Arquivo do mês: maio 2020

Vigilância fetal

Sobre vigilância fetal:

Minha pergunta é simples, até singela: haverá uma justificativa comprovada dos benefícios da vigilância ostensiva sobre o bem estar fetal se forem retirados todos os condicionantes tecnocráticos da assistência ao parto?

A ausculta fetal faz parte do cenário da assistência ao parto, assim como os exames de toque sequenciais e sistemáticos. Estes últimos só agora – e muito timidamente – começam a ser questionados. Já a ausculta se mantém intocada e impávida. Ambos os exames produzem poderosas mensagens subliminares: o profissional é quem diz do andamento do parto, e estabelece o bem estar do bebê. Só ele tem o livro de códigos para saber o que houve, quanto falta e se tudo está bem. As mulheres e seus maridos são passivos observadores da tradução que o profissional faz a partir destes sinais. Um poder gigantesco, acreditem…

Porém, sempre houve em mim uma dúvida corrosiva sobre a real necessidade destas invasões, ou quais os limites desta intervenção. Se fosse possível eliminarmos o stress, o isolamento (físico e psíquico), o medo, o pânico induzido, a separação, as drogas indutoras, os anestésicos, a linguagem agressiva e a própria hospitalização – ápice da objetualização da gestante – continuaria sendo válido o tratamento do bebê como “bomba relógio”, prestes a explodir? Qual o real percentual de bebês que produzem transtornos perceptíveis em partos livres do artificialismo da medicina atual? Talvez ninguém tenha essa resposta…

Quem sabe esta ação panóptica sobre o bebê se justifica apenas pelo ordenamento tecnológico que o antecede?

Será esta ausculta o resultado natural que criamos para remendar o estrago anterior criado pela profunda desnaturalização do parto pelas culturas contemporâneas?

Parto desnaturalizado = punch 1
Vigilância fetal = punch 2

Ou…

A polícia brutal que temos e a vigilância sobre pretos e pobres não é o resultado da sociedade de classes? Eliminadas as castas e a brutalidade de sua injustiça quanto ainda precisaríamos de polícia?

Creio que tratamos como necessidade o que é, em verdade, a criação artificial derivada de uma deturpação.

Não é?

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Arquivado em Medicina, Parto

Antipetismo

Qual é, afinal, o tamanho desse “antipetismo”? Lula terminou seu mandato com 87% de avaliação “bom e ótimo”. O PT produziu um candidato à galope e conseguiu 45 milhões de votos e a maior bancada do congresso. Todas as pesquisas indicavam a Vitória de Lula na eleição passada, quando foi vítima de um golpe jurídico-midiático de difamação.

O antipetismo é uma criação de mídia diante de uma real insatisfação de setores da classe média com o partido dos trabalhadores, mas com dimensões claramente infladas. Hoje sobrevive apenas com patéticos editoriais do Estadão para sobreviver. O PT é o maior partido de esquerda democrática do mundo, e tem mais seguidores do que todos os outros partidos somados. Tem diretórios em praticamente todas as cidades brasileiras e vários governadores no Nordeste.

A ideia do “antipetismo” é muito mais um desejo das classes dominantes do que o fracasso de um partido ou de suas propostas. Um partido que quebrou recordes de aprovação não poderia sucumbir em apenas uma década. Disseminar esse falso consenso sobre o PT e as esquerdas é atacar a realidade dos fatos e fazer o jogo dos conspiradores.

PS: não sou petista. Sou gremista…

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Idolatrias

A presença de Sara Inverno nas manifestações pelo parto humanizado e pela autonomia da mulher na escolha pelo local de parto deveria nos fazer pensar de forma muito séria sobre a idolatria e a exaltação de personalidades. É por estas posturas que deveríamos ser muito cuidadosos na exaltação de indivíduos para além da ideia que carregam. A vinculação dela com o direito ao parto domiciliar se parece com a adoção do vegetarianismo por aquele outro personagem sombrio da Alemanha, que hoje em dia é usada como exemplo do perigo de colocar alguém no pedestal olhando para apenas para uma faceta de sua personalidade

Já do lado das vanguardas, fugir da sedução da idolatria é uma tarefa das mais difíceis. O amor direcionado às figuras de destaque é visto como “reconhecimento”, “carinho”, “merecimento”, “justiça”, mas em verdade esconde partes sombrias do nosso psiquismo como a idealização e a projeção.

