Arquivo do mês: julho 2013

Chute na Santa

Abuso Vadias
Respeitar os valores alheios, mesmo aqueles que nada significam para nós, é sinal de sabedoria e civilidade.

Durante a recente Marcha das Vadias alguns manifestantes realizaram performances inusitadas e “bizarras”, para dizer o mínimo, nas quais utilizaram símbolos religiosos cristãos como peça íntima de vestuário e para simulação de atos sexuais. Tais atitudes acabaram gerando uma onda de protestos por parte dos integrantes de denominações cristãs, principalmente evangélicos e católicos. Essas exposições de objetos religiosos e práticas libidinosas merecem algumas considerações.

As manifestações públicas, mesmo aquelas de caráter reivindicatório justo e adequado (como a Marcha das Vadias, em que as manifestantes exigem mais respeito e consideração com as mulheres e o feminino em um mundo ainda controlado por uma ideologia machista e falocêntrica), são um prato cheio para o atos de exibicionismo, atitudes histéricas e até mesmo a perversidade explícita. Para além dos pedidos e das queixas (como eu disse, justas e coerentes), alguns dos manifestantes (normalmente aqueles que menos se interessam pela questão em disputa) usam o público, a plateia sequiosa de escândalos e o clima de exacerbada emoção para todo o tipo de baixaria, abuso e exagero. Com isso suas ações acabam atraindo atenções e comentários, bem mais do que os “15 minutos de fama” regulamentares apregoados pelo visionário Andy Warhol.

Todavia, o resultado é invariavelmente negativo e contraproducente pois tais atitudes acabam por corromper a iniciativa, desviando a atenção dos valores em debate e distorcendo o foco das ações. Quando tais exageros são permitidos (e as vezes até estimulados) a própria luta pelos direitos em questão enfraquece. Ninguém estará interessado em apoiar um movimento que luta por respeito com as armas do abuso, do escândalo despropositado e do deboche.

Por outro lado não há como negar: tais ações são absolutamente inevitáveis. São humanas, e não podemos fugir dessa condição. Estes sujeitos são as pedras pelas quais os rios da mudança precisam desviar para que possam atingir seus objetivos. A pior parte da história é que esse tipo de manifestação grotesca, violenta, estúpida e injustificável diminui a força de qualquer movimento e oferece armamento para os inimigos. Se o objetivo era mostrar o valor de um país laico, de uma sociedade livre, de um estado que respeita as diferenças (entre elas as de gênero) o tiro saiu (desculpem o trocadilho) pela cu-latra dos manifestantes. Fica difícil admirar um movimento em que tais ações são consideradas válidas.

Não sou religioso e nem sigo religião alguma, mas acho importante ter respeito pelas crenças alheias, mesmo aquelas que para muitos de nós possam parecer tolas. O “chute na santa” é um bom exemplo. Este fato ocorreu em 1995 quando um pastor evangélico de nome Hélder desferiu vários chutes em uma imagem de Nossa Senhora em um programa da TV Record, em rede nacional. Foi o suficiente para que se gerasse um debate ácido entre evangélicos e católicos, ambos empenhamos em uma árdua disputa de mercado que perdura até os dias de hoje. A recente visita do Papa é apenas mais um capítulo deste embate pela conquista dos fiéis.

O que é interessante é que a “santa chutada” era realmente aquilo que o pastor dizia: um objeto de barro, banal, simples e sem valor intrínseco. Entretanto, o valor de um objeto qualquer (uma bandeira nacional, um crucifixo, a camiseta do clube, o brasão da família, uma imagem de um santo) estará sempre naquilo que o sujeito ou a sociedade emprestam ao tal objeto, e não no valor da matéria nele contida. Uma nota de 100 reais também é tão somente papel, mas ela é investida de um valor simbólico respeitado por todos nós, o que nos possibilita viver em uma sociedade complexa e capitalista. Os símbolos cumprem esta função nas sociedades humanas: eles incorporam valores, que para alguns são valiosos e plenos de significado transcendental.

