Arquivo do mês: dezembro 2022

Coreia

Quando eu era pequeno – tinha uns 10 anos de idade – e não tinha nada para fazer no domingo a tarde, ia até o estádio do Internacional (que ficava poucas quadras da minha casa) e comprava um ingresso no setor popular, a famosa “Coreia” (parte do campo na altura do gramado batizado em homenagem à “Vila Coreia”, favela próxima). Eu e meu amigo George Banana íamos para assistir o jogo (que nem era do nosso time; íamos lá para “secar”), curtir o clima da torcida e escutar o barulho ensurdecedor que se seguia aos gols (uma experiência singular na vida de um garoto).

Vejam bem… um menino de 10 anos ia à pé até o estádio com seu amigo da mesma idade, pagava o equivalente a 5 reais de hoje e assistia um espetáculo de futebol. Os campos de futebol naquela época eram lotados de gente pobre, até favelados. Na foto que ilustra este post pode-se ver o rosto das pessoas da Coreia, gente que hoje não pode mais entrar em um estádio de futebol.

O futebol moderno – e gente como Cristiano Ronaldo, Neymar, Messi – mataram a possibilidade do esporte voltar para o povo, mas não por culpa deles – meros artistas que vendem sua força de trabalho para fazer girar a roda da fortuna – mas por uma progressiva e insidiosa elitização do espetáculo. A ela veio se juntar a neurose coletiva do capitalismo combinada com a gentrificação dos estádios e arenas, construídos para serem símbolos de luxo e poder, acessíveis apenas a uma franja diminuta da sociedade.

Hoje em dia o pobre só pode satisfazer sua admiração pelo futebol através das transmissões entupidas de publicidade nas TVs abertas. Como o futebol-negócio é controlado por setores da burguesia – que estão se lixando para o povo – a chance de ocorrer alguma mudança em médio prazo é ínfima. Ódio eterno ao futebol moderno!!!

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Julgamentos

A idade nos oferece alguns presentes um pouco desagradáveis como dores nas juntas, a queda dos cabelos, um estômago mais sensível e uma memória que a cada dia se torna mais apagada. Por outro lado, a maturidade nos ensina – pela pedagogia das múltiplas quedas – a não julgar o semelhante com tanto fervor. O tempo de vida recomenda duas coisas: não jogar pedras por erros que você mesmo poderia ter cometido e não sofrer por ser o último a sair do avião.

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Our bodies, our selves

A ideia muito disseminada em anos passados que tratava o “corpo como embalagem do cérebro” foi uma tese contestada pelo movimento feminista nascente, através de um grupo de mulheres americanas dos arredores de Boston que escreveu um livreto chamado “Women and their bodies”, no ano de 1969. Já em 1970 esta pequena publicação se transformou em um livro que é considerado a Bíblia do moderno feminismo americano, chamado “Our bodies, our selves” – “Nossos corpos, nós mesmas” – que no ano 2020 completou 50 anos da primeira edição e vendeu mais de 4 milhões de exemplares em suas inúmeras edições posteriores.

A principal reivindicação dessa publicação é a conquista da autonomia dos corpos femininos, o direito à beleza e ao prazer e o reconhecimento dos direitos reprodutivos e sexuais femininos. Entre as primeiras editoras estava a jornalista e autora feminista Gloria Steinem. A tese do corpo como mera “embalagem” do espirito sempre foi por elas firmemente contestada. Ou seja, sua visão era “nossos corpos somos nós mesmas”…

Lembrei disso hoje porque minha amiga Robbie participou como articulista em uma dessas edições e porque a falecida atriz Carrie Fisher (Star Wars), quando lhe comentavam que ela havia envelhecido, respondia dizendo que seu corpo era uma “mera embalagem do seu cérebro”

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Eu vi Pelé jogar…

Pelé e Alcindo Marta de Freitas na inauguração do Colosso da Lagoa – Erechim, em 2 de setembro de 1970. Grêmio 0 x 2 Santos.

… e todos que dizem isso revelam inexoravelmente a idade. Porém, só quem foi menino e jogou bola nos anos 60 e 70 pode entender a verdadeira dimensão desse acontecimento. Sendo gaúcho, e vivendo numa época em que as transmissões de TV eram precárias, isso significa que você teve a rara oportunidade de testemunhar a presença de um Deus.