Mais importante ainda é o “backlash”, a “volta”. Toda a adoração é um pagamento por um serviço prestado. Quem faz essa oferenda espera o retorno, que pode ser através do reforço de nossas crenças. Quando o ídolo resolve dizer algo que se afasta da cartilha que produziu sua idolatria, a decepção é nítida. O problema, a partir daí, passa a ser de contabilidade.

Sim…. como receber de volta todo o investimento afetivo colocado na figura de destaque? “Depois de todo o apoio que lhe demos, como ousa nos dar as costas?”. É aqui que aparece a genialidade do poema cru e dolorido de Augusto dos Anjos

“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”

Não foram poucos os ídolos assassinados pelos seus maiores adoradores. Mark Chapman matou John Lennon e Yolanda Saldívar matou Selena ao perceberem que a dívida do seu amor não poderia ser paga. Mas estes são extremos: o amor ao cigarro produz os mais insanos antitabagistas, assim como os piores fascistas são ex-comunistas.

A história está repleta de exemplos desse fenômeno. Vejo isso até nos casais: atrás de uma paixão avassaladora se ergue uma gigantesca sombra. Quando escutava no consultório uma exaltação aparentemente exagerada de um(a) parceiro(a) eu tremia. Em silêncio refletia nos perigos de tamanha idealização. E mais: diante de tal exaltação como seria possível lidar com a inevitável frustração diante das falhas, erros e pequenas traições?

Arrisco dizer que os maiores ódios nasceram das mais intensas paixões. Não é essa uma das histórias mais prevalentes na literatura?

Ter uma relação menos apaixonada com figuras de destaque é importante para a sobrevivência das ideias. Deixar que estas personalidades cresçam mais do que as propostas que carregam é um passo para a cristalização de qualquer projeto. Mais seguro é desinstituir-se dessas posições, apagando o brilho pessoal (ou controlando-o) em nome das construções coletivas.

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Harry Potter

Não leia se você adora Harry Potter…

Estou assistindo com Zeza um filme por dia da coleção Harry Potter. Ontem vi o “Cálice de Fogo” onde aparece uma competição tipo uma Olimpíada das Escolas de Bruxaria. Harry foi “escolhido” para representar Hogwarts e precisou enfrentar um dragão, mergulhar sob a água e enfrentar monstros marinhos para salvar seus amigos do afogamento e depois entrar num labirinto em que as paredes tentavam lhe agarrar. Em todas essas etapas os competidores podiam morrer, e no final realmente um dos alunos morre!!! (desculpe o spoiler…)

Eu pergunto: quem colocaria seus filhos numa escola dessas? Quem aceitaria participar de competições em que você – ou seus amigos – podem morrer se você chegar um pouquinho atrasado?

Achei engraçado o diretor da escola explicando depois “pois é, infelizmente um dos alunos morreu durante os jogos”. No fim, fizeram uma festa de despedida.

Sei que a série tem fãs ardoroso, mas não consigo entender o endeusamento de filmes com roteiros tão absurdos.

Obs1:  sei que eles são bruxos e que se trata de um universo paralelo, mas também nesse mundo alternativo os jovens morrem. E eram competições, não uma guerra!!! Devia haver mais respeito pela vida de adolescentes. As atividades dessa escola são absolutamente insanas.

Obs2: quem inventaria um jogo ridículo como “quadribol”??? Imagine você jogando aquele basquete com vassouras, se esforçando ao máximo, vencendo de 5 x 0 e de repente escuta o apito do juiz dizendo que o jogo acabou. Sim, recebe o aviso de que seu time perdeu (??!!!) porque a 2 quilômetros dali um menino conseguiu pegar uma bolinha no ar. Pense num Fla-Flu em que o Fluminense está ganhando de 3 x 0 e o juiz apita dando a vitória para o Flamengo porque, ao lado do campo, duas crianças de cada um dos times jogavam pingue-pongue e quem ganhasse este jogo seria o vencedor do Fla-Flu. Faz sentido???

Outro problema é o “limite das mágicas”, algo que acontece nos filmes do Harry Potter mas também no Ultraman e até nos desenhos do Shazan.

No Harry Potter os caras fazem batalhas em que mandam raios uns contra os outros. Ficam se atacando mutuamente até que o mocinho – o cara do bem – diz um palavra mágica e o seu adversário explode, vira fumaça ou desaparece. O Ultraman fazia o mesmo: ficava meia hora apanhando até o botão no peito indicar que a energia estava acabando. Só então ele dava um raio nas paletas do bicho e dividia o monstro no meio. Por que não fez no primeiro minuto da briga???

