Arquivo do mês: novembro 2013

Febrasgo e o Parto Domiciliar

Parto em Casa

Parabéns aos colegas da Febrasgo – Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia – pelo reconhecimento do protagonismo da mulher em relação ao local de parto.

Para aqueles que reconhecem a importância do pleno protagonismo no parto restituído às mulheres, esta é uma data a se comemorar. Há apenas uns poucos meses milhares de brasileiros e brasileiras saíram às ruas para protestar contra uma atitude violenta e insensata de um grupo conservador da medicina que atacou um médico conceituado e respeitado de São Paulo por se posicionar favorável ao parto domiciliar planejado. Do ponto de vista da Medicina Baseada em Evidência, nada do que ele falou possui qualquer falha ou erro, mas isso não fui suficiente para que ele fosse atacado por seus próprios colegas, interessados em agredi-lo pelo crime de pensar livremente. Mais além dessa atitude grosseira, este grupo resolveu legislar contra outras profissões, como as parteiras profissionais, obstetrizes, enfermeiras e doulas. A razão era clara: encher de pânico os médicos humanistas e amedrontar as outras profissionais que procuram oferecer sua ajuda às grávidas. Nenhuma destas ações teve sucesso: todas foram veementemente rechaçadas pela justiça.

O tiro, todavia, sairia pela culatra. As ações violentas contra o colega que defendia o protagonismo da mulher provocaram o surgimento de um movimento inédito no Brasil. Pela primeira vez mulheres se manifestavam publicamente contra o arbítrio e o controle exercido sobre seus corpos. Era o momento para que a insatisfação contra um modelo de atenção – que negava os aspectos psicológicos, afetivos, emocionais, espirituais, sociais e fisiológicos do parto – tomasse corpo e se manifestasse.

Frases como “O Parto é Meu“, “Meu corpo, meu parto” apareceram estampadas em camisetas e barrigas por todo o país. Crianças com cartazes bradavam: “Eu Nasci em Casa“. Banners em apoio ao colega e sustentando uma medicina mais científica e humanista apareceram em ruas (de verdade e virtuais, como blogs, paginas do Facebook e sites). Artigos foram escritos. A revolução havia iniciado.

A postura autoritária deste setor conservador da medicina recebeu uma resposta popular como nunca antes havia ocorrido, expondo as contradições mais graves da prática médica contemporânea. Como poderia uma corporação calar-se diante da epidemia de cesarianas (comprovadamente perigosas, danosas e mais arriscadas) e atacar profissionais que tentavam resgatar o protagonismo historicamente expropriado das mulheres no momento do parto? Como poderiam estimular a invasão cirúrgica da cesariana e ao mesmo tempo ignorar os estudos que apontam o parto domiciliar planejado como igualmente seguro? Como seria possível sustentar um modelo centrado no médico e agredir aqueles que se mobilizavam na tentativa de colocar os holofotes novamente sobre a mulher?

A declaração da Febrasgo veio no momento certo, para reforçar as teses da autonomia feminina e a liberdade de escolha. Há poucos anos apenas as mulheres saíram às ruas para votar. Depois, para terem direito ao divórcio, e agora para que ninguém decida por elas onde terão seus filhos. Aos médicos cabe a tarefa de esclarecer as dúvidas e apontar caminhos, mas JAMAIS julgar os valores e as ideias de quem lhes pede auxílio. Em um mundo onde ainda existem mulheres que sequer podem escolher seus maridos é bom saber que a corporação médica reconhece o direito supremo que cada mulher tem de escolher onde seu filho vai nascer.

Entretanto, muito trabalho ainda há pela frente. A exemplo de sua irmã maior, a ACOG (Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas – EUA), a Febrasgo se baseia em estudos que não são reconhecidos pelas autoridades em epidemiologia como os mais corretos. Preferem ignorar as volumosas avaliações sobre a segurança do parto domiciliar planejado enquanto aceitam pesquisas falhas e mal feitas para dar sustentação ao seu preconceito. Por outro lado, para um otimista tais equívocos serão corrigidos em uma questão de tempo. Assim como os países europeus já ultrapassaram tais debates, e inclusive estimulam os partos extra-hospitalares, um dia o Brasil também terá esta prática incorporada à atenção do parto para as mulheres que assim o desejarem e que estejam habilitadas para tal.

