Arquivo do mês: dezembro 2014

Negros

FMUFRGS 1985

Esta é a foto da minha formatura há 29 anos, na cidade de Porto Alegre. Tenho boas e más lembranças desta época, mas vejo que alguns dos meus colegas mantiveram um espírito crítico e uma visão positiva da profissão, apesar das agruras causadas pela “máquina de moer carne” da escola médica. Todavia, como se pode ver na imagem, não há nenhum negro representado na turma que posou para a foto na escadaria da velha escola médica. Aliás, durante os anos que frequentei a faculdade de Medicina conheci apenas um, que era sobrinho de um famoso político e que acabou também por seguir a carreira do tio. Nenhum outro negro, sequer mulato, compartilhava aquele espaço conosco. Claro, havia porteiros, serventes, auxiliares do biotério, faxineiras, e esses eram mais escurinhos. De resto todos brancos, claros, alvos e cristalinos. O que poderíamos entender do sofrimento de um negro?

Lembrei uma aula de quando eu estava no terceiro ano de medicina passando pela cadeira de semiologia. No ambulatório de clínica da universidade nos dividíamos para atender os prontuários que repousavam sobre a mesa. Nosso grupo ficou composto de 3 alunos, e a nós coube examinar um homem negro de meia idade, cujas queixas se perdem na névoa do tempo. Depois de feita uma anamnese, verificados os sinais vitais e colhida a história biopatográfica chamamos o professor para nos ajudar na continuação do atendimento. Nosso professor, já falecido há muitos anos, adentrou a sala e, ao notar que se tratava de um negro, disparou:

Queridos alunos. Quando temos pacientes “pardos” temos que pensar em três diagnósticos principais: hipertensão, escabiose e gonorreia. Já perguntaram sobre isso?

O senhor jazia deitado na mesa de exame e se manteve imóvel. Àquela época, passados mais de 30 anos, esta atitude não teria a mesma repercussão que hoje, mas mesmo assim eu fiquei estático e chocado. Olhei para o paciente deitado à nossa frente coberto com uma bata branca e esperei sua reação, enquanto eu me cobria de “vergonha alheia”. Passados alguns instantes sua atitude acabou sendo a pior possível, a mais terrível, a mais violenta e a que, por isso mesmo, mais me marcou.

Não, ele não se levantou e golpeou o professor. Sequer dirigiu-lhe palavras de indignação. Não, ele não reclamou do rótulo de promíscuo ou sujo. Ele também não tentou aclarar a situação, explicando as reais razões pelas quais ele procurava o serviço de medicina interna do hospital da universidade. Não, ele não mandou o professor se calar.

Ele apenas baixou o olhar, olhou para mim e tristemente sorriu.

Em seu sorriso eu podia ler toda a resignação com sua condição de negro, a qual nenhum de nós poderia jamais entender. Ser tratado dessa forma em um serviço público – que deveria entendê-lo e ampará-lo, acolhê-lo e tratá-lo sem julgamentos – era apenas mais um capítulo em sua longa história de humilhações cotidianas.

– De que adiantaria me indignar, jovem? disse ele em pensamentos durante seu breve sorriso amargo. Por acaso eu seria entendido? Tens alguma esperança de que o velho professor poderia entender o que é a dor de ser a vida inteira considerado inferior, sujo e indolente? Achas mesmo, menino, que meu sofrimento poderia ser captado, processado e transformado em empatia por alguém que nunca entendeu o que é nascer com “a cor errada”, ou ter o “cabelo ruim”? De que adiantaria gritar, esbofetear, reclamar ou sair correndo? De nada, meu jovem, de nada. Para vocês deixo apenas meu sorriso dolorido e meu silêncio. Talvez algum de vocês possa um dia entender o que significa nascer pintado de preto num mundo que só aceita o branco.

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Fotografia de Formatura

Formatura Medicina

É difícil que os médicos recém saídos das universidades consigam entender as reais necessidades da população que atendam, e por isso temos tantas dificuldades. Essas pessoas, os novos médicos, são de estratos sociais completamente diferentes daqueles a quem vão assistir e tratar. É complicado entender o sofrimento humano, principalmente as questões carenciais básicas, quando você tem uma casa, comida e afetos e não sabe o que é ter violência doméstica, falta de comida, crack, sujeira, tráfico, pobreza intensa e tantas outras mazelas contemporâneas.

