Arquivo do mês: agosto 2018

Autoajuda de palco

As vezes aparece na minha TL uma dessas palestras de gurus de um determinado assunto com aquele formato TED. Aí este especialista fala tudo que você está fazendo de errado na sua vida, seja o que come, como enxerga o sexo oposto, sua noção do infinito cósmico e, acima de tudo, como está falhando em conquistar o sucesso.

Eu acho profundamente brega essa estética “autoajuda de palco”. O sujeito caminha por todo lado, tem um foco de luz por cima, o microfone fica ao lado da boca e o aparelho que o controla na cintura. Palavras de ordem se repetem, estímulos ao “sucesso”, críticas à mentalidade “perdedora” e um mise-en-scène que em tudo lembra as igrejas evangélicas pentecostais. Um show de mensagens estereotipadas e criadas por algoritmos num computador baseadas em pesquisas de preferência. As apresentações são shows de atuação sedutora e hipnotismo.

A diferença entre as palestras motivacionais e as performances dos bispos pentecostais é que naquelas o diabo é menos grotesco e caricato do que nas apresentações de palco dos pastores e suas igrejas abarrotadas, porém não menos assustador. Num mundo onde o sucesso é o céu e o inferno a existência comum, viver uma vida frugal e simples é uma terrível danação.

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Diplomas

 

“O maior gênio da política brasileira de todos os tempos nunca teve um curso universitário. O maior político da história da África do Sul passou 27 anos preso. O maior revolucionário da política australiana era um operário.

Política NÃO é concurso público. Política é REPRESENTATIVIDADE. Ouso dizer que (infelizmente) Alexandre Frota é muito mais representativo do que alguns candidatos que emergem das universidades, cheios de títulos, graduações e experiências no exterior. Para comprovar o que digo basta ver os votantes do Bolso. Ciro Gomes falou certo ao se referir ao Daciolo como “o preço a pagar pela democracia”. Sem isso teríamos uma aristocracia perversa de concurseiros, e se alguém tem curiosidade para saber como isso seria olhe para o nosso judiciário, uma instituição que 90% da população não confia em sua lisura, mesmo com tantos diplomas na parede de trás.

Os sujeitos com mais qualificação superior no congresso são, via de regra, os mais reacionários. Tratá-los como “excepcionais” e levá-los ao congresso apenas por sua performance acadêmica é um erro que já cometemos muitas vezes. Está na hora de varrer esse conceito da nossa sala.

Para ser político precisa MUITO mais do que um diploma. Precisa falar a língua do povo e sentir na pele o que ele sente.”

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Filhos

Uma cena que já vi algumas vezes. Eu me aproximo de um jovem e lhe digo:

Você não tem ideia da importância e da extensão que as ideias da sua mãe tiveram na minha vida. Para ser justo, não seriam suficientes horas de agradecimentos.

Ele me olha de uma forma absolutamente surpresa, como se eu estivesse lhe comunicando algo assombroso. A resposta, e suas variantes, é no estilo “Sério? Bom saber…

“They never had any clue, Ric. My work was invisible”…

Existem, no meu convívio direto, muitas mulheres que me falam de sua vida, seus trabalhos, seus amores e seus filhos. Muitas delas revertem essa ordem, e tratam suas crias como as maiores preciosidades, em torno das quais sua vida gravita. Com o passar do tempo esses filhotes por certo ganham asas e resolvem partir para suas próprias aventuras de viver, e a conexão com eles naturalmente se arrefece e acalma.

Entre essas mulheres existem três a quem considero mais do que brilhantes, e as coloco no patamar de “excepcionais”, talvez imprescindíveis. Lutadoras, inteligentes, bravas, corretas, inovadoras e corajosas. Entretanto, essas três carregam a cruz de uma relação conflituosa com seus filhos.

Na festa de aniversário de uma delas, esta senhora confidenciou a uma amiga: “O presente que eu mais desejaria não se pode comprar. Eu queria que meu filho entendesse o meu ofício e a extensão do que fiz“. Seu sofrimento surgia da profunda incapacidade do seu filho perceber a mulher que se escondia por detrás de sua mãe. O trabalho maravilhoso que realizou por décadas, aliado ao seu sacrifício pessoal e familiar, pouco contavam em sua perspectiva de filho. As honrarias, os prêmios, os livros escritos, as infinitas citações ao seu trabalho jamais sensibilizaram o menino – agora homem – para a importância que sua mãe teve na vida de tantos outros que não ele.