Quem brigaria desse jeito, apanhando pra caramba até o final, se podia terminar a luta em segundos bastando para isso usar seu melhor truque? Sim… eles mesmo: os lutadores de luta livre. Só eles…

O Shazan era pior. Ele lutava contra os inimigos, mas suas mágicas eram todas “God Mode”. Invencíveis. Impossíveis de suplantar. Até Homero percebeu que essas lutas eram sem graça e injustas. Nos seus livros Odisseia e Ilíada, que tratam da Guerra de Troia e o regresso de Ulisses para a Grécia, os combatentes, antes de se engalfinharem, perguntavam ao oponente “Diga lá, gajo: és um homem ou um Deus?” Para a mitologia grega um Deus era igual aos outros homens, apenas imortal. Qual sentido haveria em lutar com alguém que, por definição, não pode ser derrotado pela espada? A pergunta fazia todo sentido, e se fosse um Deus o oponente ia embora. Quem então lutaria contra Shazan sabendo que suas mágicas são impossíveis de vencer?

Se leu até aqui, consegue imaginar um assunto mais bobo que este?

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Paris e Nascer

Escrevi sem querer “Paris e Nascer durante a pandemia” ao me referir a um congresso que vai acontecer dentro de alguns dias sobre partos em tempos de Covid19. Paris, leia-se “Parir”. Desculpe, foi o corretor.

Todavia, fiquei pensando no roteiro de um filme onde a população do mundo todo acabou contaminada com uma doença que, ao ser transmitida para as grávidas, produzia bebês mutantes e zumbis que apenas se alimentavam de coca light e se acalmavam ao ouvir música sertaneja. (Nota: avisar ao produtor para colocar “Evidências” na trilha sonora).

Entretanto, a cidade de Paris era o único local para parir em paz, porque a pirâmide de vidro do museu do Louvre produzia um círculo de proteção energética sobre a cidade. Os partos em Paris não produziam zumbis, apenas parisienses comuns, e isso chamou a atenção de especialistas. Vírus? Radiação 5G? Ataque alienígena? Degradação das calotas polares e emanação de gases retidos no gelo? Como saber, e mais ainda, como salvar estas mulheres e seus bebês? Não havia tempo a perder.

O planeta estava em total caos, e os cientistas do mundo todo para lá afluíam na tentativa de descobrir a causa da pandemia e o efeito protetor da pirâmide. “Paris e Nascer” é um libelo pela proteção de gestantes das influências maléficas ocasionadas pela destruição sistemática do meio ambiente e uma saga de suspense, mistério e ficção científica onde a protagonista Jennifer McCalister (médica geneticista), seu marido Jeff Margullis (policial alcoolista aposentado do FBI) e seu filho de 7 anos Ambros (um gênio nerd) percorrem os labirintos da burocracia e a polícia corrupta para encontrar uma via segura para chegar a Paris, à cura e a um parto com segurança.

Castle Rock & The Glassman productions

Em breve nos cinemas

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Tragédias cotidianas

Não quero ler sobre esse fato do menino que faleceu aqui no Estado. Escutar os relatos me causa dor e angústia. Parece muito com aquela outra historia, igualmente brutal, do menino do Norte do estado, cujo pai é um cirurgião. Muito triste, muito desesperador.

Pior ainda é o fato de que a gente acaba se revoltando, sentindo raiva e indignação, mas o ódio é um ácido que corrói o próprio frasco que o contêm. Odiar é destrutivo, envelhece o corpo e calcifica a alma.

O que se segue a esses crimes é quase tão ruim quanto a morte em si: uma onda de identificações, ódio, ressentimentos eruptivos, raiva incontida e sentimentos de vingança. Esse clima é horrível. Eu lembrei agora imediatamente do julgamento dos Nardoni quando pessoas saiam de suas casas e iam para a frente do fórum com cartazes de “assassinos”, “pena de morte”, etc. Eu pensava: “O que move essas pessoas? Sãoo pessoas comuns, que souberam do caso pela TV!! Que gozo condenatório é esse?“. Depois eu pensava na turba ensandecida que gozava vendo os leões comendo criminosos no Circus Romano ou gargalhava olhando as bruxas sendo queimadas pela inquisição e penso que tais personagens continuam a existir nos dias de hoje, com cartazes no lugar de archotes, mas com a mesma raiva doentia a escorrer pelo canto da boca.

