indígenas, assim como acupuntura é só para chineses“. Agora é “parto domiciliar é só pra europeu branco“. Como sempre, este tipo de afirmação não encontra respaldo em nenhum estudo sério, mas satisfaz as necessidades de quem deseja desmerecer a livre escolha das mulheres sobre o local de parir.

Assim, os latino-americanos estariam condenados a partos hospitalares violentos e/ou cesarianas até termos uma assistência centrada na mulher, e todos sabemos o desinteresse da corporação em lutar por este modelo. Todavia, este argumento também carece de sentido. No Brasil os partos domiciliares planejados são atendidos quase que exclusivamente na classe média, e por essa razão não há porque estabelecer essa diferença entre a assistência garantida à nossa classe média e aquela oferecida nos países europeus. Se o parto domiciliar ocorresse em favelas e sem o suporte adequado para transferências esta queixa poderia ser relevante. Não é o caso…

É claro que o objetivo é enganar; por trás dessa perspectiva existe uma evidente (e já bastante conhecida) “síndrome de vira-lata” – que surgiria da ignorância e do oportunismo dos interesses corporativos. Podemos encontrar aqui o mesmo discurso que censurava o cinema durante a ditadura militar ou de votar para presidente nos anos 70, usando a justificativa de que, ao contrário dos europeus, éramos primitivos e não sabíamos escolher o que assistir ou em quem votar. Parto domiciliar – ou parto onde a mulher assim o desejar – é um direito reprodutivo e sexual. O resto é estratégia para manter poderes intocados. “Humanização do nascimento é a garantia do protagonismo à mulher; o resto é tão somente sofisticação de tutela”.

Veja o último estudo aqui

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Amor

Quisera falar do sexo
Mas não posso
Do céu subterrâneo de nossos afetos
Mas não devo
o mundo escondido de nossos desejos
Mas não nego
a fuga absurda de nossos retornos
Mas não quero
o sentido último de nossos abraços
Mas não vejo
a luz que meus olhos encontram no escuro
Mas não digo
o suspiro de um dia saber-te sem mim

Amália Quintero D’Arroyo, “Fugas”, Ed Pindorama, pág 135

Amália Quintero de Arroyos é poetisa e nasceu em Aveiro – Portugal em 1959. Estudou literatura na Universidade de Lisboa e posteriormente iniciou seu trabalho como professora de literatura nas escolas públicas da região do Aveiro. Em 1985 publicou um livro de poesias chamado “Algures” que recebeu boas críticas e um convite da editora Pindorama para escrever uma série de mais 3 livros de poesia, surgindo daí a trilogia “Chegadas”, “Esperas” e “Fugas”, lançados respectivamente em 1991, 1996 e 2000. Recebeu o prêmio Cordéis de melhor livro de Poesia em 2005 por “Fugas”. Mora na cidade do Porto e é casada com o desenhista Fernando Monturo.

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A máscara caiu

Branquesia racista se manifestando a pleno nas redes sociais. Aplausos ao governador genocida se escutam por toda parte. Estão se sentindo soltos, não? O que antes era falado apenas em voz baixa – e entre risos – nos churrascos das famílias italianas e alemãs agora é dito abertamente no Facebook. Bolsonaro liberou o que existe de pior em cada um de nós, mas para alguns este é o momento sublime de libertação de todo seu ódio, seu ressentimento e seu racismo mais abjeto.

A turma reacionária abriu a gaveta de baixo da cômoda e tirou de lá a caixinha que se escondia debaixo da pilha de papéis. Dentro dela, entre fotografias obscenas, a máscara do racismo por tanto tempo escondida agora pode ser vestida sem pudor. É “cool” ser preconceituoso; está na moda aplaudir e festejar execuções públicas, em especial de negros e pobres de periferia. É bacana desprezar o meio ambiente e atacar gays e transgêneros. Ser perverso e canalha está na “crista da onda”. Ser mau… é bom.

Abrimos a caixa dos nossos sentimentos mais baixos. Estamos nos tornando o país mais pervertido do planeta. Somos a escória do mundo. A banalidade do mal triunfa enquanto a solidariedade agoniza.

A máscara caiu…

Somos o país onde a escravidão mais resistiu e seremos o último a apagá-la de nosso cotidiano. O mesmo racismo que motivou as massas na Alemanha à destruição é o motor das manifestações que comemoram morte e extermínio – de gentes e natureza.

