Arquivo do mês: janeiro 2024

Parto e Revolução

Humanização do nascimento, enquanto ciência, não pode tolerar certas falácias. Muito já foi dito sobre o parto e suas implicações psicológicas, afetivas, morais, espirituais, fisiológicas e sociais; agora cabe a nós agora mudá-lo, transformá-lo. As revoluções no campo do conhecimento humano se sucedem, atropelam umas às outras. O que antes era o novo, hoje já é o antigo, e resta-nos incorporar a metamorfose de ideias e projetos a nos oferecer o ânimo da mutação. O parto, como o conhecemos, é fruto de uma revolução tecnológica que, iniciando-se com a anestesia na memorável apresentação de uso do éter em 1846 com o cirurgião Warren e o anestesista Thomas Morton, culminou algumas décadas mais tarde com a realização da cesariana em Julia Covallina, pelo cirurgião Edoardo Porro em Pávia, na Itália, já nos estertores do século XIX. Esta cirurgia, criada com o intuito de salvar vidas condenadas pelos efeitos dramáticos do raquitismo no trajeto pélvico, conduziu-nos à suprema interferência no milenar mecanismo do parto, garantindo-nos, com razoável segurança, a entrada no claustro escuro onde dormita o amnionauta. Depois de quase um século os anticoncepcionais desvincularam o sexo da gestação e permitiram que as mulheres deixassem de ser prisioneiras da gestação; seria possível retirar do sexo todos os prazeres sem o temor de uma gestação indesejada. Tamanha a euforia com estas conquistas que por um tempo imaginamos que o domínio completo sobre os mistérios do nascer havia sido estabelecido. Entretanto, tamanha interferência nos ciclos que governam a reprodução e a vida não poderia ocorrer sem que, de alguma forma, houvesse uma ruptura com os delicados liames que nos conectam com a natureza.

As cesarianas, assim como as analgesias de parto tornaram-se mais do que simples e corriqueiras; sua aplicação no mundo ocidental tem aspectos de epidemia, tamanha a sua abrangência. No Brasil, a taxa de cesarianas está estacionada nos 57%, um número assustador se imaginarmos que a OMS estabeleceu como 15% o percentual máximo que pode oferecer vantagens. Multiplicamos por 4 este valor, e por certo que existem consequências nefastas por esta medida. Bem o sabemos o quanto as cesarianas, ao tornar previsível um evento dominado pela imprevisibilidade, beneficiam os médicos e as instituições, e aqui está uma boa razão para os abusos que testemunhamos. Além disso, as cesarianas multiplicam os riscos, tanto para as mães quanto para os bebês. As analgesias de parto também são extremamente prevalentes nas salas de parto, diminuindo a propriocepção materna e dificultando as mudanças posturais ativas da mãe na adaptação do seu bebê ao canal de parto. Hoje em dia apenas 5% das mulheres brasileiras tem um parto sem intervenções médicas potencialmente perigosas para a mãe e seu bebê. Além disso, existem repercussões de caráter emocional, psicológico e social das cesarianas, que afetam o desenvolvimento do apego da recém mãe com seu bebê. O caminho das intervenções e o parto na perspectiva médica mostravam suas falhas e seus senões.

Por esta razão, a partir do final dos anos 70 do século passado surgiu um movimento de usuárias e profissionais da saúde com o objetivo de “humanizar o nascimento”, na medida que a postura meramente objetual das pacientes – como é a característica daqueles que se submetem à ação médica – não é aceitável para uma mulher saudável que está diante de um evento natural do seu corpo, sobre o qual não cabe nenhuma intervenção sem justificativa. Passou-se a admitir – de novo – que parto faz parte da vida sexual de uma mulher, que deve ser governado por estes pressupostos, e que o nascimento de uma criança é algo que ela faz…. e não algo que fazem por ela.

Iniciou-se, então, um movimento de caráter internacional de questionamento sobre as múltiplas e exageradas intervenções sobre as mulheres no momento do parto, assim como no pré-natal e nas semanas que se seguem ao nascimento. A ideia central que impregnou esta geração de pensadores sobre o nascimento foi a “desmedicalização” do nascimento, o ,respeito à fisiologia, o uso consciencioso e restrito das intervenções, o entendimento do parto como um processo interdisciplinar e, acima de tudo, a garantia do protagonismo à mulher e à família, recuperando a centralidade feminina e familiar do nascimento humano.

Muito já se avançou no debate sobre a necessária retomada de um percurso de atenção ao parto que respeite a mulher e sua fisiologia. Muitas publicações, estudos, análises, pesquisas e literatura acadêmica contribuiu para esta lenta mudança. Todavia, ainda há um caminho longo a percorrer, porque as modificações na assistência ao parto não carecem de retoques ou de revisões de protocolos; é necessário o que se faça uma revolução, na medida em que estas transformações estão relacionadas ao poder sobre os corpos, mantido sob a guarda dos profissionais da medicina. Como diria Gramsci, se fosse parteiro: “o parto na lógica da intervenção já morreu, mas o parto na perspectiva do sujeito tarda a nascer. Neste lapso temporal ainda testemunhamos a barbárie da violência contra as gestantes”. Humanização do nascimento não é uma ideologia que se encerra no mundo das ideias, mas uma filosofia da prática cotidiana. A prática sem arcabouço teórico é perigosa e caótica; porém a teoria sem a prática é vazia e inútil, servindo apenas para devaneios filosóficos e especulativos.