Por esta razão – por não entenderem ou respeitarem estes valores – é que os tais manifestantes escancararam a face mais incoerente e inaceitável dos movimentos reivindicatórios: a grotesca falta de respeito por parte de quem exige respeito. Para avançar é preciso sempre entender o outro, no exercício mais complexo e difícil que o ser humano precisa encarar: transpor os limites da própria epiderme e sentir o calor do fogo e o gelo do vento com a pele de outrem. A alteridade é ferramenta indispensável para qualquer processo de transformação, e jamais poderemos prescindir dela para a necessária mudança que tanto exigimos.

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União e Luta

Zeza Parteira
Protegendo e respeitando o momento sagrado do nascimento

Hoje fomos assistir “Iron and Wine”, no Teatro Paramount, na esquina da sexta com Congress Avenue, em Austin. A apresentação principal foi de um compositor e cantor local bastante conhecido chamado Sam Beam. Eu adorei a apresentação. O estilo é “folk music”, mas de uma forma que se afasta um pouco da música “western” e se aproxima da “world music”. Lembra, é claro, James Taylor, e talvez por isso o meu coração brega e romântico não pôde deixar de gostar.

Mas não foi essa a questão que me fez relatar o acontecido. Esse show acontece todos os anos em Austin no verão, e serve como uma fonte de arrecadação para a MANA – Midwives Alliance of North America (Aliança das Parteiras Norte Americanas). Os ingressos vendidos vão para os cofres desta instituição que conta com milhares de parteiras espalhadas por México, Canadá e Estados Unidos. Fiquei muito feliz de ver Deja, a filha de Robin Lim (parteira em Bali – Indonésia, que recentemente ganhou o prêmio da CNN “Heroína do Ano” entre as mulheres), apresentar o show de Sam, acompanhada de – nada menos que – Robbie Davis-Floyd. Robbie estava nervosa e excitada com o convite, mas saiu-se muito bem. Foi direta, concisa, simpática e trouxe novas estatísticas sobre os 40 mil partos catalogados por MANA nos últimos anos. Apesar da taxa de cesarianas ter aumentado quase 1% (passou de 4 para 5%) a taxa de transferências diminuiu de 12 para 10%. Os valores mostram de uma forma inequívoca que as CPMs – Certified Professional Midwives (Parteiras de entrada direta, tal como as obstetrizes brasileiras) apresentam um trabalho exemplar e digno de aplausos. No fim de sua breve exposição, Robbie pediu que todas as parteiras na plateia se levantassem e fossem aplaudidas (entre elas uma tímida Zeza) para receberem a justa homenagem de todos os presentes ao show. Estava verdadeiramente muito emocionante. Foi uma bela homenagem às parteiras americanas. Uma pena que ainda não chegamos a este momento. O que mais me emocionou no depoimento de Deja, filha de Robin Lim, é a ideia de que as parteiras são as guardiãs de um segredo, de um momento sagrado, que a tecnocracia (e NÃO a tecnologia) está afastando das mulheres, empobrecendo nossa experiência humana. O trabalho das parteiras é a de proteger as mulheres e seus partos, enaltecendo suas virtudes, garantindo-lhes segurança e honrando seus corpos.

A esposa de Sam Beam teve seus filhos em casa e, por esta razão, eles se tornaram grandes apoiadores da causa. Esta é uma história que nós, humanistas do nascimento, conhecemos muito bem: Depois de nascimentos transformadores os novos pais percebem que precisam dar a sua contribuição para que outros possam ter a mesma experiência positiva que tiveram. Mary Barnett, parteira local, atendeu estes partos, e muitos outros entre as famílias que deixaram o Paramount lotado nesta noite de sábado, e por esta razão recebeu uma ovação emocionada de Sam e de muitos na plateia. Fiquei feliz de ter encontrado nesta viagem duas amigas que são símbolos da atuação da parteria livre nos Estados Unidos: Mary Barnett e Marymikel.

Mas o que me deixa preocupado é o fato que ainda não conseguimos reproduzir no Brasil instituições como a MANA. A ABENFO é a instituição mais parecida com a MANA que temos, mas com muito menos poder e influência. Por outro lado, Max me dizia, há mais de duas décadas, que “as ideias devem ser mais importantes que os ideólogos”. Portanto, mais do que fortalecer egos e pessoas, precisamos incentivar o fortalecimento das instituições que lutam pela humanização do nascimento no Brasil. Passamos por uma fase de grandes lutas e dificuldades na consolidação de um ideário de projetos e lutas pela implantação de nossas propostas, e só agora começamos – muito lentamente – a colher os primeiros frutos. A ReHuNa continua sendo o grande carro chefe em nível político e estratégico, mas ainda somos muito desunidos e “feudais”. Nossos grupos, tal como as organizações feudais japonesas lideradas pelos Daimyos, conquistam valor e importância local, mas ainda carecemos de grandes lideranças nacionais, alicerçadas em estruturas e instituições sólidas, que sobrevivam e se sobreponham as personalidades que, momentaneamente, as liderem. A desunião nas propostas atrasa a execução de nossos projetos.

