Esta é a foto da minha formatura há 29 anos, na cidade de Porto Alegre. Tenho boas e más lembranças desta época, mas vejo que alguns dos meus colegas mantiveram um espírito crítico e uma visão positiva da profissão, apesar das agruras causadas pela “máquina de moer carne” da escola médica. Todavia, como se pode ver na imagem, não há nenhum negro representado na turma que posou para a foto na escadaria da velha escola médica. Aliás, durante os anos que frequentei a faculdade de Medicina conheci apenas um, que era sobrinho de um famoso político e que acabou também por seguir a carreira do tio. Nenhum outro negro, sequer mulato, compartilhava aquele espaço conosco. Claro, havia porteiros, serventes, auxiliares do biotério, faxineiras, e esses eram mais escurinhos. De resto todos brancos, claros, alvos e cristalinos. O que poderíamos entender do sofrimento de um negro?
Lembrei uma aula de quando eu estava no terceiro ano de medicina passando pela cadeira de semiologia. No ambulatório de clínica da universidade nos dividíamos para atender os prontuários que repousavam sobre a mesa. Nosso grupo ficou composto de 3 alunos, e a nós coube examinar um homem negro de meia idade, cujas queixas se perdem na névoa do tempo. Depois de feita uma anamnese, verificados os sinais vitais e colhida a história biopatográfica chamamos o professor para nos ajudar na continuação do atendimento. Nosso professor, já falecido há muitos anos, adentrou a sala e, ao notar que se tratava de um negro, disparou:
– Queridos alunos. Quando temos pacientes “pardos” temos que pensar em três diagnósticos principais: hipertensão, escabiose e gonorreia. Já perguntaram sobre isso?
O senhor jazia deitado na mesa de exame e se manteve imóvel. Àquela época, passados mais de 30 anos, esta atitude não teria a mesma repercussão que hoje, mas mesmo assim eu fiquei estático e chocado. Olhei para o paciente deitado à nossa frente coberto com uma bata branca e esperei sua reação, enquanto eu me cobria de “vergonha alheia”. Passados alguns instantes sua atitude acabou sendo a pior possível, a mais terrível, a mais violenta e a que, por isso mesmo, mais me marcou.
Não, ele não se levantou e golpeou o professor. Sequer dirigiu-lhe palavras de indignação. Não, ele não reclamou do rótulo de promíscuo ou sujo. Ele também não tentou aclarar a situação, explicando as reais razões pelas quais ele procurava o serviço de medicina interna do hospital da universidade. Não, ele não mandou o professor se calar.
Ele apenas baixou o olhar, olhou para mim e tristemente sorriu.
Em seu sorriso eu podia ler toda a resignação com sua condição de negro, a qual nenhum de nós poderia jamais entender. Ser tratado dessa forma em um serviço público – que deveria entendê-lo e ampará-lo, acolhê-lo e tratá-lo sem julgamentos – era apenas mais um capítulo em sua longa história de humilhações cotidianas.
– De que adiantaria me indignar, jovem? disse ele em pensamentos durante seu breve sorriso amargo. Por acaso eu seria entendido? Tens alguma esperança de que o velho professor poderia entender o que é a dor de ser a vida inteira considerado inferior, sujo e indolente? Achas mesmo, menino, que meu sofrimento poderia ser captado, processado e transformado em empatia por alguém que nunca entendeu o que é nascer com “a cor errada”, ou ter o “cabelo ruim”? De que adiantaria gritar, esbofetear, reclamar ou sair correndo? De nada, meu jovem, de nada. Para vocês deixo apenas meu sorriso dolorido e meu silêncio. Talvez algum de vocês possa um dia entender o que significa nascer pintado de preto num mundo que só aceita o branco.