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Imagem Pública

Não é sobre Madonna, mas poderia ser. Uma influencer (sabe-se lá o que realmente significa isso) faz uma série de transformações corporais, aumenta os lábios, puxa a pele do rosto, coloca silicone em vários lugares, perde 20kg (ou ganha), faz bronzeamento artificial, coloca “lentes” nos dentes, injeta Botox e transforma sua face em uma fotografia inexpressiva. Depois de tudo isso, publica sua imagem em várias plataformas. Olho as fotos que são jogadas na nossa cara pelas redes sociais e penso: “A modificação visual dela ficou um horror. Está mesmo muito feio, basta comparar as fotos e ver como ela era lindamente imperfeita antes”. Abaixo das fotos inúmeros comentários, a maioria exaltando as modificações, mas muitos são debochados, outros bem humorados e alguns francamente ofensivos.

Imediatamente surgem os textões deixando claro que “o corpo é dela e ninguém tem nada a ver com isso”. Defesas aparecem do seu direito de mudar seu rosto como bem entender, como se alguém estivesse questionando a legalidade das mudanças corporais. Mas será que a imagem de alguém pertence apenas àquela pessoa? Seria justo silenciar um crítico de arte dizendo “O artista tem o direito de pintar como quiser, e você não tem nada a ver com isso”? Quem assiste não tem nada a ver com o produto? Para um ator sua imagem não é sua obra, seu trabalho? Será mesmo certo silenciar qualquer comentário sobre a imagem que um artista (nos) apresenta?

Por que estas “estrelas” de Hollywood não aprendem de vez que suas figuras públicas estarão eternamente sujeitas aos comentários alheios? Ora, quem desejar ser anônimo e não sofrer pelas avaliações negativas de sua aparência, basta trabalhar no escritório de um banco, longe dos olhares do público. E vejam: não se trata de defender ofensas, deboches, ataques sexistas, misóginos ou racistas; por certo que ofender alguém por sua aparência é deselegante e deseducado, mas não estar preparado para críticas quando uma figura pública faz transformações radicais na sua aparência é ainda mais inadequado.

Pessoalmente, não me importo com a atitude dos artistas sobre seus corpos, em especial as atrizes. Quer emagrecer, quer engordar, quer fazer os enchimentos da moda? Problema seu, máximo respeito às suas escolhas pessoais. Entretanto, sabemos o quanto estas mudanças só ocorrem em função do outro; elas não são feitas para oferecer satisfação a um sujeito isolado do mundo, mas para que esta mudança produza um impacto na forma como os outros o enxergam. Portanto, quem faz comentário sobre os artistas e sua imagem é o legítimo destinatário das transformações realizadas. Não há nada de incorreto ou invasivo: a forma e a intensidade como os outros nos impressionam pertence a nós. Sou eu quem vai ver seu rosto e suas formas, portanto é justo que tenha o direito de avaliar, julgar e comentar.

O que estas pessoas pretendem é a criação de um mundo onde ninguém critica nada ou ninguém para não correr o risco de ofender ou tocar em feridas narcísicas. Se esse mundo um dia vier a acontecer rapidamente vamos retroceder à idade da pedra lascada, já que sem atrito não há mudança, e sem ela obstaculizamos a possibilidade de progresso. Desta forma, não é justo reclamar e se vitimizar ao escolher uma nova face, um novo parceiro, um novo visual ou um novo gênero. Nossas escolhas afetam os outros e eles tem o direito de manifestar seu entusiasmo, seu apoio, sua aceitação ou sua inconformidade. Além disso, quantas vezes alguém respondeu um elogio dizendo “Sua opinião não me interessa. Guarde-a para si mesmo. Você está sendo invasivo”. Nunca, não é? Portanto, não é o comentário “invasivo” sobre suas cirurgias plásticas ou transformações: é a crítica, a inconformidade, e o fato de expor publicamente que não gostou dos resultados.

Sim, existem muitos “Juízes de Internet”, mas sejamos francos, quem não é? Quem aqui nunca julgou Lula ou Bolsonaro na rede social, inclusive usando do recurso do deboche, da sátira, do escárnio ou da ironia? Quer dizer então que não devemos julgar nada ou ninguém? Ou não devemos julgar apenas atrizes bonitinhas, frágeis, ingênuas e sensíveis – pelos menos assim se apresentam – para que não se sintam tristes? Ora, se eu fosse mulher me sentiria ofendida por acreditarem que a minha condição de mulher me impede de ser criticada, por ser frágil demais para suportar comentários negativos.