Precisamos de uma organização nacional de doulas, como uma rede, que possa ter uma representação em nível governamental, além de oferecer suporte científico e organizacional, a exemplo do que ocorre com a DONA aqui nos Estados Unidos. Precisamos uma instituição de “parteiras profissionais” (nome que Robbie usa para diferenciá-las das parteiras tradicionais, que já tem seus instrumentos específicos de representação), forte, atuante, arrojada e corajosa, para fortalecer a expressão cultural e científica da parteria urbana. Estas instituições precisam ser criadas e/ou fortalecidas, para que nossos sonhos se tornem realidade.

Precisamos nos unir pois ainda somos poucos e esparsos, e o poder dos que preferem que as coisas fiquem como estão ainda é mais forte do que a nossa vontade de mudar.

Mas não para sempre.

Aqui fica, como presente, um pouco da música de Iron & Wine:

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Entrevista Diario La Capital

Rosário - Argentina, dia 20 de agosto 2013
Rosário – Argentina, dia 20 de agosto 2013

1. Em primeiro lugar, o que consideras como humanização do nascimento? Que características consideras fundamentais para caracterizar um parto como humanizado?

O termo correto para este movimento é “humanização”. Todo o parto será “humano” desde que ocorra na nossa espécie. Por outro lado, para ser “humanizado” ele precisa seguir algumas características essenciais. Entendemos o parto humanizado composto por um tripé conceitual como o que se segue:

a) O protagonismo restituído à mulher, sem o qual estaremos apenas “sofisticando a tutela” imposta milenarmente pelo patriarcado.

b) Uma visão integrativa e interdisciplinar do parto, retirando deste o caráter de “processo biológico”, e alçando-o ao patamar de “evento humano”, onde os aspectos emocionais, fisiológicos, sociais, culturais e espirituais são igualmente valorizados, e suas específicas necessidades atendidas.

c) Uma vinculação visceral com a Medicina Baseada em Evidências, deixando claro que o movimento de “Humanização do Nascimento”, que hoje em dia se espalha pelo mundo inteiro, funciona sob o “Império da Razão”, e não é movido por crenças religiosas, ideias místicas ou pressupostos fantasiosos.

“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro”.

Humanizar o nascimento é oferecer o melhor de dois mundos: o respeito à fisiologia feminina, processo adaptativo de milhares de anos, e o recurso tecnológico quando a rota de um parto se afastar da normalidade e se aproximar da patologia. A humanização do nascimento está ao lado dos avanços científicos, mas também em sintonia com a natureza e seus sábios desígnios. A harmonia entre essas forças é o objetivo de quem atende partos de forma humanizada.

Se o preceito primeiro é o respeito ao protagonismo, então os partos mais humanizados serão aqueles em que tal aspecto for respeitado e entendido como prioritário. Os países europeus se encontram à frente deste debate, exatamente porque as conquistas na área democrática fizeram com que o mesmo entendimento de “direitos de cidadania” se aplica às gestantes. Para elas são oferecidas várias modalidades de atendimento, e a escolha de qual modelo a seguir dependerá de seus desejos e expectativas. Para além do protagonismo, as intervenções precisam ser baseadas em evidências, e isso já se vê em muitos países da Europa que aboliram a episiotomia de rotina, as tricotomias, enemas, kristelleres e tantas outras condutas sabidamente equivocadas. A presença de um grande número de países na Europa que adotam modelos mais humanizados de atenção ao parto corre ao lado dos esforços destes mesmos países de democratizarem todos os aspectos da vida social. Como diria a professora Robbie Davis-Floyd, “a humanização do nascimento não se desenvolve num vácuo social, mas faz parte de um modelo social mais amplo”.