Quando eu era residente escutei uma contratada dizer que achava que toda a ciência “psi” (da psicologia, passando pela psiquiatria até a psicanálise) era pura balela, pois que suas questões (sim, as dela…) eram todas resolvidas com um “banho de loja”, pois isso resolvia suas carências e conflitos. Não, ela não estava brincando; era verdade mesmo. Como ela poderia atender uma mulher em profundo sofrimento psíquico? Como ela poderia entender a dor de uma perda, de um remorso, de uma carência afetiva fundamental e trágica? Da mesma forma, como ela atenderia no posto de saúde uma mulher que não consultou antes porque não tinha dinheiro suficiente para pagar a passagem do ônibus? Será ela capaz de entender o que isso significa? Será ela capaz de entender a dor de ser negro em uma sociedade racista? Uma distância tão gigantesca entre perspectivas e visões de mundo pode ser superposta por boa vontade, empatia e uma visão “carinhosa” com os desvalidos? Ou seria fundamental que essas pessoas tivessem um mergulho nessas sub-culturas para que pudessem entender o que a saúde e os tratamentos significam para elas? Será possível esta visão em uma academia que prepara médicos (mormente especialistas) para dar atenção à burguesia através de tecnologias de ponta e tratamentos curativos terciários? Ou teremos que mudar radicalmente a abordagem à saúde e os sujeitos que a conduzem?

É inegável que existem médicos maravilhosos que conjugam valores técnicos com humanos, mas também é claro que a formação e o sistema abafam a real expressão desses valores. É difícil manter-se conectado a esses princípios diante de tantos estímulos em contrário. É quase impossível ser estudante universitário sem ser da classe média alta, principalmente em universidades públicas. As transformações estão acontecendo, mas uma REAL mudança demográfica nas universidades ainda levará uma geração para se consolidar.

A medicina e o direito, só para dar dois exemplos de cursos universitários clássicos, tradicionais e fáceis de entender, foram criados para servir uma burguesia que aos poucos se organizava. Estas instituições apenas a pouco começaram a ser oferecidas às classes populares. O direito, diferentemente da medicina, só há pouco tem “sistemas populares” de atendimento, como “pequenas causas” ou a defensoria pública. Meu pai me conta que só veio a conhecer um médico em sua vida com mais de 12 anos de idade, quando veio do interior para a capital. E “conhecer” é usado no sentido de “enxergar“, pois consultar com um desses profissionais era inviável há 70 anos.

Fazer essas profissões darem conta das necessidades do povo é um desafio cultural pois que, como eu disse anteriormente, os próprios atores sociais que as compõe não são – com raras e notáveis exceções – oriundos das classes mais baixas. Para se certificar disso basta olhar a história pessoal dos antigos médicos, os que hoje nomeiam enfermarias na Santa Casa, nomes de rua, professores catedráticos da universidade e ver de onde saíram: quase todos da burguesia abastada ou do latifúndio. Assim, democratizar a atenção oferecida por estas profissões – a saúde física da medicina e a saúde social do direito – é uma tarefa complexa e difícil, mas absolutamente necessária. Entretanto, para que ela atinja seus objetivos mais profundos, é fundamental que seus integrantes tenham pleno conhecimento da população que atendem, com seus dramas, valores, idiomas, tragédias e alegrias.

Para isso é necessário sentir na pele o que é ser como eles.

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Novelas e Cesarianas

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Na novela das oito (que não começa nesse horário há uns 20 anos) uma cesariana vai salvar uma vida (ou duas), mantendo no imaginário popular a falácia da segurança e da qualidade superior das intervenções sobre o parto.

Uma cultura se faz dessa forma. As novelas para o brasileiro são como os filmes e seriados para os americanos. O que se diz ali recebe uma marca de validação cultural, um “selo de verdade”, que será deglutido facilmente pelo telespectador. Sim, as verdades novelísticas não tem “osso nem casca”, portanto passam sem dificuldade pela garganta do consumidor. Uma lástima que isso ocorra exatamente agora, quando estão cada vez mais intensas as campanha governamentais a respeito dos perigos decorrentes da banalização da cesariana.

