Arquivo do mês: agosto 2023

Zanin

Zanin fez votos técnicos e votos conservadores. Não há dúvida que os votos podem ser criticados sem pudor, pois desgostar das suas decisões não é absurdo. Absurdo mesmo é achar que Lula escolheria um Ministro do STF apenas por vaidade ou para marcar uma vitória simbólica contra Moro. Todavia, creio que julgar Zanin pelos votos dados até agora é excesso, ou vontade de atacar as escolhas de Lula.

É claro que Lula pode errar, e por certo que já cometeu erros nas suas indicações para o STF. Toffoli é o melhor exemplo. Apenas lembrem que os ministros mais progressistas são também lavajatistas, como Facchin e Barroso. Vale a pena ter um ministro “woke” que não respeita a constituição e promove golpes por ação ou inação?

Talvez o objetivo de Lula seja colocar um ministro no qual tenha profunda confiança, e que jamais participaria de uma farsa como o impeachment de Dilma e a prisão ilegal de Lula, mesmo ao preço de ter uma postura por vezes conservadora.

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Espiritismo Místico

Minha dúvida é a seguinte: o que teria ocorrido com o espiritismo se houvesse optado por uma vertente científica – a vertente derrotada no final do século XIX, liderada por Angeli Torteroli, no enfrentamento com os místicos? O que teria acontecido com a “Doutrina dos Espíritos” caso tivesse aderido às concepções científicas da época, mantendo-se longe das percepções místicas e religiosas e tornando-se um ramo científico, positivista e experimental de investigação da vida e da comunicabilidade após a morte? Na minha humilde opinião esta escolha poderia ter produzido pesquisadores como os “Ghost Busters”, que se divertiriam fazendo experimentos em laboratórios para investigar fantasmas e mensagens do além, tendo quase nenhuma pervasividade entre a população.

O espiritismo assim desenvolvido seria um ramo quase desconhecido do conhecimento, como o são as ciências parapsicológicas. Ou seja: a vertente mística, cristã/católica e mediúnica do espiritismo, através do processo sincrético de adaptação à cultura brasileira, foi o responsável pela fantástica disseminação dessa mensagem. Todo mundo no Brasil conhece o espiritismo, conhece Kardec, conhece mediunidade e sabe o que é reencarnação. Pela mesma razão, a ligação da homeopatia com o espiritismo foi a responsável por manter a ideia do tratamento homeopático vivo na cultura – apenas porque na sua chegada ao Brasil esteve ligado ao espiritismo, mesmo que nada exista de necessário na conexão entre esses dois conhecimentos.

Desta forma, mesmo que seja justo discordar da forma como o Espiritismo se desenvolveu na cultura, sendo uma espécie de seita católica reencarnacionista e mediúnica, repetindo inúmeros defeitos e problemas das grandes religiões tradicionais (crendices, conservadorismo político, moralismo, conservadorismo de costumes, hierarquias, gurus, burocracia, culto às personalidades, etc.) ainda assim é correto dizer que estas foram as circunstâncias essenciais para a disseminação da mensagem espírita. Sua conexão com o cristianismo foi fundamental para garantir sua popularidade, mesmo que a visão kardequiana seja muito mais universalista – o que permitiria o espiritismo na China ou no Oriente Médio, já que não competem com visões religiosas tradicionais. Não fosse sua ligação com as vertentes mais místicas e a doutrina de Kardec jamais teria o sucesso que teve entre os brasileiros. Essa é uma das contradições mais interessantes para a abordagem espírita.

Muitos espíritas laicos, que combatem a vertente mística do espiritismo, negam a imensa maioria dos livros psicografados como embustes, incluindo toda a obra de Chico Xavier, “e não colocam nada no lugar”. Entretanto, cabe a pergunta: por que deveriam colocar “algo” no lugar? Se acham que é um embuste, por que razão deveriam colocar alguma coisa no lugar de erros, fantasias e até fraudes? Como provocação: “eles criticam ferozmente a TerraPlana mas não colocam nada no lugar”. Ora, colocam sim: o Globo terrestre, assim como as pessoas que combatem a mediunidade de Chico Xavier dizem que os seus livros são obra dele mesmo, e que os espíritos que assinam suas obras são seus tímidos alteregos.