Sim, a defesa automática das mulheres é geralmente misógina, porque aposta na fraqueza e na infantilidade delas, que assim precisam ser protegidas das mesmas críticas que, de forma cotidiana, fazemos a qualquer homem na confiança de que ele vai suportar as críticas e responder de forma firme e autônoma.

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Torcedor

Criança: paiê, compra aquele brinquedo!!
Pai: não tenho dinheiro.
Criança: não precisa, passa o cartão.
Torcedor: presidente, compra aquele jogador!
Presidente: não há dinheiro.
Torcedor: não precisa, passa o cartão.

Torcedores são como crianças exigindo que o papai lhes ofereça o deleite de suas fantasias. Na condição de aficionados pelo nosso clube, agimos como garotinhos buscando a satisfação de nossos desejos sem perceber o custo implicado nessa tarefa. “Ora, os adultos que se virem para me garantir o que mereço”. Em verdade, muito mais chocante que a revelação da sexualidade infantil é a demonstração cotidiana da infantilidade renitente dos adultos. Por mais que venhamos a crescer, existem resquícios da nossa infância que não desaparecem jamais, tamanho o apego que devotamos ao nosso universo psíquico, infantil e dependente.

Esse é o grande dilema do futebol, na perspectiva do torcedor: para torcer por seu time é necessário abrir mão da razão e mergulhar de olhos fechados na absoluta irracionalidade das paixões. Por isso aceitamos o pagamento absurdo e doentio dado aos jogadores, tratados como príncipes, milionários e mimados. Por isso oferecemos aos jogadores tanto poder. Mas não apenas garantimos esta distinção a eles, como tambem para toda a legião de profissionais que vivem às custas dessa neurose coletiva, como comentaristas, repórteres, analistas, influenciadores, etc.

É por estas razões que qualquer sinal de racionalidade e bom senso no trato com as coisas da bola é visto como um ato perigoso, pois que toda a indústria do futebol se assenta sobre um personagem que precisa ser necessariamente impulsivo e infantil: o torcedor. Hoje, o futebol moderno aos poucos expulsa o sujeito comum das coisas do futebol. Não vai mais aos estádios, não compra a camisa oficial do clube e sequer convive com seus ídolos, escondidos em condomínios de luxo afastados da cidade. Agora o torcedor é buscado nas redes sociais, no Twitter, no Instagram, Facebook, etc. A respeito disso, há poucos dias vi uma discussão entre dois jogadores no fim de uma partida onde o xingamento utilizado, ao invés do tradicional filho da p*ta foi:

– Quem é você? Você nem tem seguidores!!!

Não importa se tem gols, defesas, campeonatos vencidos e taças erguidas. No futebol moderno – e no mundo dos boleiros – vale quem tem mais seguidores. Estes são os novos “torcedores”, mas não veja isso como um avanço; estes também precisam ser igualmente irracionais.

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Cavalo de Troia

Durante a crise surgida pela emergência da epidemia Covid 19 há alguns anos, ficou claro para mim que o debate havia se tornado politizado desde o primeiro momento. De um lado o presidente Bolsonaro e sua turma, entre os quais se destacavam alguns médicos que acreditavam nas perspectivas heterodoxas para o combate à doença; do outro lado aqueles que tinham as vacinas como a resposta certa, a despeito do pouco tempo para avaliar sua efetividade e segurança. Entre as personalidades mais ferozes contra o presidente Bolsonaro e sua posição “antivacina” estava uma bióloga chamada Natália Pasternak. A esquerda, para se contrapor ao presidente, a acolheu de braços abertos, tratando-a como uma luz de racionalidade científica no meio das trevas bolsonaristas. Pouco tempo depois lançou um livro com seu marido onde se dedica a atacar o que considera “anticiência”, atirando para todos os lados e atingindo especialidades como psicanálise, homeopatia e etc. Esse livro acabou gerando desconforto entre os pensadores que discordavam de sua posição claramente positivista, o que lhe valeu críticas até daqueles que anteriormente haviam aplaudido sua posição pró vacinas.

Sempre olhei para o debate sobre o uso das vacinas com viva curiosidade, porque quando tanto interesses capitalistas estão em jogo jamais se restringe a uma questão meramente científica como se esperaria, mas uma guerra política e econômica. Aliás, até hoje ambos os lados do debate apresentam estudos mostrando a validade dos seus pressupostos, o que, via de regra, torna impossível para um leigo tomar uma decisão informada baseada apenas nestes informes. De qualquer maneira, a alternativa vacinal que ela defendia se tornou vitoriosa, aqueles que defendiam medicamentos como Cloroquina ou Ivermectina foram tratados como hereges, a epidemia terminou e agora resta saber como evitar a próxima. Por certo que muitas dúvidas restam, e em alguns lugares o debate sobre a conveniência e segurança das vacinas se mantém extremamente ativo.