Um fenômeno como Pelé não existe mais na atualidade, não na dimensão que ocorreu com Sua Majestade. O fenômeno Pelé só poderia acontecer em uma época anterior ao futebol moderno, quando o jogo ainda se confundia com a arte e o balé, quando os jogadores eram pessoas comuns, gente como todos nós, e não milionários exibicionistas que ganham mais com publicidade do que com a arte dos seus pés. Pelé surge como a “grande esperança negra”, o menino pobre, preto, filho de dona Celeste – uma lavadeira – e seu pai “Dondinho” – um jogador de pouco brilho. Era um Brasil que recém acordava como nação, emergindo do grande trauma do “maracanazo“. Pelé mudou a história desse país, tornou-se menino prodígio em 1958 na Suécia, passou a ídolo e de ídolo para “Rei do Futebol” antes de completar 25 anos. Depois disso ainda foi considerado como o maior esportista de todos os esportes no século XX.

Hoje em dia está cheio de torcedor Nutella que chama jogadores absolutamente comuns de “craque”. Nunca houve nada semelhante a Pelé. Pelé parou uma guerra. Pelé expulsou um juiz de campo. Pelé fez mais de 1000 gols na carreira e levantou 3 copas do mundo em 12 anos. Pelé foi o gênio maior da bola. Eu me sinto feliz por ter sido contemporâneo desse monstro sagrado do futebol e, ainda menino, ter assistido o Rei jogar no Estádio Olímpico.

Tamanha foi sua fama que quando o Santos vinha jogar em alguma cidade – e naquela época eram comuns as excursões de clubes ao exterior – as pessoas iam ao estádio somente para ver Pelé, marcar a presença desse talento em suas retinas, torcer e vibrar por ele. Até eu mesmo fui ver Pelé no Estádio do Grêmio (o Imortal) e meu olhar esteve o tempo todo sobre ele; sua desenvoltura em campo era mais importante que a vitória da minha equipe. Ele era um personagem maior do que o próprio futebol.

Com a morte de Pelé se vai essa mística, que não existe em nenhum outro jogador da atualidade. Morre junto com o Rei o menino que havia em mim e que se encantou com o Deus do futebol.

Nesta foto abaixo é do jogo que eu vi Pelé jogar ao vivo, no Estádio Olímpico de Porto Alegre. Se a foto tivesse resolução adequada eu poderia ser visto na social do velho estádio tricolor, ao lado da cintura do craque Atílio Genaro Ancheta. Siga em paz, Pelé.

Grêmio x Santos, na última partida de Pelé no Estádio Olímpico, 27 janeiro 1974. Na foto, Pelé e Ancheta. Gremio 1 x 0 Santos, gol de Carlinhos.

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Projeções

O próprio fato de levantarem o caso de Pelé com a filha durante o processo de morte do Rei Pelé já é uma amostra do viralatismo e do “racismo que não se contém”, marca registrada da nossa classe média. Como já foi dito por “Isuperio” no Twitter, “Desconsiderar o legado de Pelé pelos seus erros humanos também faz parte do projeto de desumanização das pessoas negras. Não esqueça que estamos em um país que tem estátuas, monumentos e nomes de rua dados a escravagistas, ditadores e estupradores”. Mas um fato fica claro nas manifestações que acusam Pelé nas redes sociais: Tudo que você lê agora na Internet sobre o Edson é pura projeção. Na maioria vem através de mulheres que projetam a indiferença do Pelé com Sandra como se fosse sobre elas. Por isso a imensa maioria das críticas nos chega com uma carga violenta de indignação.

“Ahh, mas só as mulheres podem falar dos dramas do abandono parental”, dizem alguns. Ora, e por que seria assim? Meninos não são igualmente abandonados por pais? E eu, por princípio, não acredito em “lugar de fala” como silenciador de divergências. Os homens e as mulheres podem falar das suas experiências pessoais (com a paternidade, por exemplo) a partir de um lugar privilegiado. Todavia, isso não garante que mulheres possam falar de abandono e homens não; afinal, se o abandono for paterno, os homens também deveriam ter a fala garantida. O que acontece é que 99.9% das pessoas que criticam Pelé o fazem sem saber o que ocorreu, mas também porque projetam sobre esse fato os SEUS traumas. É projeção o tempo todo, e isso torna o debate pouco racional, totalmente dominado por questões emocionais e sujeito às paixões.