Pelo menos agora vejo pessoas se perguntando “o que leva uma mulher a cometer um ato de tamanha violência?“. Pois esta pergunta, que nos impele à empatia, é o que nos livra dos dedos apontados, da dureza, da inexorabilidade. Tentar se colocar nos sapatos de um criminoso e perceber o mundo através de seus olhos é uma tarefa tão difícil quanto sublime.

Espero apenas que esse menino tenha paz e essa mãe a justiça.

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Simpatia

Eu sempre disse que na próxima encarnação vou escolher a simpatia como a minha mais expressiva virtude. Mas não bonito, porque um cara simpático e bonito está a um passo de se tornar um canalha, ou um chato insuportável. Muita tentação…

Digo isso porque, ora, chega de ser antipático. Essa é uma sina horrível. Ninguém jamais se lembra de você pensando “Ah, que legal ele, que simpatia!!”. No máximo dizem “Um cara gente boa, apesar daquela antipatia colossal, mas láááááá no fundo se descobre uma boa pessoa”.

Para todas as pessoas da área médica que se aproximavam de mim – entre emocionadas ou apenas interessadas – depois de uma palestra sobre o tema da humanização eu apresentava a mesma cara sem entusiasmo, e até com certa reserva. Antipático, diriam… mas era de propósito uma apatia forçada, apenas porque eu sabia muito bem o preço de ser o que se é.

Eu tinha plena consciência de que falar de parto mobilizava emoções e que as pessoas poderiam ficar prisioneiras destes sentimentos. Não queria ouvir declarações de amor como as que acontecem a bordo de Cruzeiros no Caribe, mas que se dissolvem mal encontram a crueza do chão firme ao atracar no cais.

Sim, eu afastava de caso pensado os curiosos e os emocionados, esperando reter apenas aqueles que entendiam o projeto da parteria com a razão, e a seara da humanização como uma terra árida e inóspita. Muitos foram os casos em que vi colegas desistindo diante do primeiro nariz torcido ou diante de uma “egípcia” recebida dos colegas. “É muito bacana isso tudo, mas tenho uma carreira e uma família. Não tenho sua coragem“, diziam eles.

Como discordar dessa sinceridade? Como condenar o desejo de ter uma vida tranquila onde bastaria levantar os braços e aguardar que a própria corrente de águas cálidas o levasse adiante? Por que deveria eu insistir para que dedicassem sua vida a uma proposta que os deixaria desprotegidos, sem dinheiro, sem horas de folga, sem respeito dos colegas e sujeito a todo tipo de acusações? Seria injusto…

Como um psicanalista velho eu avisava: “Você está muito bem adaptado. Volte quando estiver em pedaços”.

Meu olhar seco carregava uma mensagem: “Se a vida dentro do paradigma hegemônico lhe permite uma vida boa, sem culpas e sem angústias, não o abandone por minhas palavras cheias de paixão reformista. Siga seu caminho em paz e seja feliz. Entretanto, se a sua atitude profissional lhe causa dor, se a cada cesariana realizada você sofre a oportunidade perdida, se a expropriação do momento máximo da feminilidade é sentido com vergonha, então nenhuma cara feia vai fazer você parar. Minha carranca e minhas palavras insossas não impedirão que busque seu caminho.”

Assim foi por 20 anos de trajetória, fugindo da simpatia sedutora e dos caminhos mais fáceis, exatamente porque nunca duvidei da potência renovadora da humanização e do protagonismo garantido às mulheres, mas sempre soube que jamais seria perdoado por pensar assim.

Para Caroline Chiarelli

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Desculpas

Há alguns anos escrevi um texto a respeito de um post em um blog que eu havia lido. Era uma história sobre sexualidade que mexeu comigo porque sempre tive esse tipo de angústia em relação aos filhos, crianças, adolescentes, etc… Por impulso escrevi um texto no Facebook sem citar de onde vinha este relato, mas dizendo que discordava do que havia sido escrito por uma série de razões. Era, por certo, um chamado à reflexão, não um ataque a uma pessoa que sequer sabia quem era.