Para as outras duas amigas o fechar de portas veio sem muitas explicações, mas talvez ligado às mesmas dificuldades descritas acima. Jovens senhoras encontram no silêncio dos filhos a dor mais profunda a suportar. As explicações para esse afastamento são vagas, imprecisas, falsas ou produções fantasiosas para ocultar uma verdade que eles sequer entendem. Mas a dor não é fantasia; ela é real, ardida, renitente, corrosiva.

Talvez esse seja um dos mais importantes desafios para as mulheres libertas do século XXI. Se antes esse vínculo era profícuo e estimulado pela cultura, a saída de casa deixou a todos atônitos. Muitos nos preocupamos com os homens, despreparados para a liberdade conquistada a duras penas pelos movimentos emancipatórios. Entretanto, agora os filhos precisam se preparar desde cedo para a realidade de uma mãe que não estará mais ao seu dispor 100% do tempo. Para os que estavam desprevenidos o ressentimento parece ser a única alternativa, mas espero que as próximas gerações estejam mais preparadas para as novas funções da mulher na sociedade.

Tenho fé que essas minhas amigas um dia possam receber dos seus filhos o reconhecimento pelo sacrifício amoroso que fizeram em nome de causas tão nobres.

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John and Moyses

Let me tell you a story. I was in Cleveland in 2002 giving a talk on “Doulas and Collaborative Work”. Five minutes before the beginning of the talk in Case Western – to doulas, midwives and obstetricians… who shows?

Yes…John Kennell himself, the guy who “invented” doulas. My personal hero, the guy who, along with Marshal and Phillys Klauss, unlocked the power of doulas to improve birth outcomes.

He kindly introduced himself to me – as if I didn’t know him from books and pictures – and made me this question:

– So you are from Brazil. Do you know Dr. Moysés Paciornik?

I responded:

– Yes, he is my friend in Brasil and much that I know from humanization of childbirth comes from his book “Learn how to birth with the natives from Brasil”. He is the “pope of squatting birth” and a sweet guy in his 80s.

He smiled at me and said something that I will never forget:

– He is the greatest obstetrician in the world.

I totally agree… even after 15 years.

(Ric)

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Doulas aqui e lá

 

Poucos dias atrás tive uma conversa interessante e esclarecedora com Zeza, Debra e um maravilhoso grupo de doulas de Austin – Texas. Temas principais: organização das Doulas em grupos para otimizar o trabalho e garantir a elas tempo para suas vidas privadas, trabalho, estudos e filhos. A outra questão fundamental debatida foi o processo de certificação de doulas através de critérios abrangentes e adequados para realidades plurais e – até mesmo – divergentes, evitando a “padronização” do ofício das doulas e mesmo sua vinculação a correntes ideológicas de qualquer natureza. .

Debra ficou espantada com a ideia que eu lhe expus da criação de cursos de 160 horas ou com a proposta de criar a “profissão” de doulas. Aqui nos Estados Unidos a tendência é não aceitar qualquer tipo de “licença” ou profissionalização pelos riscos de submergir na burocracia sufocante das corporações.

Estas idéias me deixaram mais seguro de me contrapor às decisões de um congresso de doulas recentemente realizado que aponta para direções opostas das que foram aqui debatidas. Cursos caros e demorados, curriculum complexo, redundante e ideologicamente direcionados, certificações, conselhos nacionais e todos estes pesos a carregar não me parecem auxiliar as doulas e suas clientes, mas apenas criam uma estrutura de caráter controlador, punitivo e regulador, tirando de suas associadas a liberdade para agir de acordo com seus valores e ideias.

Por outro lado, as doulas de Austin me contaram que nenhuma maternidade da cidade estabelece qualquer constrangimento para o livre exercício das doulas, o que demonstra que os hospitais brasileiros – e suas políticas medievais de ataques e agressões às doulas – são a vanguarda do atraso no que diz respeito à liberdade de escolha.

A menção de que em algumas cidades se insinua que doulas só poderiam atuar se fossem profissionais de saúde (enfermeiras, fisioterapeutas, etc) causou espanto entre elas. A pressão dos consumidores aqui faz com que os hospitais se esforcem para ser “doula friendly” e assim atrair mais clientes.

Não houve em nossa conversa história alguma de médicos rejeitado as doulas ou se negando a atender ao lado delas. Afinal, até a ACOG (a associação dos obstetras) já reconhece oficialmente a excelência do trabalho das “baratinhas”. Isso me dá esperanças de que no futuro tenhamos evoluído nessa direção, mas esse tempo só depende da nossa capacidade de aglutinação e luta.