Quando eu vejo estas cenas logo me vem à memória o filme dos Monty Python de 1982 debochando da violência obstétrica – The Miracle of Birth – e percebo que há exatos 32 anos passados eles já percebiam o poder da mídia para – através do humor – estimular importantes transformações sociais. A Inglaterra pôde fazer sua grande virada na atenção obstétrica de agora porque há mais de três décadas plantou no coração de seus cidadãos a semente da indignação contra as práticas obstétricas agressivas, defasadas e que não levavam em consideração o desejo da mulher. Enquanto isso nós ainda mantemos o status-quo: um parto controlado por especialistas, mulheres sem autonomia e altas taxas de intervenção. Muito bom para os poderosos que controlam o nascimento, mas péssimo para mães e bebês, que continuam a pagar esta conta.

Mais uma vez a TV Globo atrapalha as conquistas da sociedade civil. Os que pensam na saúde das mulheres e seus bebês terão uma cota extra de mitos para desfazer.

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Violência Infantil

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Espancamento de crianças ainda é um FATO, e centenas de pessoas o aprovam. Acreditem, eu mesmo vi comentários sobre um clip que está rolando na Internet sobre uma mulher que bate no filho com um cinto e um policial dá um sermão na criança dizendo que ele mesmo faria isso se ele ousasse reclamar novamente. Os comentários abaixo desse clip são horrendos e absolutamente inaceitáveis. Todavia, eu acho que eles escondem uma outra realidade. Eu creio que a maioria das pessoas que escreve a FAVOR das chineladas sofreu este tipo de violência na infância. Ser a favor disso é uma forma de mostrar amor pelos seus pais, e tentar retirar de quem se gosta esta culpa. Isso acontece com as mulheres que protegem seus obstetras depois de uma cesariana claramente desnecessária.

Vi isso milhares de vezes na Internet nos últimos 15 anos escrevendo em redes sociais, de “list servers” a Facebook. Mulheres submetidas a cesarianas defendiam seus médicos até o último argumento, dizendo que ele era consciente, que cordão enrolado era perigoso, que ele não permite “passar da hora”, que ele a protegeu da dor excruciante, que ele agiu de boa fé, que ele apoia o parto mas não é fanático e assim por diante. A “queda” que se seguia para algumas era normalmente espetacular. O momento em que se percebe que, por mais que você tenha afeto pelo profissional, ele lhe enganou, é terrível, e demanda muita coragem. Nós protegemos os nossos seres amados mais importantes, os pais, da mesma maneira, e por isso negamos que as palmadas tenham deixado marcas.

Eu apanhei do meu pai por causa de travessuras, mas tenho certeza que ele não se orgulha disso. Provavelmente hoje ele diria: “Estávamos nos anos 60. Era o modelo. A gente batia para impedir que más condutas se mantivessem, e tínhamos boas intenções. Educar era assim. A gente era a favor da virgindade, contra o divórcio, contra maconha, e tudo isso está caindo hoje em dia. O mundo muda, os valores se modificam, e só podemos ser julgados em nosso próprio tempo.”

Eu prefiro acreditar que as virtudes de um homem são dele, os pecados são de sua época. O que era racismo no século XVIII é diferente do que é hoje, pelo menos do ponto de vista do julgamento social, mesmo que os atos sejam os mesmos. Muitas coisas que fazemos hoje serão consideradas crimes inaceitáveis no futuro. Você acharia justo ser chamado de “assassino” por comer hoje carne de outros animais, coisa que no século XXII será proscrita? Ou comer carne é do nosso tempo, e tal fato só pode ser julgado pelos valores de agora?

O que eu acho incorreto é que HOJE, depois de tanta informação a respeito dos padrões que se repetem, criança espancada —> adulto espancador, ainda haja MUITA gente que defende esse paradigma. Gente demais, eu diria. Uma coisa é você bater no seu filho em desespero – por não saber o que fazer e se sentir pressionado – e ENTENDER que não se deve fazer isso. “Mea culpa, mea máxima culpa“, porque também agi assim. Outra coisa é bater em crianças que estão crescendo, que cometem erros, que estão olhando para o valores do mundo e tentando aprender com cada experiência, e achar que sua violência está “educando”.

Pior mesmo é vangloriar-se disso e chamar a todos os outros de idiotas.

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Elvis

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Eu tinha 17 anos e estava no último ano da escola. Naquele época se chamava “ginásio”, o que corresponderia ao nível médio hoje. Cheguei às 8h e abri a porta da sala de aula, ainda esbaforido pelos dois lances de escada obrigatórios para chegar ao andar superior. Mas eu estava impactado com o que havia escutado no rádio de casa apenas alguns minutos antes. Quando a porta se abriu a professora ainda não havia chegado e os colegas estavam arrumando seus pertences sobre as mesas de fórmica verde. O quadro negro ao meu lado esquerdo continha nomes de pessoas, desenhos rudimentares e uma fórmula matemática. As janelas olhavam para o norte, e não havia sol pela manhã a ultrapassar o vidro.