Na minha cabeça era como escrever um texto a partir de uma notícia da Reuters que dizia (inventei a notícia): “Mulher búlgara adota apenas um dos gêmeos”, e eu respondesse: “Ora, eu não acho justo que apenas um seja adotado. Isso é cruel”. Assim, de forma impessoal, sem jamais imaginar que essa mulher do outro lado do planeta viesse me contestar pela minha posição pública quando ao caso, sem maiores aprofundamentos.

(Espero que o presidente atual não venha me cobrar pelas coisas que digo dele também…)

Para minha surpresa a pessoa que escreveu o post me escreveu indignada – furiosa até – e, anos passados, ainda existem reverberações dessa onda de contestação dura que surgiu após a sua manifestação. Acabei fazendo bloqueios em massa, não por discordância das teses em questão, mas por ofensas, agressões, ameaças e ódios. Só anos depois descobri quem era a autora do post e sua luta contra abusos sexuais, mas quando descobri já era tarde.

Não quero tratar do tema do post e da minha crítica a ele, e também sei que as pessoas que desenvolveram ódio por mim não vão me perdoar pelo que vou dizer agora, mas acho que é melhor dizer isso do que deixar em silêncio.

Eu errei. Errei rude. Eu me arrependo do que escrevi. Novamente, nem se trata de questionar o conteúdo – sobre ele poderia haver muito debate – mas certamente da forma. Não há desculpa para uma coisa feita até com boa intenção, mas que acaba ferindo pessoas. Fui ingênuo e burro ao não perceber que minha crítica poderia – pelas vias fluidas da Internet – chegar aos olhos da pessoa a quem eu me referia, mesmo morando em outro país. Além disso, a questão central – a sexualidade – não poderia ser tratada num post público desta forma, pois ela oferece gatilhos para muitas identificações e angústias.

Errei duramente por ter publicado de forma aberta. Poderia ter escrito privadamente para amigos que pensam de forma parecida – ou mesmo antagônica – para ver os limites do tema, mas jamais abertamente, imaginando que isso pudesse ser tratado “em tese”.

Na época eu escrevi para a autora do post original pedindo para conversar, mas ela, compreensivelmente, não quis. Creio que por muitos anos me odiou e não tiro suas razões. Errei, mesmo sem o desejar, ao expor suas escolhas, com as quais na época discordava.

Sim, gostaria de pedir perdão pois vi que muitas pessoas lembram desse fato ainda com rancor. Sei também que para elas eu não serei perdoado, e também não as culpo, mas o pedido de desculpas públicas não exige respostas de quem solicita, apenas o reconhecimento do erro por quem o praticou.

Aprendi com esse erro e procurei não repeti-lo, já passados quase 4 anos. Tive mais cuidado. Não fiz um pedido de desculpas anterior porque não queria despertar o vendaval de acusações que agora voltou à tona. Ou talvez apenas por medo, insegurança e vergonha. Talvez tivesse sido melhor fazê-lo antes, mas este, por certo, foi outro erro.

Todavia, nunca é tarde. Peço humildemente perdão também e – em especial – para seu filho que acabou sendo envolvido na discussão. Peço desculpas para as pessoas a quem ofendi e magoei, mas não peço nada em troca. Apenas deixo claro que reconheço o meu erro e que devo desculpas a todos por não entender a dor que poderia provocar com a amplitude das minhas palavras.

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Esboço de uma historiografia da Humanização do Nascimento

Foi em 1999 eu encontrei pela primeira vez as pessoas da minha tribo. Após atender o parto de Cristina Balzano Guimarães em Porto Alegre ela me contou saber da existência de um congresso que se realizava todos os anos no Rio de Janeiro, apenas com pessoas que desejavam trabalhar com a humanização do nascimento. Nesse congresso apareciam pessoas de várias áreas de conhecimento não apenas da medicina. Suas palavras reforçavam minha ideia, há muito acalentada, de que o parto não era um ato médico como fui levado a acreditar na Escola de Medicina, mas um evento para muito além dessa caixa pequena da medicina. Parto era um evento humano, onde concorriam muitas formas de saber, e cuja complexidade não poderia jamais ser amarrada a uma forma apenas de entendimento.