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Debates com Debra

Debates com Debra

Continuando minhas conversas com a doula Debra Pascali-Bonaro sobre o futuro das Doulas – no Brasil e no Mundo – acabamos debatendo sobre a capacitação e o credenciamento, já que ambos tomamos como claro o fato de que a profissionalização e o “licenciamento” nos levarão a um beco sem saída que colocará em risco a própria continuidade do movimento de doulas. A ideia de transformar doulas em “profissionais da saúde” é inadequada, equivocada e – ainda pior – pode vir a destruir a própria essência do trabalho das doulas.

Nossa ideia é que, para manter essa essência intacta, faz-se necessário entender quais os pontos fundamentais do trabalho da doula. Estes não estão relacionados a nenhuma corrente ideológica, nem ao conhecimento aprofundado da anatomia ou da fisiologia e nem tampouco a qualquer entendimento de política, etnias, feminismo ou qualquer outro tema correlato. Uma doula dá suporte afetivo, emocional durante o parto. Só isso, ou melhor, TUDO isso.

Como então reconhecer quem é e quem não é uma doula? O sistema nos Estados Unidos e no Brasil ainda é bastante descentralizado, o que não é de todo ruim. Um grupo abre um curso de capacitação de doulas em uma cidade, forma novas doulas e estas vão para o mercado. Carregam um certificado comum que lhe serve de reconhecimento, de valor limitado. Entretanto, quando as doulas nos Estados Unidos desejaram o pagamento por reembolso pelas empresas de seguro saúde (ou pelo Medicare), começaram a exigir uma documentação oficial de sua graduação como doulas. Aí é que entra o papel da DONA.

A questão é: como oferecer um certificado que seja reconhecido em todo o país para garantir – através de um órgão central oficial – que esta moça que enviou os documentos pedindo reembolso é verdadeiramente uma doula?

Uma coisa ficou muito clara para nós: a inadequação de qualquer tipo de teste. Nenhum teste de conhecimentos objetivos é capaz de avaliar o trabalho de uma doula. Um teste apenas poderia aferir conhecimentos objetivos de matérias completamente desimportantes para o trabalho das doulas. Seria como um teste para ser pintor, artista plástico. Ora, as questões afetivas e emocionais relacionadas ao cuidado prestado por uma doula não são mensuráveis ou quantificáveis. Como diria Einstein, “muito do que se conta não conta, mas o que verdadeiramente conta não se conta

Se esse não for o critério, qual será? Creio que a resposta vem da entidade mais antiga na questão, qual seja, a DONA. Para elas o que conta é a formação que você teve e quem foram as pessoas que lhe auxiliaram nessa caminhada. Por isso, é mais eficiente garantir que os FORMADORES de doula tenham uma visão clara dessa função e tenham experiência.

Não posso deixar de lembrar a frase de Lacan sobre a maior virtude de um psicanalista. Sua resposta foi contundente e rápida: “A idade”. Sim, mais do que qualquer atributo cognitivo e racional a bagagem de experiência de vida seria fundamental para burilar as capacidades de escuta de um psicanalista. Para as doulas algo parecido poderia ser aplicado. Sim, não o critério etário, como em Lacan, mas a experiência que acumulou na atenção aos partos. Isto é: para ser uma formadora de doulas é necessário comprovar um número de partos atendidos como doula.

O número sugerido pela organização das doulas americanas é de 100 partos, mas é importante entender que existem 12 mil doulas associadas à DONA e mais de 20 anos de atuação. Ontem mesmo conversei com uma menina que, em dois anos de atuação, atendeu 60 partos!!! Isso não é a nossa realidade, e talvez seja necessário adaptar para um número mais razoável (eu sugiro 50 partos atendidos) como limite para ser formadora de novas doulas.

A verdade é que os caminhos que vi ultimamente nos leval para o lugar errado. Doulas não são profissionais da saúde, e não devem ser – segundo minha visão e a de Debra. A função das doulas deve ser livre, aberta, autônoma e sem qualquer exigência (ideologia, escolaridade, conhecimentos técnicos, etc.) que limite a sua atuação. “Doulas são a fraternidade instrumentalizada”, me dizia Max, tão logo conheceu o trabalho delas. Deixem as doulas livres!!

Deixo abaixo o resumo das exigências para ser formadora de doulas da DONA, deixando claro que talvez seja necessário debater exaustivamente a adaptação dessas regras para a realidade e brasileira e da América Latina.
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Minimum Candidate Qualifications

1. Proof of continuous and DONA certification and current membership (in good standing) with DONA International for two re-certification cycles (or 6 years).

2. Minimum number of births/families served:

Birth Doulas: Minimum of 100 births attended as birth doula, not as a nurse or midwife.
Postpartum Doulas: Minimum of 100 families served.