As cortinas estavam escancaradas para melhorar a luminosidade e do outro lado da rua podia-se ver a casa do João, colega de aula que, exatamente por morar ao lado da escola, sempre chegava atrasado, e sua corrida era testemunhada por todos nós, entre gracejos e gargalhadas. Postei-me em frente à turma, sem que eles de mim se apercebessem. Não me preocupei com a indiferença de todos, pois dentro de alguns minutos eles olhariam em silêncio e estarrecidos para mim, após dizer-lhes o que eu havia de contar. Encarei os colegas, imaginando que o que eu estava para dizer modificaria a vida de todos, daquele momento em diante. A minha, em especial, recebeu uma grande lição.

Um último gole de ar a inflar meus pulmões e falei, com voz alta o suficiente para que os últimos da classe, com as costas coladas à parede, pudessem me ouvir.

Amigos, Elvis Presley morreu esta manhã em sua mansão nos Estados Unidos. Ele tinha 42 anos.

E foi assim. Curto e duro.

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Corrupção

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Minha posição se mantém inalterada: todas as visões moralistas sobre a corrupção no Brasil são ingênuas ou de má fé. A corrupção NÃO TEM bandeira e nem partido. Existe em TODAS as agremiações que desfrutam de algum tipo de poder. Advogados, médicos, partidos políticos, síndicos… ninguém está livre. Essa história infantil de dizer que o PT é corrupto, são os “petralhas” ou os “tucanalhas” do PSDB, ou que “todos os políticos são corruptos” é RIDÍCULA. Os corruptos SOMOS NÓS, cada um em sua esfera. A corrupção é um mal que nos atinge a todos, sem exceção, nas grandes e nas pequenas coisas.

Se existe algum diferencial hoje é que o PT está oferecendo todas as condições para a solução desta mazela social, permitindo que os corruptos sofram a ação da lei, sem perdão. O que nós vemos hoje, patrocinado pelo partido que está no governo, é uma transparência inédita na luta contra a corrupção nas empresas públicas e privadas. Os dirigentes das empreiteiras foram PRESOS, perceberam a diferença? Os corruptores também estão sofrendo a mão pesada da lei. Dilma tem razão em dizer que o caso da Petrobrás vai mudar o Brasil, e para melhor. A “coisa pública” – a “res pública” – será vista com mais responsabilidade no futuro, e com menos oportunismo. Infelizmente teremos que passar pela dor e pela humilhação de agir com rigor contra o atraso, mas é a via necessária.

Espero que estes casos se tornem emblemáticos e sirvam de exemplo para o combate à impunidade, aqui e no resto do mundo.

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Pororoca

Pororoca

Humanizar o nascimento é restituir protagonismo para as mulheres. Entender o nascimento como um evento social e humano, e não apenas médico. É reconhecer o nascimento como o evento apical da feminilidade, sobre o qual atuam forças sociais, emocionais, psicológicas, afetivas espirituais e – acima de tudo – numa configuração subjetiva, única e intransferível. Mais ainda: é ter uma visão interdisciplinar, com a devida consideração com os outros atores que fazem parte tanto da cena de parto quanto do debate sobre o significado dele na cultura. É respeitar as evidências científicas que norteiam e orientam o trabalho das equipes de assistência, as intervenções e o cuidado aplicado às mulheres durante este período tão criativo de suas vidas.

“Um parto é um mergulho para dentro de si, um encontro inexorável com as questões mais íntimas e subjetivas, nas águas revoltas e escuras do inconsciente. Todavia, é também um pulo no oceano de palavras que nos circundam, nos envolvem e nos dão significado. Ambos os mergulhos produzem suas revoluções, suas agitações e giros, mas do choque produzido por tais saltos emerge uma gigantesca onda, de cuja energia se produz a característica única e irreproduzível de cada nascimento.”