Até o aparecimento desse convite de Cristina foram 13 anos da mais absurda solidão, sem contato com nenhum outro profissional que tivesse ideias semelhantes às minhas. Nunca houve durante a minha formação profissional qualquer médico que ousasse questionar a exclusividade da atenção ao parto na mão dos médicos. Jamais algum profissional – entre professores e colegas – questionou as múltiplas intervenções sobre o corpo da gestante, quanto mais o direito de recusa e consentimento informados por parte dela ou da família. Toda forma dissidente de compreensão do parto era tratada com escárnio, deboche e menosprezo. Não havia sequer espaço para a contestação: o parto humanizado era o terraplanismo da obstetrícia.

Por certo que nos meus anos de formação não havia internet, nem redes sociais. “Rede social” era “rádio corredor”, que era a “fofoca institucionalizada”. Aliás, o nível tóxico de maledicência, vaidade, luta por poder e fogueira de vaidades durante a minha passagem pela universidade foram parte das razões por ter fugido da vida acadêmica, apesar dos inúmeros convites para fazê-lo. Para além disso, eu reconhecia a maldição que meu pai havia vaticinado há muitos anos sobre a minha pessoa: a marca da rebeldia. Não, não tomem como elogio, era algo realmente maldito, uma força compulsiva de questionar os poderes estabelecidos, a incapacidade de receber ordens, a fúria pelas injustiças e a sede de transformação. Todavia, pelos relatos até de familiares meus que ingressaram nessa carreira, a vida acadêmica se mostrava muito mais próxima de uma organização eclesiástica do que com uma fonte de ideias renovadoras e criativas. Não foi difícil para mim perceber a característica conservadora da Academia e, mais ainda, seu sistema de poderes. Achei que viver sob a pressão que se produzia nas Universidades não se encaixava no meu temperamento, mas ainda hoje tenho profunda admiração por muitos colegas que lá trabalham e militam.

Nos “anos heroicos” da humanização do nascimento o “congresso da Fadynha” era o nosso porto seguro. Eu sempre comparei minhas idas a este encontro anual como um jovem homossexual que, vivendo numa cidade do interior, pela primeira vez entra num “club gay” e descobre que existem outros que pensam e sentem como ele. O congresso era muito pequeno, talvez 100 e no máximo 200 pessoas, absolutamente artesanal. Tudo recaía nas costas da organizadora, Maria de Lourdes, chamada carinhosamente de Fadynha, uma hippie sobrevivente dos anos “paz e amor”, que dedicou sua vida na defesa do parto livre. O ambiente era absolutamente “bicho grilo”, o que para mim era desconfortável na época, mas que nas memórias aparece como uma das características mais deliciosas dos encontros. Sim, tinha Hare Krishna, tinha gente de manto, tinha turbante, tinha culto ecumênico, tinha sessão de Yôga. Era um clima de abertura sensorial, como um pedido aberto para os participante se questionarem “se o parto pudesse ser diferente, abra sua mente e imagine o cenário perfeito“.

Na época as viagens eram muito mais complicadas. A gente marcava hotel por telefone, comprava passagem de avião na loja da Varig no centro da cidade, pagava o congresso na hora (em dinheiro ou cheque) mas era sagrado participar do congresso da Fadynha. Não tinha dinheiro para estadia ou para pagar a viagem, e os palestrantes tinham que pagar sua inscrição também. Os temas eram simples, muito mais depoimentos de profissionais que estavam atuando de forma mais “fisiológica” do que debates técnicos com autoridades nacionais ou internacionais. Éramos muito singelos na forma de pensar, e os congressos funcionavam como uma catarse em grupo para desovar indignações e sonhos. Alguns temas seriam considerados absurdos hoje em dia. Lembro uma vez que uma advogada do grupo “SOS Erro Médico” foi chamada a palestrar e o tema de sua fala foi “processar médicos que deixam passar da hora e não fazem cesariana por cordão enrolado no pescoço“. Ai, ai, ai… Ficava claro que a pura indignação diante dos desmandos da obstetrícia contemporânea e da falta de vinculação com as evidências científicas eram insuficientes para levar adiante um projeto de renovação na atenção ao nascimento.

Neste tempo, início do milênio, também não havia uma clareza sobre partos conduzidos por enfermeiras e o tema do parto domiciliar era quase desconhecido. Vivíamos o debate ainda da “Casa de Parto 9 Luas”, uma experiência interessante mas que sucumbiu por questões administrativas – foi assim que lembro até hoje – mas que não era uma Casa de Parto (no conceito de parteria que temos hoje), e sim uma clínica de nascimentos que tinha até bloco cirúrgico.