O que agora chamou a atenção de muitos foi o fato de que uma das “heroínas” da esquerda no debate das vacinas assinou uma carta de repúdio à posição do governo Lula de apoiar a ação da África do Sul que acusa de genocídio a mortandade patrocinada por Israel contra a população palestina. Natália Pasternak, por certo, apoia Israel e suas ações contra os palestinos, e se posiciona na contramão da esquerda mundial que repudia o massacre feito em nome do colonialismo europeu no Oriente Médio. Sua posição de agora chocou a muitos, mas outros perceberam desde o princípio onde isto terminaria. Esta talvez seja a mais importante lição: para enfrentar as posições de um presidente fascista como Bolsonaro em função do seu ataque às vacinas, os esquerdistas ingênuos acabaram abraçando personalidades da direita, francamente autoritárias e ligadas ao sionismo como ela. Agora procuram justificar seus elogios pretéritos enquanto tentam se distanciar de alguém que apoia um massacre bárbaro e covarde.

Mas esta não é a primeira e sequer a última das mancadas da esquerda ingênua. O mesmo pode ser dito para as identitárias que abraçaram como uma “irmã” a mitômana Patrícia Lélis – inclusive exaltada pela “Socialista Morena” – apenas por ter feito acusações não comprovadas contra o Pastor Feliciano, e ataques infantis que atingiam a masculinidade do filho do Bolsonaro – igualmente falsas. Ou seja, para uma parte considerável da esquerda, bastaria uma posição contundente contra figuras proeminentes da direita para que fosse tratada como uma heroína ou um bastião da moralidade contra a corrupção e o fascismo. Pois agora a antiga “aliada feminista”, que achincalhou personagens do fascismo bolsonarista, está sendo procurada por uma série de fraudes cometidas nos Estados Unidos. Como ficam agora aqueles que a abraçaram com tanto carinho? Sim, ela foi realmente expulsa do PT há algum tempo, mas ainda assim tem muitas admiradoras e apoiadoras nas hostes da esquerda brasileira.

Que dizer então de quem ainda agora grita o nome do golpista Alexandre “Temer” de Morais como se fosse o paradigma da democracia? Por que boa parte da esquerda continua citando o nome de um golpista, antidemocrático, líder do golpe contra Lula e voz principal nos ataques à liberdade de expressão, tentando nos impor uma sociedade de vigilância onde impera a “censura do bem”? Por que ainda insistimos em tratar Alexandre de Moraes como uma figura positiva para a política brasileira? Quem não sabe reconhecer aliados, merece estes humilhantes “cavalos de Troia”. A esquerda precisa sair da 5a série e entender que nossa luta é contra o capitalismo e sua prática de exclusão; é contra a política burguesa e sua sociedade dividida entre escolhidos e serviçais. Precisamos ser seletivos quando escolhemos nossos líderes e símbolos. Esses personagens da direita infiltrados em nossos domínios não podem jamais receber nosso beneplácito.

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Senectude – ou Crepúsculo

Chega um tempo em que a fragilidade dos corpos nos obriga a abrir mão de um dos bens mais preciosos: a autonomia, valor que tanto exaltamos quando tratamos dos direitos humanos mais elementares. Todavia, em algum momento da existência precisaremos deixar a autonomia em nome da manutenção da própria vida. Esse é um tema que percorre a vida de quase todos, e eu mesmo passei isso com meus avós paternos e minha mãe. Em um determinado momento nossos familiares – em especial os avós e depois os pais – perdem sua independência e sua autonomia em função da fraqueza, de alguma doença, da idade avançada ou das perdas cognitivas. A forma de reagir a esta situação é variável, mas ela estará inscrita nos detalhes de toda a vida pregressa de quem envelhece, e por isso é muitas vezes possível prever como cada um lidará com este evento.

Muitos, como meu avô, lutaram contra a inexorabilidade da sua dependência; resistiu o quanto pode, mas foi literalmente carregado à força para fora de casa. Outros, como minhas avós, minha mãe e minha sogra, aceitaram de forma mais tranquila, como se esta passagem fosse uma parte natural da vida – alguém cuidaria delas como elas cuidaram de tantos durante suas vidas.

Talvez aqui seja possível estabelecer uma diferença essencial entre a vivência da senescência para os homens e para as mulheres, mesmo sabendo que esta vivência será sempre única e pessoal. Para os homens a perda da autonomia é muitas vezes vista como um golpe mortal em seu amor próprio. Retire-o de seu domínio e ele se tornará vulnerável, fraco e impotente. Por seu turno, muitas mulheres (todas da minha família) se comportam de forma dócil e aceitam o fato de que, em algum momento, é chegada a hora de serem cuidadas e amparadas, da mesma forma como o destino determinou que cuidassem de tantos filhos e netos. Já meu pai sempre disse que não aceitaria os cuidados de ninguém. Deixou isso claro quando ficou viúvo aos 90 anos e não aceitou se mudar para a casa de qualquer um dos filhos. Quando, por fim, adoeceu, morreu muito rápido, sem se submeter à “tortura” de viver sob os cuidados de alguém. Antes dele meu avô, por sua vez, xingou, sapateou e nunca perdoou meu pai por tê-lo retirado de sua casa, mesmo quando sequer conseguia se mover. Nunca aceitou “viver de favores”.