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Praia do Pinhal

Vó Vera

Minha sogra tinha casa no Pinhal, para onde ia todos os verões, carregando seus 7 filhos. Zeza era uma das 5 filhas. O filho mais velho, Carlos Fernando, faleceu um ano antes de eu começar a namorar com ela, num acidente que marcou muito nossa geração de amigos. Eu tinha 17 anos na época e íamos de “galere” para Pinhal nos feriadões e nas férias. Era muita zoeira. A casa ficava literalmente a 30 metros do mar. Um pequeno chalé de madeira, com dois quartos, que chegava a acomodar mais de 20 pessoas nos fins de semana. A regra era: mulheres nos quartos e nas camas, homens deitados em colchões improvisados no chão da sala.

Haja fossa séptica!!! Fim de tarde saíamos para caminhar na beira da praia e quando escurecia íamos ao “centro”, perto do “osso da baleia” para tomar sorvete de milho verde. Meus filhos ainda conseguiram pegar o final desse tempo mágico, mas o tempo já havia passado e a magia foi fenecendo. Pinhal é para mim uma maravilhosa lembrança de adolescência, mas para Zeza e seus irmãos é muito mais, pois toda a infância deles foi ali, na beira do mar.

Dona Vera, minha sogra era o centro de onde irradiava essa luz de congraçamento. Em torno dela gravitavam seus filhos e os “achegados”. Enquanto teve energia e desejo, foi o elo necessário para conectar a todos. Ela foi da última geração de donas de casa, dedicadas ao lar e à família, e ia para o Pinhal no fim de novembro (quando todos os filhos já haviam passado de ano) e voltava para Porto Alegre no fim de fevereiro.

Eram quase 3 meses de areia e sol. A vida deles cursou muito por lá. Pinhal é, portanto, o lugar mágico, idílico, onde é possível ser feliz. Se Freud está certo e a felicidade é reviver os momentos e as sensações de gozo da infância então para Zeza e seus irmãos o único lugar possível para essa alegria sublime é a praia do Pinhal….

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As diferenças

enfermeiras1

“Enquanto o parto humanizado for opção apenas para uma casta seleta, uma parcela da classe média que possui dinheiro e informação, nosso trabalho será incompleto e insuficiente. A humanização do nascimento não é uma moda, uma “onda” ou um capricho de mulheres burguesas. Parto com dignidade é direito fundamental, e faz parte das lutas pela democracia e pela liberdade. Nossa paixão pelo parto digno deve atingir a mulher do campo e da cidade, as ricas e as pobres, sem qualquer distinção. “Para mudar o mundo é preciso mudar a forma de nascer“, e isso precisa ocorrer em todos os níveis.”

Faz parte do processo de transformação em curso os desafios que encontramos agora na atenção oferecida por enfermeiras durante o parto. Mulheres imitaram os homens no raiar do feminismo, achando que elas também podiam usufruir do poder e da glória que o falo inspira. Eu curti o tempo do “unissex”, que nada mais era do que mulheres imitando homens, inclusive – e principalmente – nos seus defeitos. Levou tempo para as mulheres perceberem a verdade na frase que pendurei há muitos anos na parede do meu consultório: “Uma mulher que pretende imitar os homens carece de imaginação“.

Agora as mulheres percebem que, SIM, são diferentes e celebram esta diferença com a valorização de seus corpos sinuosos, suas gestações e mamas que produzem leite. Com as parteiras – as profissionais, mas também as tradicionais – ocorreu o mesmo. Pareceu por um bom tempo que imitar a ilusória superioridade tecnológica dos médicos lhes garantiria maior reconhecimento profissional. Enluvaram-se, enrouparam-se de verde, cobriram o rosto com a mascara do anonimato, usaram o aço que corta e a gaze que seca. Chamaram as mulheres de “maezinhas” e “minha filha“, olhando-as de cima a baixo para mostrar, afinal, quem é que manda.

Só agora as enfermeiras obstetras e obstetrizes percebem que não são “doutoras castradas”, mas profissionais cujo maior diferencial é a especial conexão afetiva e espiritual que protagonizam junto às mulheres. Dessa diferença é que surgirá a parteria do século XXI, que vai aliar conhecimento formal e científico com a ancestral capacidade de cuidar que receberam da linhagem de parteiras que se perde na poeira do tempo.