Só a catástrofe salvou a Alemanha. Só a catarse nazista limpou este país do racismo e do desprezo aos outros povos. Acredito que o Brasil terá o mesmo destino; só uma hecatombe provocada pela indignação coletiva de pretos, pobres, periféricos, favelados e a gigantesca legião de desprezados fará a limpeza que o país precisa.

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Diagnóstico

Mas doutor, afinal o que tenho?

Tudo o que o paciente mais quer é um nome, uma categoria diagnóstica, um rótulo para colocar por sobre sua dor. Esta ação simples, inobstante a complexidade do mal que escolhermos para lhe oferecer, é capaz de produzir, ao menos, um alívio. Nomear é basicamente delimitar, oferecer um começo e um fim.

– Pelo menos agora já sabemos, não?

O problema é que ao batizar o mal que lhe aflige calamos todos os seus outros sintomas, as expressões múltiplas do seu sofrer. Obrigamos o paciente a se conter dentro da caixa do que nós esperamos dele, e não escutamos a voz única e surpreendente do que ele em verdade sente. Sem o diagnóstico o paciente fica livre para sentir o que desejar, mas quem suporta tal liberdade?

Experimente, diante de um quadro de sinusite, dizer ao seu médico que sente frio, ansiedade ao anoitecer ou saudade de um amor do passado. Imagine contar ao medico que sente sua alma vazia e seu ânimo escorrer como a agua do banho. Como se comportaria seu doutor se voce lhe dissesse que, além da tosse produtiva – que ele chamou de bronquite – você sente coceira nos pés, peso no estômago e que este mal estar veio depois de um grande pesar?

O diagnóstico é a grande mentira da medicina. Ele distorce a realidade como a foto de um sorriso: mostra o fragmento de uma expressão e esconde todas as outras faces possíveis.

Médicos não deveriam ser catalogadores ou rotuladores. O exercício mais interessante e produtivo é atender seu paciente como se ele fosse o único doente do mundo.

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Ciência

Querem mais um pouco da barbárie patrocinada pela medicina? Ciência à venda.

Ainda me choco – mesmo nos dias de hoje – com os positivistas da ciência que a enxergam como uma entedidade espiritual, pura e neutra, que não é contaminada pelo seu tempo, a política, os interesses e os contextos onde aparece. É comum ouvir “mas a ciência diz que…” ou ainda – a pior vertente – “os cientistas chegaram à conclusão que…” como se isso fosse uma determinação divina, uma revelação sobre a qual não se poderia questionar. Não, estas são manifestações de sua época, formas de ciencia direcionadas por valores que só fazem sentido quando olhadas em conjunto com o ambiente político e econômico.

É evidente que entender a falibilidade da ciência, em especial pelos contextos e circunstâncias sociais, significa tão somente humanizá-la, a não suprimi-la. A pior ciência ainda é melhor do que o mais sublime misticismo. Entretanto, a ciência é uma vela firme e poderosa que precisa de vento para nos levar adiante, mas quem produz esse vento somos nós.

Sem reconhecer a face humana e corruptível da ciência ela não pode evoluir.

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O perdão solitário

O perdão é o mais solitário dos sentimentos. Ele não se relaciona com o sujeito cujo crime nos ofende ou maltrata, mas com a nossa percepção do malfeito. Ele também não implica em inocentar quem nos fez o mal. Perdoar não é esquecer ou relevar, mas apenas reconhecer em nós a mesma semente de mal que em outro floresceu por circunstâncias que jamais saberemos por completo. O perdão não é difícil pela gravidade do crime, mas pela imensidão de nossa arrogância.

Maurice Deschamps Faure, “L’épine et le clou de girofle”, Ed. Printemps, pág 135

Maurice Deschamps Faure é um escritor Belga, nascido em Bruges em 1966. Publicou “L’épine et le clou de girofle” (O Espinho e o Cravo) em 2015, durante o período internado no Hospital Center Universitaire de Nice, quando esteve à beira da morte após um acidente com Kitesurf em Nice, na França. Teve múltiplas fraturas e ficou com tração por vários meses. Este livro não foi escrito, mas ditado para sua secretária Marie Claire, para quem dedica o livro.

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