3. Proof of formal education/training (certificate) in childbirth education or adult education equivalent.

4. Proof of experience in adult education.

Birth Doulas: 120 hours teaching (at least 10 complete childbirth class series – minimum 12 hours per series.)
Postpartum Doulas: 10 complete childbirth preparation series totaling at least 60 classes and 120 hours to groups of 4 expectant parents minimum.)

5. Proof of volunteer experience (preferred but not required).

6. Signed memorandum of understanding.

7. Two successful interviews (Director of Education and trainer mentor from the education mentor council).

Mais informações em

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Vacinas e Religião

É impressionante como nos Estados Unidos o debate sobre os perigos e as inconsistências das vacinas é aberto e franco. As conferências reúnem milhares de pessoas de várias partes do país, com a presença de médicos, professores, bioquímicos, pais de crianças prejudicadas, pesquisadores e políticos. Entender a vacinação – seus riscos e benefícios – é um assunto sério e que mobiliza muitas pessoas. No Brasil o assunto é tratado com o mais completo escárnio e deboche. Questionar a validade da vacinação é tratado como “negacionismo” e as pessoas que o fazem são colocadas ao lado de sujeitos que negam o holocausto e os terraplanistas. Os pouquíssimos profissionais da saúde que ousam questionar e decidem apontar os perigos e os riscos evidentes da injeção de tantas substâncias perigosas e não testadas são levados ao ostracismo, quando não francamente perseguidos.

Falta muito ainda para tirarmos a religião de dentro da ciência. Vacinas são crenças de caráter religioso. Se elas funcionam ou não, ou se os malefícios encontrados são graves o suficiente para interromper seu uso, é uma outra questão. Todavia, a vinculação que temos com elas é de caráter dogmático e irracional. Elas ocupam o lugar das comunhões religiosas do passado: para ser aceito em uma determinada comunidade é preciso passar por um ritual de aceitação dos seus pressupostos básicos. Ontem, o batismo no cristianismo; hoje as vacinas no cientificismo.

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Territórios

 

Escrevi isso há 4 anos durante o atendimento a um trabalho de parto no hospital e me surpreendi, pois não lembrava de jamais ter escrito poesia. Contei pra Zeza e ela disse que era mentira. Talvez seja…

 

Territórios

 

Se o corpo de uma mulher

é um grande território,

onde guerras acirradas

atropelam gerações,

como negar seu direito

na luta da retomada?

 

Se a riqueza dessa terra,

por ter história e ser matriz,

seduziu o forasteiro

que dela quis se apossar,

como não aceitar que o ventre

– e tudo que tem em volta –

queira mais do que depressa

sua posse retomar?

 

Os lindeiros desse chão,

achados de posse eterna,

se esqueceram que a pequena,

por mais delicada que fosse,

tinha na mão um desejo

e no coração um poema.

 

O poema curioso,

cheio de rimas ricas,

dizia meio por assim,

porque a memória anda fraca,

que a conquista não se faz,

no martírio e na faca.

Que a mulher ou é livre,

ou melhor então nem nasça,

pois quem de si o leite dá,

de sua carne outra uma,

não pode viver cercada,

da liberdade, negada

 

O poema era esse,

que a lembrança se achega,

por mais que a mente procure

a palavra escondida.

Mas na mão está o desejo,

que se abre e nos afirma,

que a mulher tão paciente,

agora vai à luta.

Mais que a dor que sempre teve

ela agora só procura,

o caminho que é só seu,

que desenha na lonjura

do seu firme caminhar.

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Lactância sem Mulheres

Eu vi a notícia sobre um congresso de aleitamento no México que não continha nenhuma mulher entre os expositores e achei absurda tal comissão que debateria o tema. Não gosto de nenhum tipo de sexismo e a exclusão de homens para debater amamentação – pelo simples fato de serem homens – é para mim um grosseiro equívoco. Digo o mesmo sobre o tema do parto e uso a explicação de que “homens nascem e homens são amamentados”, portanto, esse assunto igualmente nos atinge e nos diz respeito. Ressalvas sejam feitas aqui ao “lugar de fala”, por favor.

Eu convidaria aqui no Brasil Marcus Renato e João Aprígio sem pestanejar para um congresso como este, e poderia colocá-los inclusive na presidência do mesmo porque são grandes defensores e batalhadores incansáveis pela amamentação…. e são homens. O gênero importa menos que o engajamento no tema, mesmo que a vivência no processo de amamentar seja um fator relevante e significativo.