Para o homem sua casa é seu mundo, e de minha parte, já reconheço de que material sou feito. Portanto, não tenho dúvida alguma de que também vou resistir até onde tiver força. Viver sob o cuidado alheio é humilhante para quem sempre valorizou a liberdade e a autodeterminação.

Algum momento, entretanto, haverá em que alguém chegará ao meu ouvido e dirá: “Pai, não dá mais. Chega. Não vamos aceitar ver você sofrendo por este orgulho insano. Você terá que sair de onde está e ficar sob os nossos cuidados”. Nesse momento eu saberei que não tenho como me defender e, mesmo resistindo, serei obrigado a aceitar. Diante desse destino inescapável, eu já me preparo para perdoar meus filhos e netos pela palavras duras que sei que vou ouvir; é melhor fazer isso enquanto ainda existe lucidez suficiente. Aceitar o declínio da vida é preparar-se lentamente para a morte. Antes mesmo, quando percebemos nossa sutil e crescente desimportância na tessitura da vida, já é o momento de compreender que estas são as suas sábias regras, e que cabe tão somente aceitar o quinhão que a nós é determinado.

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Nudez perversa

As redes sociais e o jornalismo independente destruíram em poucos anos a imagem falsa de Israel como “a cidade no meio da selva”, que durante décadas nos fez pensar que a “única democracia no Oriente Médio” era uma ilha de civilidade em meio à barbárie.

Não passavam de mentiras, narrativas falsas para nos afastar da dura realidade: Israel é um antro de perversidade, uma nação falsa e artificial criada pela expulsão dos seus moradores e controlada por fanáticos e assassinos genocidas, racistas da pior espécie, o que tornou a população de Israel a mais desprezível do planeta. Bastou que as informações viessem dos dois lados – mostrando a realidade dos palestinos – para que o mundo percebesse o horror da ocupação, a vergonha do Apartheid e a indignidade de um campo de concentração a céu aberto como é Gaza.

O exército sionista, por sua vez, recebe orientações claras para matar crianças, mulheres, jornalistas e o pessoal em serviço na atenção médica. Ficou claro que estas não são baixas colaterais, mas o objetivo principal das bombas sionistas. Já as pessoas por trás dessas ordens – os militares sionistas – são os piores seres humanos que jamais pisaram a Terra, conduzidos por uma ideologia segregacionista e supremacista, baseada em três pilares:

1- o mito do povo escolhido
2- o mito da eterna vítima das perseguições
3- a desumanização dos palestinos

Essa ideologia fascista oferece o suporte para as ações covardes, os ataques destrutivos, os assassinatos, a limpeza étnica, o desprezo pelas outras etnias e os massacres que se direcionam em especial às crianças. Por outro lado, a liberdade de expressão que ocorreu como efeito colateral das redes sociais acabou demonstrando que a narrativa sionista é produto de mentiras grosseiras, e que o “povo escolhido” nada mais é do que um grupo de abusadores e colonos racistas, cuja perspectiva de mundo é fundada no supremacismo racial e no uso da força bruta como forma de apropriação do que é, por direito, dos nativos da Palestina.

Não há povo mais bravo e resiliente que o palestino, que sacrifica sua própria vida em nome da liberdade e da autonomia. É impossível destruí-los porque não se destrói uma ideia. Já os sionistas, estes estão derrotados, seja na batalha direta contra os guerreiros palestinos da resistência ou seja pela mudança radical da opinião pública sobre os crimes de genocídio, limpeza étnica e racismo cometidos contra a população original da Palestina. Israel não sairá impune desse crime cometido contra toda a humanidade.

Racismo, nunca mais,
Limpeza étnica, nunca mais,
Sionismo, nunca mais,
Imperialismo, nunca mais!!

A Palestina vive e respira por cada um de nós. Não deixe de falar sobre o massacre. Denuncie os racistas!! Boicote a todo e qualquer produto, serviço, artista ou acadêmico que represente o Estado Terrorista de Israel.

Não vamos esquecer o que Israel fez às crianças da Palestina. Jamais. Até comparar Israel com os adoradores de Adolf é injusto, porque o criminoso nazista nunca determinou que o alvo de seu ódio fossem especificamente as mulheres e crianças indefesas. Esta guerra – de um estado poderoso contra um povo – já foi perdida pelos sionistas, inobstante as mortes que ainda continuam a promover entre a população de Gaza e da Cisjordânia. Entretanto, depois de tanta violência, o mundo jamais verá Israel como outrora. Despida da capa de mentiras construída pela imprensa corporativa corrupta, agora todos podemos ver – quase sem censura – a obscenidade de sua essência perversa.