Essas pessoas olham para o Pelé e enxergam nele a imagem daqueles homens que os(as) decepcionaram, mesmo que os fatos alegados contra Pelé sejam contestáveis. Além disso, Pelé não pode ser julgado pelo abandono parental que homens (e até mulheres) cometem no Brasil; ele só pode carregar suas culpas, e não a de todos os homens.

Como princípio do direito, as vítimas são sempre os depoimentos menos valorizáveis, porque são contaminados por emoções violentas. Minha tese é de que, a críticas violentas contra Pelé dizem muito mais das pessoas que o acusam (muitas delas vítimas de uma paternidade falha ou ausente) do que da relação de Pelé com Sandra, que chegaram até a se reconciliar, e cujos filhos foram sustentados com a pensão do avô Pelé até hoje.

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Lacração

Muitas pessoas colecionam arrependimentos durante a vida, mas vamos combinar que não é possível atravessar o charco da vida sem embarrar os pés. Eu também tenho a minha lista de erros constrangedores, que poderiam ser organizados em lista alfabética, mas sobre eles eu tenho outro sentimento, igualmente pernicioso: a vergonha.

Sim, eu tenho vergonha principalmente por ter cedido a uma tentação terrível, que muitos sequer reconhecem como um defeito, mas que é tão grande a ponto de destruir potencialidades incontestes: a tentação de agradar.

Sim, tenho vergonha de ter dito certas coisas apenas porque sabia que isso ia agradar meus interlocutores. Fico corado ao lembrar das vezes em que falei determinadas palavras sabendo da satisfação que colheria de quem as escutou. Isso é a melhor definição de “lacração“: a ideia que suas manifestações serão aceitas e bem recebidas não pela verdade que contém, mas pelo efeito emocional que geram nas pessoas que as escutam. No meu tempo a isso se chamava “jogar para a torcida“, uma prática corriqueira entre os políticos, mas que atrasa o crescimento pessoal e coletivo.

Hoje eu me envergonho muito de ter aceito a imposição da opinião alheia, de ter acolhido a pressão do contexto, de não ter falado verdades inconvenientes, de não ter sido mais impopular do que já sou. “Mea culpa, mea maxima culpa”.

Meu pai, quando ficou velho (pelo seu próprio critério subjetivo) costumava dizer algumas verdades dolorosas e depois complementava: “Já tenho X anos; conquistei o direito de ser sincero”. Eu ficava satisfeito de poder ouvir alguém que me dizia coisas pouco agradáveis e que o fazia mesmo sabendo que a recepção não seria das melhores. Isso foi algo que invejei demais e que me fez acreditar na promessa das “benesses da senectude“.

Hoje eu creio que, se algum valor há em envelhecer, talvez este seja alcançar o lugar onde é possível ser fiel a si mesmo.

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Exposição

Quanto mais eu vejo os profissionais de saúde sendo influencers, dando dicas, expondo seu trabalho, prometendo resultados, falando de si mesmos, abusando dos vitupérios e brilhando no cyber universo, mais eu acredito nas virtudes da discrição. Isso não exclui a importância das redes para disseminação de ideias, conceitos e propostas, mas sugere um pouco de comedimento. Este tipo de auto exaltação atrai muita energia negativa. Muitos serão solidários na sua dor, mas quase ninguém suporta o sucesso alheio. Algumas tragédias recentes mostram que eu devo estar certo. Acredito ser extremamente perigoso menos por causa dos pacientes e muito mais porque os colegas e concorrentes não aceitam jamais este tipo de hiperexposição. Aqui neste link é possível ver uma dessas tragédias profissionais.

No Brasil tivemos casos famosos como um ginecologista de São Paulo e um cirurgião plástico do Rio de Janeiro, mas há muitos outros exemplos de profissionais apostando na exposição em redes – como tik tok e Kwai, entre outros – ficando famosos, fazendo dancinhas, brincando inocentemente com colegas, alguns deles ficando até famosos e milionários. O problema é que a mesma mão que afaga é aquela que apedreja, e o “amor” em forma de admiração devotado a estres profissionais depois os faz virar alvo de represálias.

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A busca

Qualquer pessoa que busca encontrar um amor jamais deve procurar por ele nas pessoas que encontra. O amor está sempre longe das buscas objetivas; ele é o subproduto dos encontros. Em verdade, a melhor estratégia é abrir o coração para o amor, e aguardar que ele aconteça, na fissura aberta pelo desejo.