Parabéns, mais uma vez aos colegas da Febrasgo. Este é um dia para ser comemorado por todos aqueles que pensam numa humanidade sem barreiras, com dignidade, liberdade de escolha e informação de qualidade.

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Medicina Baseada em Evidências

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É claro que a MBE (Medicina Baseada em Evidências) pode ser atacada, criticada, reavaliada ou até negada. Sem problemas. Eu posso criticar a face “biologizante” da Medicina Baseada em Evidências e sua “propensão” a virar uma “cartilha” de procedimentos médicos padronizados. Pode aparecer aos olhos desavisados como uma gigantesca “receita de bolo”. Ela pode ser criticada de servir como um “liquidificador de subjetividades”, que retira o poder médico de avaliar caso a caso de acordo com variantes sutis e pessoais.

Mas é claro que nós sabemos que MBE NÃO é isso. Sabemos que ela é a avaliação conscienciosa e explícita das melhores evidências aplicadas aos casos individualizados, isto é, para cada subjetividade sobre a qual ela pode oferecer subsídios. Todos nós sabemos que para um humanista a MBE é um roteiro, um mapa, uma orientação, e JAMAIS um catecismo rígido sobre que procedimentos utilizar. Portanto, os erros e usos equivocados da MBE podem ser passíveis de crítica, da mesma forma que podemos criticar de forma feroz a democracia da forma como ela se expressa e se aplica na cultura. Entretanto não acredito que seja razoável criticar a proposta do governo “para o povo e pelo povo” assim como não me parece razoável desreconhecer a importância do conhecimento sistemático e científico como ferramenta de entendimento e crescimento. Por isso é que fico curioso em saber como alguns médicos (principalmente da academia) sustentam seu rechaço a uma medicina menos mitológica e autoritária e que se sustenta no saber científico e nas análises sistemáticas para se expressar.

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Viagens e Sonhos

Paris - Eiffel

Quando eu tinha 14 para 15 anos de idade minha mãe fez a viagem dos seus sonhos para a França. Como boa “francófila” passou a vida inteira sonhando com as ruas, os cafés, os “boulevards”, os museus, as estações de “metropolitain” e o ar que se respira na “cidade luz”. Pois, aproveitando o fato de que meu pai foi estudar na França, ela juntou-se a ele no final da sua viagem e passou um mês em pleno sonho, caminhando por cada ruela, cada praça e cada edificação resplandecente. Talvez este tenha sido o maior exemplo que tive na vida de um sonho a se cumprir…

Na volta ela nos trouxe presentes simples, mas que eram revestidos de um simbolismo especial. Um chaveiro, bugigangas do avião, imagens da cidade e coisas comuns que turistas compram. Entretanto, muito mais do que o valor de qualquer objeto, estava a impregnação que eles traziam de uma viagem de sonhos e de um projeto criado havia muitos anos em sua mente cheia de fantasias sobre a onírica e romântica cidade de Paris. Entre estes presentes estava um blusão, que hoje chamaríamos de “moleton”, em que se lia, em letras estilizadas, “Saint Michel et Saint Germain“.

Perguntei a ela do que se tratava, se eram apenas os nomes de dois santos especiais da cidade, ao que ela me respondeu, com um sorriso maternal, que estes nomes se referiam a um cruzamento de duas avenidas de Paris. “Nada de mais, meu filho, apenas um cruzamento por onde passei”. Imediatamente a minha cabeça de menino criou uma esquina cuja atmosfera era de magia palpável, um ar de sonho respirável e adocicado, um local onde as fantasias mais profundas se realizavam. Minha mãe havia cumprido o maior sonho de sua vida na esquina das ruas que eu carregava no peito. Por muitos anos, até ela ficar puída e pequena demais para um adolescente que se espichava, eu usei o blusão da cidade dos sonhos, a Paris que minha mãe amava e por quem ela tanto sonhou.