Quem viver, verá…

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Feministas Radicais

Latuf Feminazi

Bem… A charge do Latuff sobre as “radfems” é politicamente incorreta. Equivocada mesmo. Eu gosto do ativismo político do Latuff, em especial no que se refere à Palestina. Minha tese sobre o feminismo se mantém, e a crítica ao Latuff só a reforça: as mulheres são vítimas de uma sociedade onde o machismo ainda é brutal, mortal e cruel. Mesmo uma mulher que nunca sofreu na carne essa brutalidade já a sofreu no espírito. Temos uma sociedade marcada pela desigualdade e pelo arbítrio. A sofisticação da justiça e da democracia passa, inexoravelmente, pela “libertação” das mulheres. Assim, por reconhecer estas realidades, qualquer crítica ao grupo que é historicamente oprimido, mesmo quando sensata ou verdadeira, pode receber a marca da insensibilidade ou parecer um conluio com os opressores. Seria absurdo imaginar que muitas radicais feministas não cometem erros ou que não possuem ódios, rancores e feridas mal cicatrizadas. O mesmo com negros, nordestinos, homossexuais. Se estes sentimentos passam ao ato, e criam violência, deveriam ser criticados. Entretanto, a charge do Latuff extrapola e generaliza. O que seria uma parcela minoritária vira a imagem iconográfica de um grupo que prega a igualdade. Fez bem em se retratar. Ficou legal para ele e acho que as feministas radicais acabaram contempladas em suas justas reivindicações. Os sujeitos erram, mas reconsiderar é muito bonito.

Latuf Feminazi Retratação

Durante este período percorri os debates sobre o professor famoso aquele e sua conduta com as fãs e acabei descobrindo, um pouco espantado, a extrema diversidade do movimento feminista. Algumas dissidências internas parecem brigas de torcida organizada de futebol. Tem muito rancor, mágoa, visões díspares, mas nada além do normal para movimentos nascentes (um movimento é “nascente” se tiver menos de um século, no meu critério pessoal). O meu espanto maior foi meu desconhecimento da extrema diversidade entre tais grupos e os jargões que elas usam. Radfems, transfems, cis, queer, mascus, etc. me mostram a ignorância que tinha/tenho sobre isso. Outro ponto é a divergência, que por vezes se manifesta por repúdio explícito, à presença de homens, chamados de “feministos“. Continuo achando que, mesmo apoiando estes movimentos e os amplos direitos de igualdade pretendidos pelas mulheres, não me identifico com o discurso de várias correntes. Todavia, sigo firme no apoio às liberdades femininas de expressão de sua sexualidade, em especial no parto, que é parte da “vida sexual de toda mulher”.

Nos debates sobre o suposto machismo do famoso professor sobravam acusações de todos os lados entre as várias vertentes feministas. “Transfóbica” era um dos mais comuns. É curioso como elas chamavam os homossexuais masculinos de “viados” com o mesmo “tom” pejorativo que os heterossexuais usam. Mas, longe de mim querer rotular e achar que “isso aí é o feminismo”. Isso é tão tolo como ver uma prostituta e dizer “isso é o capitalismo” ou ver um homem-bomba e chamar de “islamismo”. Não, este movimento é rico exatamente por ser multifacetado e plural. Mesmo me assustando com a violência de alguns grupos é inegável a urgência e a propriedade das reivindicações.

Um exemplo famoso: nos anos 90, nos Estados Unidos, um marido violento, mulherengo e alcoolista chega em casa bêbado e tenta fazer sexo com sua mulher – uma imigrante da América Central – que o rechaça. Ele deita para dormir e a mulher, amargurada e humilhada, resolve se vingar amputando seu pênis com golpes de facão. Lembro que na época eu dizia que uma brutalidade como a que ela cometeu não se justificaria, mesmo que fosse possível entender suas razões. Mas qualquer crítica à ação de uma mulher duplamente oprimida, por ser mulher e imigrante, passava a ideia de que aceitávamos as OUTRAS violências que ela sofria, a do marido e a da sociedade preconceituosa onde estava inserida, estas crônicas e insidiosas.

Era complexo, e por vezes inútil, debater com as vítimas, ou seja, todas as mulheres que se identificavam com o sofrimento e humilhação da imigrante.

No caso do negro acorrentado a um poste via-se o mesmo. As vítimas somos todos nós, reféns de uma sociedade desigual e onde o crime é impune. Qualquer um que defendesse o jovem negro, criticando a indignidade cometida contra um ser humano, recebia uma saraivada de críticas ferozes dos justiceiros, e as mais brandas eram “então leva pra casa”.

Tentar criar uma terceira via, onde NENHUMA violência seria aceitável, sempre recebe críticas daqueles que por anos (ou séculos) sofrem nas mãos dos opressores. Mas eu acredito que esta é a única solução duradoura.

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