Parto domiciliar era tabu, e a grande estrela desse tema uma moça que morava na Itália e pariu no Rio de Janeiro com uma obstetra chamada Stella. Certamente que ela teve sua importância na emergência desse debate. Éramos todos entusiasmados e profundamente ingênuos. Sabíamos o que não queríamos, mas não exatamente qual era o nosso Norte. Não se falava em “protagonismo” da mulher – essa vinculação com o conceito de autonomia estava ainda muito embrionário – mas em boas práticas, como abolir episiotomias, diminuir cesarianas, parto de cócoras, marido presente, etc.

O movimento de doulas (apesar de já existirem doulas, como Fadynha e Lucia Caldeyro, entre outras) surgiu em 2002 quando Maria Helena Bastos trouxe a Debra Pascali-Bonaro para um curso de formadoras no Rio, e a partir deste ponto o movimento explodiu como um rastilho chegando no barril de pólvora. A partir da entrada de um gigantesco contingente de mulheres leigas, fora do mundo da assistência ao parto, o movimento ganhou as ruas, as vozes se multiplicaram e as mulheres foram finalmente incorporadas mais diretamente ao debate. Depois disso, a criação da Escola de Obstetrizes da EACH (USP Leste) foi outro grande passo, protagonizado pela professora Dulce Gualda.

A criação dessa história corria paralelo nas listas de discussão nesta ferramenta fantástica criada pelos List Servers. Ali se brigava, se xingava, se debatia, se conhecia gente, se exibia, se crescia nos conceitos. Foi outro fabuloso propagador da boa nova, no alvorecer do milênio.

Já está na hora da história da humanização do nascimento ser escrita, mas o medo que sempre tive foi com a parcialidade dos relatos. O que escrevi acima é um bom exemplo. Está foi a minha perspectiva, de um profissional da medicina, do sul do país, isolado e numa época em que os contatos pessoais eram muito difíceis. Essa história poderia ser coordenada por alguém de qualquer área ou latitude, mas precisaria contemplar as múltiplas perspectivas deste movimento nascente. Como aconteceu esse movimento nos diferentes estados, quais as diferenças locais que produziram entraves e facilitações? Quais as personalidades que produziram mudanças reais e quais não – e por quê?

Esta historiografia seria fundamental para que nossa experiência acumulada de lutas pudesse frutificar, mas precisaria ser um trabalho coletivo. Nesse aspecto, esquecer nomes pode ter um efeito dramático. Como eu disse anteriormente, somos dotados dessa capacidade (única na espécie humana) de acreditar sermos mais importantes do que realmente somos, e isso faz com que pequenos esquecimentos possam produzir grandes transtornos e mágoas.

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O Dia em que a Terra Parou

Assisti esse filme na adolescência e ele ficou marcado na minha memória. Nunca esqueci o robô Gort e sua mensagem imperialista em um filme lançado logo depois do final da II guerra mundial, anunciando como seria a política externa americana. Spoiler: os americanos, no filme, não são eles próprios, mas os alienígenas trazendo uma “stela pace”, uma paz estelar através do imperialismo e do colonialismo cultural.

Quando adolescente li escrito no muro de um terreno baldio perto do Hospital de Clínicas a frase “Klaatu Barata Nikto” e fiquei emocionado ao ver que mais alguém se lembrava desse filme. Tive vontade de conhecer o cara que fez a pixação para trocar umas ideias.

Pois… só muitos anos depois foi possível rever o filme. Não existia possibilidade de assistir um filme do passado a não ser torcendo para cair na programação da madrugada. Hoje a internet nos oferece essa oportunidade num piscar de dedos, e isso é um milagre.

Hoje resolvi assistir de novo “The Day the Earth Stone Still” (o original, claro) com Michael Rennie, porque estamos numa situação semelhante. A Terra, efetivamente “parou” e precisamos rever nossos passos até aqui. É necessário repensar os modelos econômicos e criar novas vias fora do capitalismo. Esse modelo chegou ao seu esgotamento, e uma nova era está nos pródromos aguardando ser parida.

SPOILER ALERT: uma curiosidade do filme. No livro que baseia o filme, quando Klaatu baleado e é carregado para a nave um dos terráqueos presentes se dirige ao robô Gort e diz: “Desculpe-nos por termos matado seu amo”, ao que o robô responde “Creio que vocês estão enganados ou não entenderam; o amo sou eu”. Essa parte GENIAL do livro foi suprimida e não aparece na versão do cinema.

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