Hoje, passeando pelas ruas de Paris, tomei uma sopa de cebola em um pequeno restaurante próximo da Rue du Louvre, acompanhado de uma cerveja Leffe. Levantei-me e segui para a próxima esquina onde fica uma praça, chamada de Saint Michel. Ao lado dela a rua com o mesmo nome. Surpreso pela coincidência inesperada, continuei por ela, magnetizado ela possibilidade de encontrar o cruzamento que habita minha mente há quase 40 anos. Poucos metros adiante, próximo do Panteão, chego ao mítico encontro das ruas Saint Michel e Saint Germain. Como todo encontro por muito tempo esperado ele nos deixa com a sensação de que algo falta. “Onde estão os fogos de artifício, as dançarinas de can-can, as luzes, os cantores de rua tocando acordeon? Ora, pensei, nenhuma realidade seria capaz de acompanhar a fértil imaginação de um menino“. Entretanto, ali estava a esquina misteriosa, o encontro das ruas que povoaram minhas fantasias infantis. Queria muito que minha mãe pudesse estar aqui comigo para poder me contar como era Paris há 40 anos, o que ela pensou quando aqui realizou seu grande sonho e o que isso significou para sua vida.

Talvez seja melhor assim. O sonho ficou apenas para ela mesma. É bem provável que ela fosse absolutamente incapaz de traduzir em palavras o sentimento que teve ao visitar a cidade. É possível também que tais emoções só existam em um terreno em que as palavras não fazem sentido algum. Além disso, outra mera suposição, a minha emoção ao encontrar essa esquina talvez não tenha tradução, e tudo o que está escrito aqui é uma tola e ridícula aproximação dos sentimentos de um menino de 14 anos ao escutar as palavras de sua mãe, cheias de afeto, esperança e carinho.

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Síndromes

Casal alemão

Esta é uma história interessante sobre conhecer as alternativas para poder usufruir das escolhas.

Um casal se conhece em um distante distrito rural no noroeste do Rio Grande do Sul no fim dos anos 40. Oriundos de uma cultura alemã eram dois agricultores simples e de pouca cultura. Ambos virgens e “passados” em idade, com mais de 40 anos. Durante 3 anos tiveram relações, mas ela disse a ele que tinha uma espécie de “fraqueza” e por isso não menstruava. Um dia o marido foi convidado pelos amigos do “Clube de Bolão” (muito comum nas comunidades alemãs do interior do RS) para jogar contra um time de uma comunidade próxima. E lá foi ele, na boleia de um caminhão. Após o jogo os colegas da outra cidade (um pouco maior) convidaram o time adversário e fazer uma festa na “zona do meretrício”. Mesmo com as reservas do nosso amigo, ele aquiesceu e resolveu experimentar os “sabores da carne”. Foi uma experiência dramática…

Quando chegou em casa pegou uma pequena mala, arrumou suas poucas roupas e disse à mulher: “Arrume suas coisas. Vamos agora mesmo para Porto Alegre falar com um doutor. Você não é normal“. Claro, teve que explicar a ela como havia feito tal constatação, mas diante da descoberta dramática ela sequer se importou. Aquilo seria a resposta para muitas de suas próprias indagações. Aquilo explicaria porque ela sempre foi “diferente” das demais meninas.

Ao chegarem à capital foram atendidos por um professor meu, já falecido, Prof Krieger. Ele examinou a paciente e explicou a eles a síndrome de MRKH – Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser – que consiste em agenesia vaginal e uterina, mas com os ovários íntegros e funcionantes (o que explica a manifestação de caracteres sexuais secundários, como pelos pubianos, deposição de gordura corporal e crescimento das mamas). Havia apenas uma pequena reentrância de menos de 3 cm no introito vaginal. A solução (na época) seria cirúrgica, e complementada por dilatadores.

Uso esse caso sempre para mostrar que, se você não conhece as alternativas, não tem como fazer uma escolha consciente. O marido era feliz, pois acreditava que o sexo fosse apenas aquele exercício de encostarem-se mutuamente, sem uma penetração efetiva. Quando pode avaliar uma relação sexual “completa” é que conseguir ver o quanto havia de estranho na sua vida sexual.

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