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Lugar que cala

Vou falar de um tema que sempre me atingiu de forma pessoal: a ditadura dos “lugares de fala”, um recurso utilizado há muito tempo por grupos identitários que afirmavam que somente aqueles que tivessem sofrido na pele um determinado problema (pobreza, racismo, machismo, lgbtfobia, etc) poderia tratar do assunto. O mantra é “Se você não é (mulher, preto, gay, latino, pobre…) apenas cale-se e escute”. Ou seja: estamos diante do “Império dos Sentidos” onde somente aquele que sentiu algo diretamente têm o direito garantido de falar e ser escutado. Todo aquele que porventura tenha estudado e se dedicado ao tema está condenado a ter uma opinião de “segunda classe” ou, pior, sequer ter acesso à fala. Eu acho que qualquer um que critica o autoritarismo identitário, está muito correto, e por diversos aspectos. O “lugar de fala” serviu desde sempre como “lugar que cala”. Ou seja, se você é preto tem o direito de calar todos “não pretos” quando o assunto é negritude, como se a sua vivência fosse o único qualificador, negando o direito de expressão de todos aqueles que se dedicaram a estudar o tema. Assim ocorre o mesmo com a violência, as orientações sexuais, a identidade de gênero, a Palestina, a pobreza, a mulher etc. Existe um “passe” identitário para tratar de temas específicos.

Por ser um obstetra homem, impossibilitado de parir, sofri a vida inteiro este tipo de constrição sempre que tratei dos temas ligados à gestação, parto, puerpério ou amamentação. Havia (e ainda se mantém, ainda que com menos intensidade) a ideia (explícita ou implícita) de que só as mulheres poderiam falar dos eventos relacionados ao parto, o que sempre me pareceu equivocado, porque é possível falar do parto na perspectiva dos direitos humanos, da fisiologia, da reprodução, da genética, e tantos outros aspectos sem ter passado pela experiência específica de parir. A única coisa que não há como falar é sobre a vivência de parir, pois que só quem teve o corpo marcado por ela pode tratá-la com cumplicidade e proximidade.

Por isso sempre tive o cuidado de afirmar que não terei jamais a capacidade de descrever como é gestar e parir numa narrativa de primeira pessoa; posso no máximo descrever o fenômeno pela percepção do outro. Sempre afirmei que ignoro por completo como é carregar um filho no ventre e todas as nuances e significados do trabalho árduo de separá-lo de si no parto. Entretanto, isso não deveria impedir que se discuta a questão do parto por todas as suas outras facetas, até porque quem não o sente no corpo que pariu, por certo o viveu em seu corpo parido, e isso diz respeito a todos aqueles que passaram ou passarão por este momento.

Sobre as vozes dos homens nos saltos transformativos da atenção ao parto, pensem o que seria da humanização do nascimento sem a visão do ambiente nos livros de Grantly Dick-Read e o círculo vicioso de medo-tensão-dor. Como estaria a atenção ao parto não fosse “parto sem Violência” de Leboyer, e o nascimento na perspectiva de quem nasce? Como estaria o mundo sem a visão ecológica de Michel Odent, a revolução das doulas e da conexão mãe-bebê sem Klauss & Kennell? Sem Marsden Wagner, como saber a importância dos paradigmas hegemônicos que regulam o nascimento a despeito das descobertas científicas que apontam para um ponto oposto? Sem o exemplo de Galba de Araújo, como saber a importância do serviço público e seu impacto nas mudanças qualitativas e quantitativas na atenção ao parto com recursos simples e acessíveis? E que seria de tantos outros homens anônimos que dedicaram suas vidas ao cuidado, mesmo alijados da experiência direta de parir? Deveriam silenciar e aguardar décadas até que uma mulher tivesse a perspectiva que tiveram? Seria justo calar-se diante de uma postura tão autoritária e abusiva?

Não há sentido em afastar os homens do debate sobre parto, mas também nada justifica calar qualquer um sobre as questões tão relevantes do nosso tempo. O movimento pela Palestina mostrou de forma muito clara que, mesmo não sendo palestinos, somos parte da mesma humanidade e desejamos um mundo sem o racismo sionista, a ocupação e a limpeza étnica protagonizadas por Israel. Por fim, o fato de ser humano me garante o lugar de fala para expressar aquilo que é humano, e tudo que é humano me afeta e pertence. Ou, como diria Terentius Afer, “nada do que é humano me é estranho”.

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As Dores do Parto

Poucos temas tem tanta relevância cultural quanto o debate sobre a dor do parto. Desde a famosa “parirás com dor e sangrarás todos os meses”, que na Bíblia estabelecia a pena para a luxúria feminina e o abandono do paraíso, até a epidemia de analgesias obstétricas, tudo gira em torno da dor da expulsão fetal e o sacrifício (sacro ofício) das mulheres em nome da manutenção da espécie. Esta valorização da dor materna, como todo elemento cultural, é diferente quando analisamos culturas, geografia e tempos distintos.