2.  Qual sua visão acerca da atual situação da humanização do nascimento no Brasil e na Argentina?

A situação na Argentina é semelhante àquela que encontramos no Brasil. O modelo de atenção que existe nos países da América do Sul é importado dos “irmãos do norte”, os Estados Unidos, e por esta razão temos uma tendência a entender o parto como um evento médico altamente especializado, com uso intenso de tecnologia e uma dificuldade de entender os aspectos sociais do mesmo. A demanda por partos humanizados em toda a América está centrada na dificuldade do sistema médico ocidental de reconhecer e trabalhar com as necessidades afetivas, psicológicas, emocionais e espirituais que cercam o nascimento humano e que são a base de sua atenção desde tempos imemoriais. O resultado desta falha se demonstra na altíssima incidência de cesarianas, nas intervenções exageradas, no uso abusivo de medicamentos, na manipulação inadequada e na insatisfação crescente das mulheres com seus partos. No Brasil, Chile, Uruguai e na Argentina as cesarianas estão acima de qualquer consideração, extrapolando em muito os valores preconizados pela OMS, sem que tal investimento em intervenção resulte em melhores taxas de mortalidade materna e perinatal. Por outro lado, um número cada vez maior de ativistas destes países une suas vozes contra o que consideram “violência obstétrica”, e este movimento – de característica popular, pois as lideranças são de usuárias do sistema de saúde – vai acabar por mudar a face da assistência na América Latina.

3.  Quais são as condutas que mais frequentemente nos afastam do parto humanizado e, nesse sentido, quais aspectos poderíamos corrigir ou melhorar?

A alta incidência de cesarianas é a mais evidente, é claro. O Brasil ultrapassou no ano de 2011 o limite dos 50%, acendendo a “luz vermelha” do intervencionismo. Já contamos mais de 52% de cesarianas no país inteiro, entre nascimentos em hospitais públicos e privados. Os partos nos hospitais privados a situação é ainda mais grave: a classe média brasileira tem incidência de mais de 85% de cesarianas. Entretanto, o abuso inequívoco desta cirurgia não é o único problema. Como falamos anteriormente, o pilar central da assistência humanizada é a restituição do protagonismo à mulher, e o impedimento da presença de acompanhantes é uma falha GRAVE do modelo, pois impede exatamente a essência da assistência, qual seja, o suporte emocional à grávida. O Brasil tem leis que garantem o direito ao acompanhante, mas infelizmente ela ainda não é plenamente cumprida por hospitais públicos e/ou privados.

Também é digna de nota a utilização exagerada de medicamentos durante o parto, artificializando o processo (geralmente na tentativa de apressar o parto) e incluindo riscos ao nascimento. O uso de episiotomias, manobras de Kristeller (pressão no fundo uterino), raspagem de pelos, enemas e outras manobras inúteis e perigosas precisam ser questionadas para melhorar a atenção ao parto nos países ao sul da América.

4.  O que aconselhas aos obstetras, enfermeiras e obstetrizes para que não alterem o processo natural do parto e para que ofereçam um adequado suporte às gestantes?

O principal conselho é escutar as mulheres, respeitar a fisiologia do nascimento, entender as múltiplas disciplinas que se envolvem com este evento, conhecer a história do nascimento humano e dedicar-se a utilizar as práticas recomendadas pela medicina baseada em evidência. Qualquer profissional que seguir estas regras simples poderá se considerar “humanizado”. Para tanto é preciso entender que a principal ação de um obstetra é “vitrificar-se”, fazer-se vítreo, de vidro. Apagar sua natural propensão à intervir e permitir que a mulher seja a “estrela” do processo, sendo a protagonista do evento. Com isso poderemos fazer do parto um processo de profundo empoderamento desta mulher/mãe que acaba de passar por um fantástico rito de passagem, com claras e positivas repercussões na difícil tarefa que se segue: a maternidade.

5.  Acreditas que a medicalização nos levou a descuidar dos aspectos naturais do nascimento e das necessidades de mães e recém-nascidos?