Para outros “A ciência dentro do espiritismo tem um propósito final claro, que é a transformação moral das pessoas”. Sério? Por que deveria ser assim? Desde quando a ciência tem um “objetivo”? Por que deveríamos colocar na pesquisa da sobrevivência da alma um objetivo último de caráter moral? Imagine alguém afirmar que: “a lei de gravitação de Newton tem como finalidade última o aprimoramento moral dos indivíduos e uma vida centrada na caridade”. Não soaria ridículo? Pois assim é… e na minha perspectiva a vida após a morte não é uma pesquisa que objetiva mudar a moral de qualquer um!!!

Para mim, por exemplo, a pesquisa no espiritismo serviria tão somente para mudar a nossa percepção de realidade, acrescentando uma nova dimensão para entender o significado último da vida – caso ele exista – e que não precisa ser utilizada de forma moralizante. Por acaso as descobertas de Darwin serviriam a algum propósito nobre, como “melhorar o mundo”, ou “transformar moralmente” a humanidade? E Freud? E Oppenheimer? Estavam em busca da “bondade” ou da suprema “fraternidade”? Por que achamos que o objetivo precisa ser melhorar ou fazer evoluir a humanidade? Por que não poderia o espiritismo ser um ramo da ciência que procura desvendar este mistério, sem compromissos de caráter religioso, moral, ético, etc.?

Comparo o desbravamento da vida após a morte com a conquista espacial, ou a travessia do Atlântico pelas naus no fim da idade média. Por esta razão, “o conhecimento do outro mundo só se justifica pela utilidade em tornar alguém melhor” não faz sentido algum para mim. No meu entender a descoberta da América, da rota das Índias, ou da vida em Marte não é para trazer a transformação moral da humanidade, sequer para transformar o caráter dos sujeitos humanos, mas tão somente para alastrar o conhecimento humano sobre um campo até então obscuro e misterioso.

Para finalizar, combater os aspectos religiosos do espiritismo é um objetivo nobre. Alguns podem não concordar, mas isso não retira desse específico viés a sua importância. Nada há de necessariamente raivoso nisso. Essa visão teria a mesma função que o combate à politicagem contida nas decisões de juízes, ou à contaminação de ideologias sectárias em organizações que se propõem universalistas. Não se trata, portanto, de “combater por combater”, mas por entender que os aspectos religiosos e místicos contidos no espiritismo são elementos artificiais, enxertados na prática espírita, não contidos na proposta original da doutrina e que não estão em sintonia com a perspectiva laica que Kardec sempre tentou oferecer à doutrina dos espíritos. Claro que pode existir raiva e outros sentimentos menores na iconoclastia de figuras espíritas, mas esta busca, por si só, não pode ser penalizada.

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John & Julian em Ithaka

O poema “Ithaka” de Constantine Cavafy, foi escrito no início do século passado, em 1911, e oferece a perspectiva de que deve haver, em nossas ações cotidianas, a supremacia da viagem sobre o destino. Ithaka simboliza o objetivo supremo que todo sujeito procura durante sua existência. Cavafy faz uma alusão à lendária viagem de retorno de Ulisses, rei da ilha de Ithaka, onde sua esposa Penélope e seu cão Argos o esperavam após a vitória dos gregos sobre os troianos – que Homero retratou em “A Odisseia”. O poema se refere ao percurso pessoal e subjetivo que cada um de nós empreende durante sua vida e sugere que procuremos encontrar durante a permanência na Terra nossa própria Ithaka, o objetivo supremo, que é uma forma de garantir sentido à nossa trajetória pelo planeta. O poema de Constantine, um grego radicado na Inglaterra, ficou tão conhecido que foi recitado no funeral da ex-primeira dama americana Jacqueline Kennedy Onassis.

Ithaka (e mantenho aqui a grafia original) é também o nome do documentário recentemente lançado que trata da relação de John Shipton com seu filho famoso, Julian Assange, preso da penitenciária londrina de Belmarsh, onde aguarda sentença de deportação para os Estados Unidos. O filme teve sua apresentação pública ontem na minha cidade e contou com a presença de John Shipton, personagem central do filme, e aborda as peripécias deste australiano de 76 anos que lidera no mundo inteiro uma campanha para a libertação do seu filho, editor chefe do Wikileaks, que denunciou os crimes de guerra dos Estados Unidos no Afeganistão, Iraque e na prisão de Guantánamo no Caribe. Mostra os detalhes da sua vida comum, seu temperamento taciturno e reservado, a relação com os filhos e as conversas com a nora Stella Morris, mãe dos dois filhos de Julian.