A dor do parto pode se manifestar em uma gama infinita de apresentações, transitando dentro de uma variação que vai desde aquelas dores absolutamente ausentes até aquelas descritas como extremamente fortes, no limite do suportável. Por esta variedade e sua conexão com os estados da alma, podemos descrever a dor do parto muito mais como um “sentimento” e uma amálgama de sensações físicas e emocionais, do que como um fato objetivamente mensurável. Para qualquer investigador mais sério, fica muito claro que é impossível analisar objetivamente um fenômeno absolutamente subjetivo, pois que as contrações e a dilatação cervical ocorrem num arcabouço psíquico único e irreprodutível.

Algumas mulheres vão descrever tais dores como excruciantes enquanto outras referem que mal sentiram uma leve sensação de pressão – a qual sequer poderiam chamar de dor. Também é claro que a dor do processo de parturição é aumentada ou diminuída de acordo com as expectativas de dor de cada sujeito. Os ambientes de parto no ocidente, frios, impessoais e invasivos, com pessoas desconhecidas que não transmitem confiança e privacidade, também concorrem para o incremento da percepção dolorosa.

Luís Miguel Torres, presidente da Sociedade Espanhola de Dor Multidisciplinar, disse à AFP que a ideia da dor insuportável que pode ser medida “não existe no mundo clínico nem no de pesquisas” e assegurou que “é invenção de alguém, que não tem nenhum fundamento, nenhuma base científica”. Dominique Truan, ginecologista obstetra da Universidade do Chile, também explicou: “A dor é muito subjetiva, muito pessoal, muito sobre o contexto”. E apontou que é fantasioso falar em “unidades de dor”. Mario Sebastiani, doutor em medicina e obstetra do Hospital Italiano de Buenos Aires, disse em uma recente entrevista que a dor “é uma das questões mais controversas da medicina, já que não há medidores de dor eficazes”. (em “O Estado de Minas“)

Assim sendo, a dor do parto não é um “mito”, uma fantasia ou uma fabricação cultural, mas é um evento sobre o qual a cultura determina um valor específico, de acordo com os tempos e latitudes. O ocidente contemporâneo lança sobre ela uma lente de aumento, cujo objetivo é empoderar quem controla a intervenção e a analgesia química. Culturas diferentes, como as culturas nativas do Brasil, não descrevem a dor do parto como os descendentes de europeus, dando uma ênfase muito menor à dor de parir.

Percebe-se, então, que essa caracterização da dor do parto como “extremamente violenta“, “insuportável” “a pior das dores”, “algo que os homens não suportariam”, “igual a 20 ossos quebrados” ou “acima do limite que os humanos suportam” etc., é uma criação moderna, sem qualquer comprovação científica, cujo objetivo sempre foi empoderar as corporações, sejam elas os hospitais e/ou a instituição médica, em especial a dos anestesistas, justificando ideologicamente a intensa invasão tecnológica do processo de parir.

Hoje sabemos que a maior responsável pelas “dores de parto” contemporâneas é a violência obstétrica institucional, que não oferece às mulheres as condições físicas, ambientais e psicológicas para o parto fisiológico. Isso ocorre pela incapacidade do sistema médico obstétrico em compreender as necessidades emocionais, afetivas, psicológicas e espirituais das mulheres que enfrentam os desafios do parto.

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Parto com Jesus

Recebo através de amigos a noticia de que a EACH (USP Leste), aprovou em seu currículo um curso de extensão (não obrigatório) chamado “Parto e Espiritualidade Cristã”, com os seguintes objetivos:

“Refletir a espiritualidade em suas etapas fisiológicas: concepção fetal; desenvolvimento e crescimento fetal; e no processo do parto, nascimento e pós parto. ( …) O curso respeitará a abordagem cristã ao apresentar cada temática com seu arcabouço teórico e científico.” O texto ainda cita os gametas, o núcleo familiar composto pela dualidade homem-mulher, assim como sua importância na estrutura do tecido social.

Ora, se o parto faz parte da vida sexual normal de toda mulher, então é justo afirmar que as mesmas leis gerais que regem um controlam também o outro. Assim, se é corriqueiro testemunhar o sexo enquadrado pela fé cristã, como se pode ver nos inúmeros cursos sobre o tema, seria de se esperar que os fenômenos da gestação, parto e amamentação sejam igualmente controlados pela mesma ideologia cristã. A sedução em controlar a sexualidade humana sempre foi um dos pilares de sustentação do patriarcado. Em verdade, sexualidade e parto são duas forças extremamente poderosas da natureza sobre as quais faz-se necessária a domesticação, para que sua potência criativa seja utilizada de forma eficiente. Para o patriarcado nascente era essencial que tamanho poder fosse submetido aos interesses produtivos da sociedade complexa, a qual se iniciou após a revolução do neolítico.