Certamente que o ingresso do conhecimento científico na atenção ao parto produziu um reforço nas questões médicas e na intervenção nos mecanismos do parto, com o objetivo de auxiliar mães e bebês que, sem estes recursos, teriam um péssimo desfecho da gestação e parto. Assim, a intervenção em si não é ruim, nem prejudicial. Não existe qualquer antagonismo entre uso de tecnologia e humanização do nascimento. Entretanto, a “desnaturalização” do parto acabou ocorrendo pela visão coisificante da mulher, sua objetualização e sua parcial “exclusão” das decisões a respeito do parto, e isso teve consequências negativas para ela e o seu bebê. Os movimentos de humanização vieram exatamente para propor um novo equilíbrio entre cultura e natureza. A humanização do nascimento vem propor a síntese das teses antagônicas que vigoram na atenção ao parto. Não apoiamos a desassistência e nem a exagerada manipulação e intervenção sobre a mulher, seu corpo, suas emoções e seu bebê. Todavia, reconhecemos a importância da ciência e das intervenções técnicas salvadoras, mas acreditamos que elas só devem ser utilizadas quando seus riscos forem menores do que o respeito pela fisiologia do parto. Assim, podemos ter o melhor de dois mundos: a qualidade que a ciência nos oferece nos casos patológicos, e o respeito à natureza que a fisiologia do parto nos ensina, quando conhecemos e respeitamos o fluxo natural das forças do nascimento.

6.  Na Argentina nos últimos anos se nota uma tendência a humanizar o parto. Que conselhos nos daria para seguir avançando neste caminho?

Apostem nas mulheres. As mulheres serão as grandes e únicas revolucionárias. Os profissionais de saúde, sejam eles os médicos, parteiras, enfermeiras, doulas, psicólogas e outros, apenas seguirão o que as mulheres decidirem. Toda a violência institucional contra as mulheres acabará como por encanto no dia em que as mulheres decidirem que é preciso dar um BASTA. As cesarianas em excesso, os confinamentos hospitalares, a solidão, a objetualização e todas as ações contrárias à dignidade das mulheres também vai acabar quando elas assim decidirem. A forma de mudar este panorama é através da conscientização, da informação e da organização. No Brasil existem centenas de grupos de apoio às gestantes, e um pequeno exército de mulheres que se empoderam através de cursos, encontros, grupos de mães e de mulheres. Creio que na Argentina estas “voluntárias” estejam também surgindo. O foco, em minha opinião, será sempre aquelas que mais se beneficiam das mudanças: as mulheres. Isso não significa que devemos deixar os cuidadores de lado, mas estes terão um estímulo especial de modificar sua atitude e suas práticas quando as mulheres bem informadas começarem a pressionar por uma troca de modelo.

7. Quais temas pretendes desenvolver na jornada que darás em Rosário na Jornada de Introdução à Humanização do Nascimento, no dia 20 de agosto de 2013? Quais os objetivos deste encontro?

Vou desenvolver quatro temas fundamentais e mais um tema extra, se for possível e houver tempo.

a) Antropologia do Nascimento: Uma viagem de 5 milhões de anos na história do nascimento humano e os seis grandes desafios que tivemos que vencer para chegar onde estamos. Uma aventura audiovisual pelas espécies que nos antecederam e os grandes saltos adaptativos para a adequação do parto da espécie mais delicada e sofisticada do planeta: o ser humano.

b) Humanização do Nascimento e Equipe Interdisciplinar: O trabalho de equipes interdisciplinares compostas de médicos, enfermeiras obstetras e doulas na atenção ao parto, para oportunizar uma abordagem completa do nascimento, incluindo seus aspectos técnicos, psicológicos e sociais. Um mergulho na fisiologia do parto e sua expressão hormonal, mostrando as variações de ocitocina, prolactina, progesterona, estrogênio, endorfina e adrenalina. Um olhar sobre as reais necessidades de privacidade e cuidado que todas as fêmeas compartilham.

c) Obstetrícia e Ciência: A importância do olhar científico sobre as ações médicas, em especial aquelas do parto humano, mostrando a mitologia e os rituais que compõe a assistência ao parto no mundo ocidental. Mitos, crenças e razão: da dança desses elementos claramente humanos emerge a realidade do parto.