Evidentemente existem várias formas de ver este documentário, dependendo da ótica que você escolhe para captar as imagens na tela à sua frente. A mais evidente maneira é olhar para a luta empreendida pelos ativistas do mundo todo pela liberdade de imprensa, pelo direito de expor os crimes contra a humanidade cometidos pelos poderosos, em especial aqueles que controlam as leis, a mídia, a propaganda, as reservas de recursos naturais, os territórios e o comércio. O filme aborda isso de uma maneira bem clara, mostrando que nenhuma acusação contra Julian sobrevive a uma análise baseada nas leis de proteção das fontes e da liberdade de imprensa – em especial as leis americanas. Fica evidente que a prisão de Julian Assange cumpre um objetivo claro: humilhar publicamente alguém que denunciou a barbárie do imperialismo, castigando ao extremo aquele que ousou enfrentar os poderes imperiais e dando um recado a toda a imprensa mundial: não há espaço para criticar os poderes da polícia do planeta; quem assim o fizer será submetido à todas as sanções possíveis, perseguições, ataques, destruição da honra, mentiras e – se for possível – a própria morte. Em verdade, a tortura realizada contra Julian Assange pretende condená-lo à pior morte: a loucura e/ou a depressão pelo isolamento e pelo absurdo das acusações às quais é submetido. Como o personagem Josef K., de Kafka, os supostos crimes cometidos são o que menos importa; o que vale é punir por razões aleatórias e fabricadas qualquer sujeito que ameace os interesses americanos. O “lawfare” contra Lula mostrou em nível local o quanto os interesses geopolíticos de dominação conjugados com a corrupção do judiciário são capazes de servir aos mais espúrios interesses do imperialismo.

Outra forma de ver o documentário é pela exposição da fragilidade crescente dos governos europeus, absolutamente controlados pela política externa americana, não apenas nos aspectos políticos e bélicos (a guerra contra a Ucrânia é um claro exemplo) mas também o poder que a máquina publicitária americana exerce sobre a opinião pública e o próprio judiciário. Fica evidente o quanto os juízes britânicos são meros marionetes comandados pela mão pesada dos americanos, que são quem está de fato julgando este caso, a partir da sua visão persecutória e imperialista. Não há qualquer autonomia para julgar Assange – tanto quanto não havia para os juízes do Iraque ocupado para julgar Sadam Hussein – o que nos demonstra que a tão propalada “liberdade” dos países do “primeiro mundo” nada mais é que uma peça de propaganda, uma mentira mil vezes contada, que apenas serviu para criar a fantasia do ocidente como um espaço de liberdade de expressão e de abertura política. Estas farsas, esses simulacros de democracia, estão sendo aos pouco desvelados e Julian Assange está recebendo esta cruel punição exatamente por se postar na linha de frente nas denúncias, apontando seus dedos para os crimes hediondos cometidos pelos Estados Unidos nas guerras em que se envolveram.

Porém, há uma outra forma de ver o filme, provavelmente a mesma que inspirou John e seu filho Gabriel (meio irmão de Julian) para colocar no documentário o nome de “Ithaka”. O personagem central da película é John Shipton e bem no princípio do filme ele se irrita quando questionado sobre o que o levou a ficar separado do seu filho dos 3 aos 20 anos. Certamente tem a ver com a separação da mãe de Julian, mas isso não fica claro. Ficou incomodado quando foi perguntado sobre o diagnóstico de Asperger que seu filho Julian tem, dizendo “ele é o que ele é”. John Shipton demonstra durante todo o documentário que é um sujeito pacato, nascido na Austrália, sem vinculações políticas explícitas, com um caráter evidente de misantropia bem humorada, reservado, quieto, pouco afeito a conversas e arredio à publicidade e aos jornalistas. Ele é um dos mais perfeitos exemplos de um sujeito jogado involuntariamente – e totalmente despreparado – no olho de um furacão que está envolvendo os próprios princípios democráticos mais basilares da cultura ocidental: a liberdade de imprensa e o direito de denunciar os crimes cometidos pelo Estado – e pelo Império.

