Certa vez uma paciente me procurou com um pedido expresso para que eu “curasse seu útero”. Quando perguntei o que ele tinha ela me mostrou uma ecografia onde aparecia um pequeno mioma subseroso, menor do que dois centímetros.
– Estou com anemia, minhas menstruações são volumosas. Conversei com outro médico e ele me disse que o melhor seria tirar fora o útero. A explicação dele me convenceu pois pareceu correta e lógica.
– E qual foi a explicação que ele lhe deu?, perguntei.
– Ele apenas me questionou: “você ainda deseja ter filhos?”. Eu sorri e lhe disse que não, afinal estou quase com 50 anos e tenho filhos adultos. Ele então disse “O útero só serve para abrigar seus filhos ou acalentar um câncer”. Eu concordei; ele me fez ver que estou correndo risco de ter câncer sem ter qualquer vantagem.
Fiquei em silêncio observando minha paciente. Havia na sua expressão uma clara sinalização. Ela estava contaminada pelo medo, instilado pelo discurso do seu médico. Lembrei do famoso axioma sobre as guerras: “Se quiser um povo dócil, deixe-o apavorado. Quanto mais medo tiverem mais eles vão obedecer às ordens de um tirano travestido de salvador, por mais estúpidas que sejam suas determinações”. Da mesma forma, se quiser um paciente manso, obediente, “colaborativo”, deixe-o em pânico. Diga que se não fizer determinados procedimentos, tratamentos, regimes, etc. ele corre o risco de adoecer ou ter uma morte horrorosa, cheia de dor e padecimento.
O médico a quem ela procurou era um cirurgião. Por certo que para um sujeito com esta formação a cirurgia surge quase sempre como a solução para todos os males. “Se você é um martelo, todo problema é um prego”. Ora, nada mais óbvio: se você amputar seu útero – ou sua mamas – por certo que não terá como desenvolver um câncer nestas topografias. Mas seria esta a cura do câncer, ou apenas a retirada de um desconfortável sofá da sala?
O caso não apresentava justificativas para realizar uma histerectomia. O pequeno tumor benigno não estava envolvido em sua anemia limítrofe. O que ela tinha era uma síndrome característica da perimenopausa, um desacerto hormonal que levava à perda aumentada de sangue. Fiz a ela uma proposta simples e aberta: vamos tratar esta anemia, corrigir a menstruação, observar este mioma, usar alguns medicamentos homeopáticos e retornar em 6 meses para uma nova avaliação. Expliquei a benignidade do seu mioma e reforcei a ideia de que arrancar partes do corpo não é a melhor das alternativas, na imensa maioria das vezes. Ela concordou.
Entretanto, o que mais me impressionou foi a facilidade com que as mulheres aceitam a retirada do útero. Quando meu avô fez um tratamento para câncer de próstata, há muitos anos, uma das etapas era a orquiectomia (retirada dos testículos) para diminuir o aporte hormonal para o tumor. Na época ele tinha mais de 80 anos, e sequer lhe foi perguntado antes da cirurgia se “ainda pretendia ter filhos”. Na saída do centro cirúrgico o urologista comentou comigo que no lugar dos testículos foram colocadas duas esferas de silicone para diminuir o impacto emocional da “emasculação” causada pela retirada deles. Ficou claro que, para os homens, um testículo é mais do que um órgão que “faz filhos e câncer”; ele possuía um evidente valor simbólico, o mesmo valor que era sonegado ao útero. Ali estava um aspecto do “machismo” da medicina que era impossível negar.
A cirurgia mais realizada nos Estados Unidos é a cesariana, e logo depois dela, na lista de prevalência, está a histerectomia (retirada do útero), apesar de que estas cirurgias para miomatose terem passado por um considerável declínio nas últimas décadas. A medicina altamente tecnológica americana tem entre as cirurgias mais realizadas intervenções sobre o mesmo gênero e sobre o mesmo órgão. Se acrescentarmos a episiotomia (corte no períneo durante o parto) na equação veremos o quão poderosa é a crença de que o corpo das mulheres é algo que precisa ser monitorado, controlado, melhorado e consertado pela ciência médica, pois acreditamos que este organismo é intrinsecamente defeituoso, problemático, falho e traiçoeiro.
Mais chocante para mim é ver que, além dos interesses de uma cultura médica que desmerece o organismo feminino, existe uma aceitação tácita das próprias mulheres sobre a inutilidade dos seus órgãos. A forma como descrevem a menstruação (algo nojento, ruim, malcheiroso, etc) mostra como as especificidades femininas são mal vistas por muitas mulheres ocidentais. A maneira fácil como minha paciente aceitou a “inutilidade do útero” também foi chocante; como poderia um órgão que é chamado popularmente de “matriz” ou “mãe do corpo” ser tratado com tanta desconsideração. Por seu turno, o testículo é o símbolo da coragem e da determinação – precisa ter “culhão” para enfrentar tantos desafios. Por certo que este fenômeno é um efeito colateral do patriarcado, que desmerece o feminino em nome de uma ordem centrada nos homens, mas acredito que um contraponto muito mais intenso a essa perspectiva deveria ser disseminado entre as meninas.
Minha paciente fez o tratamento pedido, melhorou da anemia e o mioma se manteve estável. Voltou a algumas consultas com clara melhora. Depois disso ela se mudou com a família para o estrangeiro, para viver em outra realidade depois que ela e o marido se aposentaram. Mais de um ano depois da última consulta o marido, em visita ao Brasil, me procura no consultório pedindo um atestado, exames ou um documento dessa natureza. Na ocasião perguntei a ele como minha paciente estava, ao que ele respondeu:
– Ela está muito bem, mas ficou com vergonha de vir aqui. Ela acabou fazendo a cirurgia lá no exterior.
Não há como culpar uma paciente que faz suas escolhas diante da orientação ampla que recebeu. Posso criticar quem realiza cirurgias inúteis, mas não quem faz escolhas informadas. Este caso, entretanto, me ensinou que existem motivações escondidas no fundo da alma que nos levam a ações aparentemente tolas ou inúteis, mas que estão conectadas a elementos simbólicos e inconscientes. Estas pressões internas são, muitas vezes, muito mais fortes e poderosas que as orientações racionais que oferecemos aos pacientes. Ou como dizia meu amigo Max: “estes condicionantes são poderosos exatamente porque estão distantes da razão”. Isso também determina uma posição humilde para qualquer terapeuta: não é justo curar um sujeito para quem um tratamento – por mais justo e correto que seja – é visto como uma violência. É difícil aceitar uma realidade tão dolorosa quanto esta: para muitos sujeitos existe uma paixão inconfessa pelo sintoma. Curar-se significa libertar-se, mas quem de verdade deseja desfrutar de uma vida sem os grilhões que ao mesmo tempo que lhe aprisionam lhe oferecem segurança?