d) Obstetrícia e Medicina Baseada em Evidências: Uma explanação sobre a grande revolução médica do final do século XX, a Medicina Baseada em Evidências, e sua repercussão na obstetrícia contemporânea. Esta nova atitude frente aos procedimentos no parto abriu as portas para a ciência, afastou as mitologias indesejáveis e clareou os procedimentos rotineiros, mostrando quais poderiam permanecer e quais deveriam ser evitados na atenção ao nascimento. Apesar de sua característica revolucionária, muitos profissionais tem dificuldade de adotar a nova metodologia e as novas práticas em benefício das mulheres. Este seminário vai poder oferecer respostas para tal resistência.

e) Entre as Orelhas – O nascimento na perspectiva do Sujeito (aula extra): Após as conquistas de grandes avanços no pensamento sobre o parto, a descoberta dos hormônios responsáveis pelas várias fases do processo e os mestres de tempos passados que mostraram a importância de oferecer calma, tranquilidade, privacidade, suporte e cuidados técnicos, qual será o modelo de atenção do século XXI? Será que teremos “o fim da história”, e nada mais temos a acrescentar na visão do nascimento. Este seminário oportuniza uma reflexão sobre o modelo de atendimento baseado no sujeito, e os caminhos que ainda temos a percorrer para chegar a este ponto.

O objetivo desse seminário é oferecer uma visão o mais abrangente possível do cenário do nascimento: passado, presente e futuro. Tem como foco o parto humanizado, sua origem, suas propostas e seu caminho. Sabemos que as mulheres do século XXI estarão cada vez mais conscientes e informadas quanto aos seus direitos e capacidades. Caberá a nós, profissionais de saúde que atendemos este evento, oferecer a elas o que a ciência nos mostra como seguro e o que a ética nos garante como atendimento digno e respeitoso.

Tenho apresentado este seminário em muitas cidades brasileiras e posso ver que aos poucos existe uma consciência crescente sobre a “nova ordem” da assistência ao parto. Minha experiência no Uruguai, com um seminário maior (de 40 horas) foi igualmente gratificante e estimulante. Estou com grandes esperanças de que a Argentina será mais um local fértil para o pensamento renovador sobre o parto, a mulher o bebê e a família. Para dizer uma frase conhecida de Michel Odent, “Para mudar o mundo é preciso mudar a forma de nascer”. Eu acrescento que, para mudar a forma de nascer é também necessário que nós, que estamos ao lado deste milagre todos os dias, mudemos nossa atitude em direção a um respeito maior e um cuidado mais doce com as mulheres e seus bebês, para que desses nascimentos renovados surja uma nova humanidade, onde a fraternidade, a igualdade e a justiça prevaleçam.

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Sobre as Parterias

PARTEIRA DA ETNIA TUKANO

Não se pode confundir a preservação dos saberes tradicionais, que precisam ser preservados com a NECESSÁRIA inserção formal das parteiras nas sociedades complexas. Esse processo de reconhecimento, controle e avaliação profissional acontece em TODAS as áreas, não só na medicina. Não existe mais necessidade para algo que eu via na minha infância (e que é até personagem de Dias Gomes) o chamado “prático licenciado”.

Ora, o que vem a ser o tal “prático licenciado”?

Era o sujeito que dominava uma prática qualquer, como por exemplo, alguns  dentistas até o início do século XX. Sempre existiram pessoas que arrancavam dentes na comunidade, faziam pequenos reparos, ajudavam nas dores excruciantes e que foram sofisticando as suas práticas, até serem conhecidos como “dentistas”. É notório que a alcunha de “Tiradentes”, recebida pelo personagem histórico e alferes José Joaquim, lhe foi oferecida porque trabalhava como um “dentista sem diploma”.

“Não fez estudos regulares e ficou sob a tutela de seu tio e padrinho Sebastião Ferreira Leitão, que era cirurgião dentista. Trabalhou como mascate e minerador, tornou-se sócio de uma botica de assistência à pobreza na ponte do Rosário, em Vila Rica, e se dedicou também às práticas farmacêuticas e ao exercício da profissão de dentista, o que lhe valeu o apelido (alcunha) de Tiradentes.” (Wikipedia)

O que são as parteiras tradicionais se não “práticas licenciadas”? São aquelas remanescentes de uma época em que não havia estudo formal ou quando este aprimoramento era tão distante das comunidades que alguns integrantes desta se prestavam a fazer trabalhos indispensáveis nestas áreas. Havia engenheiros, contadores, médicos, dentistas, causídicos, farmacêuticos, todos eles “populares”, sem formação acadêmica (e as vezes sem formação escolar, pois muitos eram analfabetos). Com a popularização dos cursos superiores, principalmente na segunda metade do século XX, muitos profissionais universitários entraram no mercado e houve a necessidade de regulamentar a prática destes.

