A razão pela qual eu não acho adequado participar de “guerra de artigos”, é que eles se referem a valores crus, biológicos e matemáticos, sem jamais considerarem o valor subjetivo de um parto. Isto é: o desejo da mulher não conta. Por essa falha na compreensão mais ampla do que significa um parto eu considero inútil a luta fálica de quem tem o melhor artigo ou estudo sobre o local de parto, como se NÓS – os que controlam a ciência – tivéssemos o direito de decidir como uma mulher vai parir.
Analisem por este especifico ponto de vista. Vocês sabiam que quando uma mulher branca se casa com um negro ela tem 4x mais chance de se separar? Sabiam também que uma separação prejudica – e isso pode ser cientificamente mensurado – a saúde dos filhos? Baseados nestas avaliações puramente científicas não seria razoável proibir relacionamentos inter-raciais em benefício das crianças que correm risco de sofrer com a separação dos pais?
“Ah, mas esse é um problema social. Quando acabar o racismo os casamentos entre brancos e negros serão como os “normais” das outras pessoas”. Sim, é um problema social, tanto quanto é o parto domiciliar. Quando o sistema de saúde, em especial os médicos, pararem de agredir e pressionar as mulheres e parteiras pelas suas escolhas o resultado para todos será muito melhor. Imaginem se os médicos fizessem isso com as mulheres que escolhem cesarianas, se fossem tratadas como lixo ao internarem para esta cirurgia. Portanto, a corporação cria as más condições para um parto domiciliar, e quando maus resultados ocorrem culpam a natureza “perigosa e imprevisível” do parto.
Se você procurar bem é ÓBVIO que vai achar artigos que dizem que os relacionamentos homossexuais são mais arriscados e produzem mais adoecimento. Se você quiser achar vai encontrar artigos da Escandinávia dizendo que episiotomia se relaciona com problemas do assoalho pélvico, mas não vai contar como esses partos são conduzidos naquele país, muito menos a forma como as mulheres se posicionaram para parir. Assim, sempre encontramos na ciência aplicada à saúde aquilo que mais desejamos.
Quando há um especial desejo envolvido, e evidentes interesses corporativos, varremos a autonomia feminina para baixo do tapete. Podemos até falar em “liberdade de escolha” mas apenas quando ela se limita às cesarianas, obviamente sob cuidado médico. Se for uma escolha pelo parto em casa, aí a escolha livre e independente da mulher se torna inadequada e inaceitável.
O grande problema – na maioria das vezes não percebido – é o SEQUESTRO do parto pelo discurso médico. O parto é contado dentro de uma narrativa de submissão e alienação por parte das mulheres, enquanto nessa mesma visão os médicos são heróis e salvadores da natureza cruel e traiçoeira que habita o corpo das mulheres.
Nessa narrativa “oficial” a mulher é sempre passiva, como uma Princesa Bela Adormecida, inútil, inerte, imóvel e que necessita do beijo intrusivo (aliás, não consentido) para salvá-la de seu corpo fraco e insuficiente. Porém, para que o parto continue a ser um processo masculino e fálico – pois penetra, invade, muda e repara – é necessário que a princesa continue dormindo. E ainda vemos MILHÕES de mulheres que seguem a narrativa heroica do príncipe que salva a ingênua princesa que colocou o dedo onde não devia. Dormem solenemente aguardando que a medicina venha a reparar seus corpos mal feitos e degenerados.
É fácil fazer disputas de artigos. Só acho inútil. Para as parteiras é fácil fazer críticas à corporação médica porque elas estão protegidas pela sua própria corporação. Para os médicos obstetras humanistas se trata de uma luta de David contra Golias, e por isso não pode ser surpresa a existência de uma onda de ataques da corporação contra os profissionais que ousam questionar a narrativa médica em contraposição à narrativa das próprias mulheres em relação ao parto.
É inegável que nos encontramos no meio de um processo de transição, mas enganam-se os que pensam que as evidências científicas – para qualquer lado – serão o fiel da balança. Aprendi a duras penas que a “verdade” (sintam-se livre para interpretar esta palavra como quiserem) não é capaz de puxar o gatilho das mudanças. As evidências científicas surgem apenas DEPOIS de mudarmos a cultura, e esta se modifica sempre de baixo para cima, através de uma transformação na forma de vermos OS MESMOS fenômenos, mas agora sob uma nova ótica. O parto – por ter sido sequestrado pelo discurso médico – é visto como um procedimento da medicina aplicado sobre um “paciente”, isto é, um sujeito passivo sobre cujo corpo atuamos, independente de sua aquiescência. O mesmo modelo é utilizado sobre quem vai operar um tumor de mama, uma pedra no rim ou tratar com antibióticos uma infecção pulmonar; o desejo do paciente é desimportante. A expropriação do parto pela medicina, retirada das mãos das mulheres e colocada nas mãos dos médicos, está na gênese da violência obstétrica e do intervencionismo desmedido.
Podemos acrescentar à esta equação o fato de que o parto ocorre no corpo das mulheres em um contexto de patriarcado decadente, mas ainda atuante, o qual coordena as relações sociais como um “cimento” forte o suficiente para produzir coesão. Assim, tal contexto produz mulheres que oferecem seus corpos à medicina em troca de uma suposta (e ilusória) segurança.
Da mesma forma como os sionistas em Israel precisam criar uma fantasia de “ataque iminente” dos pobres palestinos para justificar seus massacres, os médicos precisam exaltar os perigos tremendos escondidos nos corpos grávidos de suas pacientes para justificar as intervenções pelas quais determinam e mantém seu domínio.
Não há dúvida que todos os profissionais que ameaçarem a narrativa hegemônica vão sofrer os ataques de uma corporação acuada, de uma forma ou de outra. Os relatórios de violência obstétrica, desde os da Fundação Perseu Abramo e os demais que se seguiram, denunciam apenas a ponta do Iceberg. Os obstetras, pela primeira vez na história, sentem-se pressionados pela opinião pública, e os profissionais sentem-se confusos porque nunca imaginaram que a forma como veem os partos pudesse ser apenas uma das maneiras de interpretá-lo, e não a “forma científica e correta”.
Os ataques aos médicos humanistas assemelham-se aos raids aéreos e as bombas sobre Gaza. É um aviso: “não ousem questionar nosso poder ou muitos mais sofrerão”.