Por outro lado, a humanização do nascimento, um movimento de mulheres e profissionais da atenção ao parto que luta pela mudança do paradigma obstétrico – inclusive sendo inspiração para a criação de escolas de obstetrizes como esta da EACH – se instala no polo oposto dessa proposta. A visão humanista que estes profissionais defendem há décadas não admite a existência de torniquetes ideológicos de qualquer natureza, sejam eles políticos, étnicos ou religiosos. Para estes grupos, existe a clara certeza de que, se há algo que precisa ser livre das constrições impostas pela cultura, sem as amarras determinadas pelo capitalismo e o patriarcado, este fenômeno é o parto. De uma forma clara, o trabalho mais nobre do movimento de humanização do nascimento é o resgate dos seus aspectos selvagens, primitivos e pulsionais, pois que a cultura, as religiões, a moral e quaisquer outras forças sociais atuam como condicionantes negativos para a livre expressão dos processos psíquicos e sexuais do parto. Desta forma, a tarefa dos profissionais que se ocupam do nascimento é criar um círculo de proteção em volta da gestante, mesmo sabendo que, por estar imerso na cultura, é impossível não ser tocado por ela.

Ou seja, um “parto cristão” – mas poderia ser islâmico, budista ou ateu – é o oposto do que propomos há décadas, que se resume na liberação das capas de condicionamento cultural que atrapalham a livre expressão fisiológica do parto. Lamentamos a criação de cursos que vinculam o nascimento humano a qualquer corrente religiosa, pois que a verdadeira religião do parto é o gozo da vida.

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Ilusão

Ilusão, ilusão, veja as coisas como elas são… (Chico Buarque)

“Ahhh, mas ela veste o que quiser e ninguém tem nada a ver com isso”.

Acreditar que uma mulher (mas poderia ser um homem nu) se “veste para si mesma” é uma das mais antigas formas de auto ilusão. Não vivemos isolados em ilhas. Talvez Robinson Crusoé ou o náufrago Tom Hanks de “Cast Away” tivessem essa atitude, mas não nós, seres sociais. Roupa é linguagem, é metáfora, é simbólica; é a vestimenta que, ao mesmo tempo que nos esconde e nos interdita ao olhar do outro, desvela nossos conteúdos internos através de códigos sutis. Também muitos dizem que críticas sobre as roupas não caberiam aos outros (em especial os homens), pois que ninguém pode impedir que uma mulher use o que bem entender – o que seria igualmente falso, mas pelo menos não negaria os elementos eróticos das roupas que usamos para cobrir – e revelar – nossos desejos.

A ninguém é dado o direito de ir ao trabalho vestindo apenas cuecas ou de biquíni, sequer dar uma aula de sutiã e calcinha. Ou seja: existe um “dress code” que deve ser obedecido, o qual será determinado pela cultura onde estamos inseridos. Essa história sobre “ela veste o que quiser” todos sabemos que não é verdade; é apenas slogan, palavras de ordem, pois que homens e mulheres obedecem a fatores externos à sua vontade para se vestirem; ninguém é plenamente dono do que veste sobre o corpo. E está certo quem diz que as roupas servem para sequestrar o olhar. São para isso mesmo, para seduzir, exaltar virtudes – quadris, ombros, tórax, seios, lábios – que reforçam os aspectos eróticos do corpo. Essa “inocência” no uso das roupas é falsa; somos todos mamíferos eróticos e entendemos o quanto nosso corpo pode ser um foco de desejo ao olhar alheio.

As outras pessoas são espelhos do impacto que causamos nelas. Escutei há muitos anos uma história do Sartre bem interessante sobre o tema. Certa vez, ao caminhar por um boulevard em Paris, comentou com o amigo que o acompanhava: “Que linda essa mulher que está uns passos atrás de nós”, ao que o amigo lhe respondeu: “Como sabe que é linda se está atrás de nós?“, ao que Sartre sorrindo respondeu “Ora, basta observar o olhar dos homens para ela quando caminham em nossa direção”. Sartre percebeu o impacto que ela – seu corpo e a extensão dele, a roupa – fazia nos homens que tinham a feliz experiência de cruzar o seu caminho.

Na escola aprendi um velho adágio inglês que dizia “There´s more to clothes than to keep warm”; ou seja, existem muito mais nas roupas do que o simples desejo de se aquecer. Elas são acessórios do erotismo humano, e ninguém as usa impunemente. Sim, é sedutor usar a bandeira da liberdade de se vestir, mas é injusto acreditar que a única razão para cobrir a pele da forma como deseja não seja exatamente estimular o desejo em quem nos vê. E essa consciência não significa que devemos voltar a uma forma arcaica de “decência” e pudor, obstaculizando essa livre expressão libidinal, mas pelo menos deveria impedir a ingenuidade de afirmar que alguém se veste a despeito do impacto que causa nos outros. Pessoas são seres de erotismo, e não há nada em nossas ações que não esteja carregado dessa força atrativa.

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