John é a verdadeira personificação do sujeito anônimo que subitamente ganhou notoriedade internacional. No seu caso isto ocorreu pela prisão criminosa de seu filho, o que fez um pacato “Zé Ninguém” de mais de 70 anos ser alçado ao posto de herói por multidões. No meio do filme ele diz a frase que mais me tocou, e tenho certeza que muitos que viram o filme também sentiram a mesma emoção que eu naquela simples resposta a um jornalista, a qual continha o cerne de sua jornada em direção à sua Ithaka pessoal. Quando instado a falar o que o movia nessa aventura ele respondeu “Porque sou pai, e isso é o que qualquer pai faria por seu filho”. Ou seja, John provavelmente continuaria indefinidamente em sua vida pacata na Austrália, construindo casas e se alegrando quando as pessoas se mudam para elas. Jamais pensaria na tarefa nobre de defender a causa da liberdade de imprensa ou de combater os poderes abusivos do imperialismo em tantas partes do mundo. Continuaria a ser o sujeito ranzinza e pacato que sempre foi, cultivando seu jardim e cuidando de sua filha pequena. Porém, tudo indica que foi convocado pela deusa “Álea” – a divindade dos fatos aleatórios – para ser o divulgador da causa do seu filho, o mais famoso preso político do mundo. Talvez ele fosse o mais despreparado de todos os humanos para empreender esta viagem tão árdua, difícil e cheia de armadilhas. É possível, entretanto, que esta seja a verdadeira razão oculta da odisseia que transformou sua vida, fazendo do trajeto inusitado que surgiu algo capaz de dar verdadeiro sentido à sua existência. Por muitas vezes eu me coloquei no lugar de John Shipton, pensando o que eu faria em seu lugar, convocado a combater os gigantes macabros que tentam destruir seu filho e – acima de tudo – exterminar o que resta de liberdade de expressão no mundo. Muitas vezes pensei se teria a mesma coragem para denunciar a barbárie que testemunhei. Uma pergunta de difícil resposta; ou talvez a resposta mais fácil.

John Shipton em P. Alegre

Ao final da apresentação do filme pensei em perguntar para John como um pai se sentia vendo seu filho preso, doente, torturado e injustiçado. Quais são as emoções diante da impotência de testemunhar a violência do Estado contra alguém cujo crime foi revelar a verdade. Preferi me calar porque sabia que essa pergunta pouco poderia revelar objetivamente, porque só calçando os seus sapatos e caminhando o percurso tortuoso que ele trilhou para saber a dor de esperar a volta de um filho injustamente acusado, inocente e preso por ser bravo e combativo. Coube ao meu filho Lucas, que me acompanhou ao evento, pedir que ele recitasse a poesia Ithaka, que deu nome ao documentário, e pedisse para que ele nos dissesse “quanto tempo temos e quanto de esperança podemos carregar ao peito”.

Sua resposta foi até óbvia: ele se mantém esperançoso e seu filho “sofre, mas resiste”, e que o imenso apoio internacional que está recebendo de tantos povos, nações e instituições é uma luz de fulgurante esperança de que Julian um dia poderá voltar para casa – ou para o Brasil, conforme o convite do próprio presidente Lula. A seguir recitou em inglês o poema Ithaka, cuja tradução transcrevo abaixo:

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Poseidon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Poseidon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

Poema de Konstantinos Kaváfis (1863-1933)

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Gravidez precoce

Há muitos anos fui convidado para participar de um programa de rádio na condição de obstetra, para debater com outros profissionais um tema muito importante: gestação na adolescência. Havia na mesa sociólogas, feministas, jornalistas e eu, no papel do médico. Lembrei disso a propósito de uma crônica de Juremir Machado da Silva sobre gravidez na menopausa e a perversidade capitalista implícita nas propostas de retardar o projeto das mulheres de terem filhos em nome de uma maior produtividade nas empresas. Voltando ao programa de rádio, depois de longos prolegômenos, entremeados com propagandas do “Chá Jamaiquinha” e do “Coscarque”, fui instado a responder a primeira pergunta do debate que, por óbvio, não podia ser outra:

– Doutor, qual a idade ideal para a mulher ter seu primeiro filho?

Lembrei imediatamente da piada de Woody Allen em um conto seu no qual um homem simples da roça, que precisava encontrar Abraham Lincoln para livrar seu filho da forca, ao se aproximar do presidente nervosamente pergunta: “Qual o tamanho ideal das pernas de um homem”, ao que Lincoln responde “Ora, o ideal para que alcancem o chão”.