Mary Clearwater, “How to catch a partner and go fishing”. Ed. Cranberry, pág. 135

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Homo adaptabilis

Pode ser uma imagem de 1 pessoa e texto que diz "Segundo Séneca, nós sofremos mais na imaginação do que na realidade. FATOS"

Meu pai dizia que o que mais o assombrava na humanidade era sua capacidade de adaptação. Ele era um racionalista, um humanista que nutria uma enorme fé no ser humano, sua criatividade, sua incrível maleabilidade e – em especial – sua adaptabilidade. Ele me contou que, quando trabalhava nas centrais elétricas do Rio Grande do Sul – a CEEE – conheceu um engenheiro elétrico, imigrante húngaro, que chegou ao Brasil fugindo dos horrores da segunda guerra mundial. Meu pai o descrevia como um homem fechado, bruto, profundamente anticomunista, marcado por tristezas profundas, ressentimentos e dores da alma. Hoje seria, por certo, um bolsonarista ressentido, se ainda fosse vivo.

Todavia, apesar de se sentir muito distante de sua visão política, meu pai tinha por este sujeito uma profunda admiração, em especial por sua impressionante resiliência. Certa feita, durante um momento de maior descontração, o engenheiro sisudo e calado lhe contou alguns detalhes da sua dramática história na Europa, o que levou meu pai quase às lágrimas. Durante a 2a grande guerra ele havia perdido a mulher e os filhos pequenos, vítimas dos bombardeios alemães em sua cidade. Se isso não fosse o suficiente, viu sua casa ser destruída, e com ela tudo o que possuía. Não lhe sobrou nada, nem recursos ou afetos. A guerra lhe roubou tudo o que havia construído.

Na miséria e sem futuro, colocou seu diploma de engenharia elétrica numa pequena mala junto com as poucas peças de roupa que conseguiu salvar e entrou em um navio que o levasse a para longe. Seu destino era “outro lugar”, qualquer um que fosse distante o suficiente de suas tragédias e do vazio que lhe restou como lembrança.

Sim, Deus é um cara gozador e adora brincadeiras, e na barriga da miséria ele virou brasileiro. Chegou ao sul do Brasil ainda com juventude no corpo, e teve tempo de reconstruir sua história, sua profissão e sua vida. Casou de novo e teve filhos – que hoje devem ser velhos como eu a contar para os netos as histórias tristes do avô na guerra absurda e fratricida da qual participou.

Lembro dessa história sempre que penso nas pequenas e grandes tragédias que se abatem sobre mim – ou sobre todos nós. Creio que, se o velho húngaro foi capaz de refazer sua história movido apenas pela ânsia de viver, agarrado à pulsão de vida como tábua de sobrevivência, por que haveríamos de desistir diante de dores tão menores? Talvez, se lhe fosse perguntado na juventude se suportaria todas estas perdas, diria que “não”, que não haveria como superar a perda da mulher, dos filhos, de suas coisas e até do seu país. Ele, como muitos de nós, não acreditaria em sua capacidade de se reconstruir a partir dos escombros a que foi reduzido. Pois, a despeito de sua própria descrença, foi lá e teimosamente sobreviveu. Mais do que isso; ainda teve a ousadia de ser – ao seu jeito – pleno e feliz.

Meu pai sempre falava deste homem quando desejava apaziguar as dores lancinantes que a vida muitas vezes nos obriga a sofrer. E depois, com um sorriso afável, sempre dizia: “Por pior que pareça, vai passar”.

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Ciência

Vamos combinar que as pessoas não questionam a “ciência”, mas questionam o uso que algumas pessoas fazem dela. Aliás, é da essência da ciência ser questionada, seus fatos analisados e suas conclusões desafiadas. O racismo já foi científico, o geocentrismo também; Talidomida, raios x em grávidas e Vioxx, idem.

Eu prefiro dizer que só os tolos tem “fé na ciência”, e a minha relação com ela sempre foi de justificada desconfiança. A ciência é a busca do conhecimento, mas é uma criação humana e, portanto, imperfeita e enviesada. Dentro do capitalismo os achados da ciência serão sempre tendenciosos, constrangidos pelo poder econômico e, por isso, precisam sofrer de nós uma legítima e sistemática contestação.

Porém, ao dizer isso, não afirmo que a contestação às ciência produzidas se fará pela irracionalidade ou pelo misticismo, mas com mais ciência, resolvendo as falhas que porventura ocorrem nas pesquisas e estudos produzidos com intenções espúrias.

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