Afinal, quem poderia ser dizer engenheiro, médico, advogado ou dentista?

Uma forma de organizar tal demanda foi através do DIPLOMA de uma universidade, que garantia que aquele sujeito havia cursado adequadamente as disciplinas fundamentais para a prática de uma profissão. Entretanto, um contingente enorme de trabalhadores desta área, sem diplomação alguma, ficaram considerados “fora da lei”, em função de uma regra imposta pelos egressos da universidade. Para solucionar esta injustiça com aqueles que já se encontravam há décadas no mercado foram criadas normas que garantiam o trabalho para os antigos profissionais sem diploma, que aprenderam com a prática diária, longe dos bancos universitários, mas perto da vida e dos pacientes. Eram os práticos licenciados, alguns dos quais ainda conheci quando menino.

O tempo fez com que os últimos “práticos” viessem a falecer, e hoje em dia exige-se dos profissionais uma graduação acadêmica para as profissões que citei acima. Entretanto, na parteria ainda não ocorreu esta migração absoluta e total. Ainda temos muitas, milhares dirão alguns, parteiras “populares”, principalmente no nordeste brasileiro. Como agir em relação a elas?

Pode-se admitir que uma mulher, apenas por dizer-se parteira, possa atender um momento crítico (mesmo sendo fisiológico) de uma mulher nos dias atuais?

Minha resposta é: sim. Podemos aceitar o trabalho das “práticas licenciadas em parteria”, desde que estas mulheres, aos poucos, comecem a se adaptar às modificações de suas próprias comunidades.

Na minha opinião nossa ação deve-se dar em duas frentes: A primeira seria o suporte às parteiras tradicionais que ainda existem, com capacitação, interlocução, troca de experiências, ajuda material (medicamentos básicos, transporte, etc.). Isso é algo que eu acredito seja feito por várias Organizações Não Governamentais (como o grupo Curumim, entre outras). Outra ponta de atuação deve ser o incentivo à formalização. Experiências como esta foram realizadas no México, e com sucesso. Trazer estas parteiras para o mundo formal, respeitar suas práticas, oferecer informação básica sobre práticas baseadas em evidências, combater procedimentos reconhecidamente lesivos ou perigosos (barro no coto, teia de aranha, corte nos mamilos do RN para retirada do leite das bruxas, desmame precoce, etc.) e incorporá-las ao SUS (com PAGAMENTO pelo seu importante trabalho) devem ser ações prioritárias.

Mas para isso é importante definir quem são estas parteiras, e isso eu já tratei em outros textos. Para resumir, são de dois tipos: as parteiras “informais”, tradicionais e que se situam em locais de baixos recursos e/ou de um grupamento cultural onde suas práticas são reconhecidas por suas iguais e valorizadas socialmente. Como exemplo temos as parteiras ribeirinhas da Amazônia ou as parteiras Guarani M’bias no Rio Grande do Sul, entre centenas de outros exemplos que poderíamos utilizar sobre parteria tradicional no Brasil e que tem estas características essenciais.

O outro tipo são as(os) parteiras(os) urbanas(os), que são os profissionais egressos de uma formação universitária, regulados por seus conselhos específicos, com conhecimentos acadêmicos e científicos sobre práticas de atenção ao parto e que se originam dos cursos de Medicina, Enfermagem e Obstetrícia, os dois primeiros com a possibilidade de qualificação em obstetrícia.

Os profissionais que não se enquadram nessas categorias não são reconhecidos como “skilled attendants” e não podem ser regulamentados, orientados e/ou punidos por organização alguma e estão, portanto, à margem da formalização. Tais profissionais, via de regra, não tem protocolos bem definidos, registros de casos ou maneiras de aferir suas práticas. Isso, ao meu ver, é um problema para o sistema de saúde, e a formalização de todos os atores sociais que atendem nascimento precisa ser uma meta de todos os países que desejam diminuir as taxas de morbi-mortalidade materna e perinatal.