Diante da pergunta da jornalista minha resposta foi igualmente incontinenti: “A idade ideal para ter o primeiro filho é por volta dos 15 anos”.

Todos na sala ficaram parados, em silêncio constrangido; já eu me mantive com a mesma cara de tolo que me caracteriza. A jornalista gaguejou, segurou nervosamente o papel do roteiro com as duas mãos e repetiu a inquirição:

– Mas, mas… doutor, com 15 anos ela é apenas uma adolescente. Esse programa foi criado especificamente para debater isto, que consideramos um mal social. O senhor não acha?

Ofereci um sorriso tímido e tentei responder de forma o mais didática e simples possível.

– Ora, eu fui convidado para debater na perspectiva da mulher enquanto ente biológico. As questões sociais devem ser debatidas por sociólogos, feministas, antropólogos, políticos, etc. Minha perspectiva social sobre o tema é igual a de qualquer outra pessoa, e só estou aqui por ser obstetra. Do ponto de vista obstétrico – portanto, nos aspectos orgânicos e psíquicos – posso dizer que 15 anos é uma boa idade porque foi o tempo escolhido para a primeira gestação em 95% do tempo em que habitamos o planeta. Não à toa ainda hoje celebramos a “festa de debutantes”, um ritual de origem pagã elaborado para apresentar à sociedade as meninas que já haviam menstruado, estando, portanto, aptas para o casamento e sua óbvia consequência: filhos. Assim sendo, a época biologicamente mais bem estudada e avaliada durante muitos milênios foi essa. Ela, aliás, tem várias vantagens: força, juventude, criatividade, energia, etc. Além disso, na ocorrência de um aborto ou uma perda neonatal, a pouca idade oportuniza décadas de novas possíveis tentativas. E por fim, quem procria cedo tem muito mais novas chances para se tornar avó – e até bisavó – que nos tempos primevos da nossa espécie, o que oferecia uma garantia acessória fundamental para a sobrevivência de crianças. Isso tanto é verdade que sua existência no núcleo familiar foi chamada de “efeito avó”, que pode estar na raiz do fenômeno da menopausa – que oferece a chance de não poder mais ter filhos e com isso ter tempo para cuidar de netos. E antes que me perguntem, eu disse para minha filha tomar precauções e só engravidar quando fosse conveniente, porque eu também vivo em uma sociedade capitalista onde o sucesso profissional tem uma enorme relevância. Porém, ela também foi bem orientada sobre todas as alternativas e o preço alto de adiar indefinidamente o projeto de ter filhos. Mas lembrem: minha filha recebeu essas orientações do pai, não do médico.

Sei que as pessoas naquela mesa desejavam penalizar o desejo juvenil de ter filhos. Queriam combater a “gestação extemporânea” e abrir guerra contra a “gravidez indesejada”, mas achei que valia a pena mostrar que a estrutura social, em nome da produção e do progresso individual, penaliza as gestações que ocorrem cedo na vida, criminalizado este desejo, apenas porque não se adapta a um modelo de sociedade voltada à produção e ao sucesso pessoal.

As feministas e jornalistas que estavam na sala se escandalizaram e não me perdoaram por expressar esta visão contra hegemônica. Nada que eu já não estivesse acostumado.

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Paris

Meu pai visitou a França pela primeira vez em 1964, exatamente na época em que um golpe militar acontecia no Brasil. Foi enviado pelas centrais elétricas do Rio Grande do Sul – a CEEE – para estudar na escola de Gurcy-le-Châtel, a convite da Eletricité de France. Para um funcionário de nível médio, e pertencente à classe média de uma cidade provinciana como Porto Alegre, isso era um acontecimento espetacular, fora do esperado. Nos anos 60 uma viagem à Europa era considerada algo reservado aos ricos, aos milionários, e jamais ao acesso de um mero professor de eletrotécnica.