Entretanto, a ausência de mulheres na mesa fala muito mais de uma negação a elas do que de uma pretensa falta de especialistas sobre o tema da amamentação do sexo feminino. No Brasil – e posso garantir que também no México – existem médicas, enfermeiras, psicólogas ou nutricionistas capazes de levar adiante esta bandeira com pleno embasamento científico e com grande experiência no ativismo. Portanto, a ausência de mulheres e a presença de representantes da indústria láctea neste evento é um claro sinalizador de que as mulheres não estão presentes porque a sua “substituta” – a indústria de fórmula – veio para ocupar sua voz e seu espaço.

E isso é muito grave…

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Ubi et Quomodo

Entrei em mais um debate a respeito da ideia de que, chamar as cesarianas de “extração fetal”, nada mais seria do que um exercício de crueldade e uma estratégia suicida para o ativismo do parto humanizado.

Os argumentos os conheço muito bem; eles acompanham as discussões sobre parto e nascimentos humanizados pela internet há duas décadas. De um lado algumas mulheres (muitas vezes ativistas) reclamando que chamar uma cesariana de “cirurgia”, de “extração fetal” ou “operação” servia para afundar ainda mais a combalida autoestima de uma mulher cujo projeto de um parto normal havia fracassado. Do outro lado, alguns propõem – como eu – que os nomes sejam usados de forma correta, sem máscaras, sem tratar as mulheres como torrões de açúcar que se desmancham com qualquer palavra mais dura utilizada. Não há porque chamar Fusquinha de Mercedes, nem cesariana de “parto cesáreo”, ou “parto via alta”, pois estes estratagemas semânticos se prestam para banalizar a cirurgia e torná-la um procedimento “igual” ao parto. Tipo a fórmula láctea, chamada de “leite” para confundir este produto artificial com o leite humano.

Mas cesarianas não são partos. Os ativistas do parto normal sabem muito bem as diferenças entre um procedimento inscrito na fisiologia do corpo e nas entranhas obscuras do nosso DNA, e uma cirurgia de extração fetal. Os riscos de ordem física para ambos – mãe e bebê – são por demais descritos na literatura, e sobre eles não cabe mais dúvida alguma. Para além disso, temos as cicatrizes emocionais deixadas na alma das mulheres que foram impedidas de um processo fisiológico. Não há como confundir os dois eventos, e a linguagem não pode ser prestar a esta mistificação.

Por outro lado, é claro que os debates sempre ficam acesos quando se toca nesse ponto; afinal, estamos tratando da sexualidade nua e crua do nascimento. Falar de parto é falar de sexo em sua expressão mais simbólica – e poderosa. O escritor “maldito” (que também era médico) Louis-Ferdinand Celine nos alertava: “Esqueçam o sexo; se querem ver a sexualidade, olhem para um parto.” Por esta razão esses choques se tornam sempre duros; eles são, em verdade, expressões relacionadas ao mito da “menas main“, que assola as mulheres diante da avalanche de tecnologias que deslocaram o leite das mamas e os partos das vaginas.

Então eu me pergunto: como criar um ponto de acordo nestes conflitos? Depois de escutar estas queixas (de ambos os lados do espectro) por três décadas eu acho que as respostas são agressivas porque a PERGUNTA é mal formulada. Não se trata de saber COMO descrever uma cesariana tal qual uma grande cirurgia de extração fetal e suas naturais consequências para a saúde do binômio mãe-bebê, mas QUANDO poderemos oferecer uma explicação mais adequada do evento que se passou. Quase todos os ativistas concordam que dizer o nome correto do que aconteceu é importante para evitar o engodo embutido nas construções linguísticas do “parto cesariana” e do “parto via alta”. Ao mesmo tempo, todos sabem que os médicos criam essa confusão para diminuir o impacto das cesarianas e fazer com que se tornem mais “palatáveis” pela cultura. Entretanto, é também verdade – e quase todos reconhecem – que encontrar uma mãe na sala de recuperação do hospital e lhe dizer : “Que pena que não conseguiu ter seu parto normal e acabou numa extração fetal” não tem nenhum sentido humano e é apenas uma expressão de crueldade e falta de sensibilidade.

Portanto, eu proponho que olhemos para o dilema da nominação dos eventos não mais pela perspectiva do “como” chamar, mas do “quando” isso pode ser feito para uma puérpera para que ela possa entender os significados últimos de uma cirurgia, seja para fazer adequadamente seu luto ou seja para evitar os erros que porventura possa ter cometido na construção do seu não-parto.

Creio que assim agindo vamos poupar muitas batalhas que continuam a proliferar no espaço cibernético sobre esse tema tão palpitante.

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