Ric Jones
ReHuNa

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Vida e Determinismo

Evangelist Reverend Moon reacting as he delivers a speech in Gapyeong
O recentemente falecido Reverendo Moon

Certa vez eu fui abordado por um sujeito na rua que se postava em frente a um cavalete (desses que se usa em aula, com um bloco grande de papel) onde ele escrevia com um marcador de texto. A cena inusitada chamou a atenção de algumas pessoas, entre elas eu. Esta cena aconteceu em Nova York, no início dos anos 80. Parei para olhar por alguns momentos sem perceber que se tratava de uma espécie de “bispo” da seita do Reverendo Moon tentando fazer prosélitos entre os incautos passantes. Esta seita fez muito sucesso há 30 anos, principalmente nos Estados Unidos, onde organizavam reuniões gigantescas, com milhares de participantes, inclusive casamentos instantâneos de milhares de casais ao mesmo tempo. Na realidade ela em nada diferia das religiões contemporâneas que se baseiam no carisma de um guru e no investimento de milhões de dólares em propaganda. Bastaram 2 minutos de atenção com as marcas incompreensíveis que ele fazia no papel sobre o cavalete para que ele voltasse sua atenção para mim e explicasse o que fazia ali.

Em verdade, seu interesse com os gráficos era mostrar os importantes eventos sequenciais que se produziam a cada 500 anos e que mostravam que, exatamente naquele ano (acho que 1981), surgiria uma “nova ordem cósmica” liderada pelo patrão dele, o tal do reverendo. Pediu que eu olhasse os gráficos e confirmasse o nascimento de grandes líderes mundiais a cada lapso de meio milênio – dos filósofos pré-socráticos, passando por Sócrates-Platão-Aristóteles, pelo Nazareno, os Maias, os líderes da ciência na Europa iluminista, os enciclopedistas e por aí afora, até chegar exatamente no ponto onde ele pretendia: o surgimento do ápice de todos esses grandes líderes: o Reverendo Moon.

Mesmo sendo eu um menino de não mais de 20 anos, percebi claramente que se tratava de uma história contada em retrospectiva. Tipo: eu sou o máximo, ok? Preciso que todos vocês acreditem nisso e vou utilizar uma fórmula bem simples: mostrarei que minha importância não está apenas no que digo (na maioria das vezes uma mera repetição de adágios antigos com roupagem nova), mas que a minha “chegada” ao planeta Terra teria sido planejada por uma “ordem invisível cósmica”, que governa o mundo para além do nosso conhecimento. Bem, vou inventar agora que a cada século um novo gênio nasce na humanidade, certo? Para isso usarei de uma análise retrospectiva da história, e procurarei os meus “precursores”. Para fazer isso preciso encontrar alguém muito especial nascido no ano da graça de 1859, outro em 1759, 1659 e assim por diante, e desta forma construo uma pseudo causalidade que ocorre em lapsos de 100 anos.

Claro, eu pensei logo no meu mestre Freud, que nasceu em 1856, mas é fácil construir uma explicação para esta pequena inexatidão. Posso dizer que, por exemplo, são cem anos “lunares”, ou “por volta de um século”, ou Freud foi registrado apenas em 1859, por um erro de seu pai, etc. É evidente que, dependendo do que quero provar, esses detalhes são desprezíveis, e no fim tudo pode ser encaixar, como em um passe de mágica.

Por isso é que essas histórias de que “as coisas estão escritas para acontecer de uma determinada maneira, obedecendo uma ordem cósmica previamente estabelecida” me irritam, pois elas, em última análise, falam de um determinismo paralisante, que sufoca a natural diversidade humana, a imprevisibilidade da vida e o livre arbítrio. A vida, assim conduzida, pareceria uma versão do filme “Premonição” onde os eventos (trágicos, felizes ou bizarros) estão predeterminados a acontecer. Infelizmente (ou, ao meu ver, felizmente) o mundo não se ordena desta forma. Se realmente existisse um “sentido” oculto no Cosmos, o preço a pagar seria alto demais: a perda da liberdade e da autonomia. Prefiro um mundo caótico e imprevisível construído pelas nossas próprias imperfeições e falhas do que um mundo onde “tudo acaba bem” por que Deus (ou o Reverendo Moon) escreveu nosso destino com as tintas do determinismo.

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