Esse fato, a viagem de 6 meses do meu pai à França, foi o grande acontecimento da minha infância. Enquanto ele esteve fora, nossa família – minha mãe e meus dois irmãos – esteve na casa da minha avó, que há pouco havia ficado viúva. Lembro de perguntar todos os dias “Vovó, é hoje que meu pai volta?” e via ela mostrando nos dedos o quanto faltava para sua chegada. Quando o vi retornando de viagem, chegando em um fusca-taxi no portão da velha casa no Moinhos de Vento, lembro bem de tentar segurar sua mala – estilo Mazzaroppi – e escutar suas palavras: “ela é pesada demais para você”. Fiquei com a imagem do meu pai forte o bastante para carregar aquela mala, e também a sua família inteira. O resultado prático mais evidente deste retorno foi o nascimento do meu irmão caçula, que veio na esteira da recuperação do tempo perdido.

Minha mãe já era uma francofílica – era assim que eu a chamava – há muitos anos e tinha uma fantasia vibrante sobre a cidade de Paris. Era uma dona de casa que tinha livros em francês na estante de casa e um “Petit Robert” todo rabiscado, onde aprendia a língua de Victor Hugo por conta própria. Era capaz de descrever as ruas de Paris pela memória das fotos que meu pai trouxera na bagagem pesada. Já havia visitado centenas de vezes a Avenida dos Campos Elíseos, a Torre Eiffel, o Père Lachaise, o túmulo de Kardec, a Ilha da Cidade e a Notre Dame de Paris apenas pelas palavras doces e requintadas do meu pai. Era seu sonho juvenil que se manteve vivo durante a vida inteira

Em meados dos anos 70 meu pai foi chamado para um novo curso, na mesma escola em Gurcy-le-Châtel. Desta vez economizou suas poucas economias para levar minha mãe assim que o curso tivesse findado, para passar com ela duas semanas na “cidade luz”. Hoje eu posso apenas imaginar o que minha mãe sentiu ao fazer esta viagem. O sonho de uma vida inteira, todas as suas fantasias, os lugares, os bares, as alamedas e ao lado do grande amor da sua vida. Lembro de dizer ao meu pai do valor desta viagem para uma pessoa simples como ele, ao que ele me respondeu: “Quando vocês tiverem a minha idade uma viagem como essa será tão simples quanto ir até o Rio de Janeiro”. Ele anteviu a “aldeia global” de MacLuhan, e o encurtamento das distâncias que aconteceria.

Minha mãe voltou exuberante de Paris. Adorava me contar os passeios, os lugares, as esquinas (Saint Michel – Saint Germain), os cafés, a ponte Alexandre III, o Sena. Continuou durante toda a sua vida apaixonada por aquela cidade e pela cultura francesa. Quando tive aulas de francês na escola ela corrigia meus cadernos e me ensinava a pronúncia das palavras. Certa vez, eu mostrei a ela as minhas aulas sobre colóquios simples e cotidianos em francês e ela resolveu “ajudar”, desenhando personagens de palitinhos que conversavam entre si. Quando, ao final do mês, a professora pediu os cadernos de todos os alunos para avaliar ela falou:

– Eu ia elogiar os cadernos de vocês todos, mas quando vi o caderno do Ricardo eu percebi que nunca havia visto algo mais bonito em toda minha vida.

Fiquei vermelho e constrangido. Por minutos fiquei brabo com a minha mãe por me deixar tão encabulado, mas não tive coragem de confessar que a ideia – e os desenhos – eram dela. Afinal, minha mãe merecia que seu amor pela França e seu idioma recebesse ao menos essa singela homenagem da minha professora.

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Véus

Há alguns poucos dias uma famosa artista brasileira, perto dos 70 anos de idade (na verdade 65), foi instada por uma repórter a falar sobre sua vida sexual. As barreiras para este tipo de pergunta, que há poucas décadas seriam vistas como uma intromissão indevida e deseducada na vida privada, foram derrubadas em nome de uma “abertura” da informação, onde nada mais pode ser considerado inviolável ou privado. Todavia, sua resposta, pelo inusitado, foi absolutamente chocante. Não fez nenhuma revelação escabrosa, e muito menos revelou o nome do seu atual amante; nenhuma novidade digna de manchetes sobre práticas ou fantasias. Em verdade, limitou-se a dizer algo parecido com “Isso não é da sua conta”.

Que impressionante, não? Como assim? Não vai nos relatar os detalhes excitantes de suas práticas eróticas? Não vai falar quantas vezes por semana “comparece”? Não vai falar dos dotes do seu parceiro? Não vai descrever suas fantasias proibidas?

É curioso como a sociedade contemporânea, em nome de uma pretensa liberdade de expressão, abriu mão do pudor – uma virtude que, no passado, era vista como a mais delicada de todas as qualidades femininas. Ou seja, para parecer moderno e “descolado” é preciso que não haja qualquer limite para sua vida privada. Hoje em dia vemos atrizes descrevendo detalhes da sua vida sexual com minúcias que caminham sobre a fina lâmina que separa estas descrições da mais pura escatologia. Também o empoderamento de algumas mulheres parece passar pela paixão pelos vibradores, e o seu uso – contra o qual nada tenho a dizer – passa a ser uma insígnia de liberdade e autonomia. E veja… sua utilização pouco me importa, mas me impressiona a necessidade de tratar algo privado e pessoal – existe algo mais pessoal que um “sex toy“? – como se fosse de domínio público.

Nos dias atuais, na “sociedade do espetáculo”, os casais se separam e imediatamente comparecem ao Instagram para explicar as razões para o desenlace, muitas vezes expondo questões íntimas, sem que haja qualquer necessidade. Moças revelam antigos amantes, expõem suas preferências na cama, contam sem qualquer vergonha detalhes que só a ambos deveriam importar. Homens contabilizam conquistas, gabando-se de suas práticas, expondo em seu discurso uma imensa superficialidade, .

A hiperexposição parece ser hoje o único caminho para fugir da tragédia de uma vida pacata, onde ser anônimo e simples é tão devastador quanto foi terrível a lepra na época de Cristo. Para fugir dos horrores de uma vida comum os sujeitos explicitam suas preferências sexuais em podcasts, escancaram suas fantasias íntimas em entrevistas, revelam travessuras de alcova do passado, expõem amores do passado, abrem os armários e desvelam sua orientação sexual – como se o simples fato de romper as barreiras da vida pessoal fosse algo revolucionário.

Quando me deparo com essa abertura absoluta, que embaça os limites da vida íntima, lembro do quanto de desejo se expressa pela curiosidade, pela procura de algo a ser descoberto, excitando a imaginação, desvendando tesouros no âmago da alma. A intimidade é fundada pelo mistério e, a partir deste lugar de não-saber, estimula-se a busca pelo segredo tão bem guardado. Retirados todos os véus, todas as máscaras, todas as roupagens e todos os enigmas, qual o sentido em empreender tamanho esforço na busca pela resposta?

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Youtubers

Filhos superstars no YouTube fazendo “unboxing” de brinquedos ou dancinhas da moda são cada dia mais frequentes, nutrindo os sonhos de crianças. Há pouco tempo nosso sonho era sermos jogadores de futebol e professoras e hoje isso pode até soar ridículo perto da ribalta luminosa da Internet. Talvez essa exposição seja tão danosa para o desenvolvimento psíquico infantil quanto drogas ou violência. O sucesso extemporâneo pode ser – e frequentemente é – muito mais destrutivo para as crianças do que a própria privação.

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Repressões

Shakespeare foi censurado em escolas públicas na Flórida, no governo conservador de DeSantis. Ok, a gente sabe o quanto é diminuta a visão de mundo dos conservadores gringos, em especial ligados ao evangelismo de mercado. Enquanto isso, aqui no sul global, a esquerda liberal quer queimar estátuas, desler Monteiro Lobato e não admite quaisquer críticas ao modelo de visão identitária. Lá, como aqui, direita e esquerda se unem na exaltação da “censura do bem”, uma ideologia que acredita que é melhor privar as pessoas de informações conflitantes do que expor as contradições sociais e mostrá-las à luz do dia. Estas ações têm o mesmo sentido que pedir a alguém que procure esquecer seus sofrimentos e traumas com a ilusão de que, longe da memória superficial, eles vão desaparecer. Freud já nos alertava que o que é reprimido se fortalece, e o crescimento do fascismo no mundo inteiro é um belo e exemplo do quanto o velhinho de Freiburg estava correto.

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Pin Up Girls

Saudade das borracharias raiz, em que você entrava numa espécie de “clube do bolinha” onde as paredes eram forradas de imagens de mulheres seminuas, voluptuosas, curvilíneas e apetitosas, retiradas de revistas de “moda lingerie”. Nada era abusivo ou explícito – as imagens hoje passariam na Sessão da Tarde na Globo – mas o que valia ali a exaltação da beleza feminina, cuja admiração reforçava aos olhos alheios nossa adesão ao universo masculino.

Creio que, ao pregar uma “pin up girl” nas paredes engraxadas da borracharia, o sujeito sentia um notável alívio. “Enquanto você estiver aqui, minha Santa, ninguém poderá duvidar de mim”. Penso até que estas imagens funcionam como um salvo conduto, um passaporte para a boa imagem social, o mesmo que os mais admiráveis torturadores usavam nos “anos de chumbo”, indo à Igreja com a família aos domingos para depois passar a semana arrancando unhas de esquerdistas.

Por outro lado sinto falta do tempo em que a admiração pela beleza feminina era aceita sem culpa, quando o desejo por elas não era motivo de vergonha ou visto como forma de diminuí-las. Entendo que muito dessa beleza era usada para calar qualquer outra virtude, mas criminalizar o olhar de desejo não me pareceu jamais uma boa solução. A admiração e atração pelos corpos femininos é, ao meu ver, a própria exaltação da vida e do mistério profundo através do qual ela se multiplica

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Epidemia

É importante dizer que a epidemia de falsas acusações que assola o mundo todo – de Amber Heard às assediadas de Taubaté passando pelo golpe no jogador Neymar e pela menina no clube chique da facistolândia – é um fenômeno primo irmão da cultura do cancelamento. A lógica utilizada pelas supostas vítimas é simples: “Vamos atacar sua fé pública, sua honra, destroçar a sua respeitabilidade. E vamos fazê-lo do jeito que a gente sabe que dura a vida toda. Vamos chamar nosso antigo amigo de abusador, o pai dos nossos filhos de estuprador, nosso chefe de assediador. Não é preciso provar nada, basta jogar o nome deles na lama que as redes sociais fazem o resto. Quem ousaria desconfiar das vítimas?”

Estes são apenas exemplos de casos famosos, mas vai saber o que acontece nas varas de família pelo mundo afora como estratégia de vingança e de destruição moral. Quantas vítimas existem no mundo que sofreram por acusações falsas, destruindo toda a sua credibilidade? Quantos inocentes foram jogados na fogueira com a mesma crueldade que se jogavam bruxas nas fogueiras da inquisição? Quantas mulheres realmente vitimadas por seus parceiros(as) agora têm suas versões questionadas por estes casos ruidosos de acusações mentirosas e oportunistas?

O drama dessas mentiras socialmente apoiadas por gente que supostamente defende a causa (mas na verdade apenas descarregam nestes casos seus dramas pessoais), é que o problema do assédio e do estupro REALMENTE existe e temos visto seu crescimento nos últimos anos de dominância fascista, o qual deve ser combatido com toda a seriedade pelos governos e pela mídia. Por certo que a pandemia e o “lockdown” realizado têm influência no aumento dos conflitos domésticos, assim como a agudização da situação econômica das famílias durante a recessão mundial do Covid. Porém, para além dessa situação existe uma agressividade maior por parte das organizações fascistas, que combatem de forma aberta qualquer avanço contra conquistas femininas.

Entretanto, a ação dos ativistas que dão suporte às mentiras usadas contra homens com o argumento sexista de que um gênero (e nunca o outro) “jamais mentiria” acaba trazendo um total descrédito às queixas legítimas que aparecem – e que, infelizmente, ainda vão aparecer por muito tempo. As propostas de novas leis punitivistas e a criação de novos tipos legais têm sempre resultados pífios ou nulos. Na realidade, nunca se discutem as razões profundas das mazelas sociais como o tráfico de drogas e a violência doméstica, porque não parece de bom tom colocar o dedo na ferida do sistema desigual e cruel que estrutura nossa sociedade. Neste contexto vai aparecer o trabalho nefasto de algumas organizações identitárias que, para ressaltar seu corporativismo de gênero, encampam acusações frívolas ou mentirosas que acabam destruindo pessoas muitas vezes inocentes.

Pessoas que mentem por vingança ou oportunismo merecem punição severa, talvez recebendo uma pena tão violenta quanto o pretenso crime que levianamente inventaram. Para acabar de vez com a violência doméstica é preciso encontrar onde o mal nasce e destruir sua semente, sem perder tempo e recursos com visões moralistas sobre homens “bons” e homens “maus”, uma perspectiva que na verdade apenas encobre a perversidade do capitalismo e da sociedade de classes.

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