Arquivo do mês: julho 2016

Próxima etapa

caneta

O próximo passo no movimento de humanização do nascimento é acabarmos com as “Notas Públicas” que jogam assuntos internos para o mundo exterior (leia-se, Redes Sociais). Mesmo que, ao analisar estas manifestações, eu encontre verdades e correções, eu ainda acredito que a via mais correta para resolver estas contendas seja uma discussão privada e sincera, onde os pontos de vistas possam ser expressados com honestidade e franqueza. Fui vítima de manifestações desse tipo no passado, e não vejo qualquer vantagem para um projeto, uma ideia ou um movimento pelo uso de manifestações marcadas pela autofagia. Ninguém ganha com isso; todos perdem.

No caso em questão a minha dor é ainda maior porque gosto e tenho laços de amizade e carinho por todas as pessoas envolvidas, em ambos os lados da controvérsia. Eu sinto, pela primeira vez na vida, a sensação de um menino que se martiriza ao assistir a briga dos pais e pensa: “Por que eles não conversam e se entendem? Por que essas brigas na minha frente? Eles deveriam se amar!!”

O que é pior, um dos pais sempre se aproxima e pede, de forma sutil e subliminar, que o pobre menino escolha um dos lados. Que crueldade!!

Espero que essa situação possa nos oportunizar um questionamento profundo de nossos valores e estratégias. Precisamos construir uma união mínima em torno de ideias compartilhadas, respeitando as diferenças pessoais e oportunizando o diálogo aberto entre aqueles que lutam por propostas semelhantes. Os que se posicionam contra a autonomia feminina, a visão interdisciplinar do parto e a adoção de protocolos baseados em evidência sempre festejam estas brigas intestinas; só os conservadores tem a ganhar. As mulheres e seus filhos, objetivo maior de nosso trabalho, são os que mais perdem com nossa incapacidade de resolver esses problemas de forma compreensiva, amorosa e privada.

Sonho com uma conversa conciliadora entre as partes, o que entendo ser difícil em um momento de sentimentos aguçados e honras feridas. Todavia, o que restaria da vida sem a possibilidade de sonhar?

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Fantasia

FaNTASIA

De vez em quando sou assaltado por uma velha curiosidade que me foi pela primeira vez apresentada por Slavoj Zizec no brilhante documentário sobre cinema chamado “A Pervert’s Guide to Cinema“: qual a necessidade da fantasia? Por que investimos tanto – como sujeitos ou sociedade – em aplacar a dureza do mundo real criando um substituto irreal?

Por que nossa busca incessante por um mundo paralelo, fantasioso e épico, que nas crianças é tão somente mais evidente, mas que nos adultos é companhia infalível nos sonhos, devaneios e fantasias de toda ordem? Qual a incompletude do mundo real que necessita ser incessantemente coberta pela imaginação?

As crianças pequenas vivem em um mundo que tem apenas pequenos e breves contatos com o dos adultos. Quanto interagem com os adultos sempre pedem que que entremos em SEU universo, que parece ser bem mais divertido que o mundo dos mais velhos. Os pequenos carrinhos de lata são bólidos enormes e velozes, e neles viajamos na velocidade do sonho para distancias imensas; o espaço embaixo da mesa, onde minhas pernas mal conseguem se adaptar, se torna o esconderijo perfeito para, em silêncio, nos escondermos dos maldosos perseguidores. Será seu mundo de historias e aventuras o refúgio inexorável de uma realidade angustiante?

“Agora eu era o herói…” dizia a voz doce de Nara na musica de Chico. Heróis, fadas, princesas, monstros, cientistas malucos e aventureiros povoam iconicamente nosso pensamento, tapando os furos de vidas protocolares. O teatro e o cinema são apenas os veículos para abastecer de imagens e ideias a ânsia humana pela emoção e o desafio. Ao mesmo tempo que faço essas perguntas percebo que nenhum sentido teria a nossa existência sem o ópio da fantasia. Ela é o analgésico indispensável para a dor que sobrevém à série ininterrupta de frustrações, as quais chamamos … “vida”.

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Direita, volver…

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“A direita conservadora é sempre previsível. Não pode falar de diversidade sexual na escola porque os meninos vão se influenciar e se tornar homossexuais. Não pode falar de política e marxismo porque eles vai virar esquerdistas. Que heterossexualidade e liberalismo mais frágeis esses que não suportam uma confrontação de ideias e não aguentam um debate!!!”

Max

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Ativismo Ácido

ativista

Entendam de forma dialética. Não fosse a “infantilidade” e a “falta de modos” na abordagem de alguns ativistas – principalmente os da primeira leva – talvez estivéssemos todos de bem com os médicos e todas mulheres indo placidamente para as cesarianas sem contestação, como vaquinhas para o abatedouro. Não teríamos 57% de cesarianas, mas 85%, como Monterrey. Entretanto, “não se faz uma revolução – e nem se altera a pirâmide de poderes – com sorrisos e tapinhas nas costas”, adaptando a famosa fala de Sheila Kitzinger.

A humanização do nascimento cresceu de forma VERTIGINOSA no último decênio EXATAMENTE porque ativistas produziram esse enfrentamento e colocaram a cara à tapa. Não foi com sorrisos amarelos e reuniões em hospitais; foi com grito, passeata, buzina e alguns (in)evitáveis exageros. Como falou Ciro Gomes há algumas semanas “É por vocês que estamos lutando, seus #$¥£@#!!!

Dizer, do alto do seu conforto e de sua inação, que a conduta de algum ativista durante estes conflitos foi “infantil” é negar a evidência de uma luta absolutamente desproporcional de poderes; é igualmente desreconhecer a importância vital destes personagens na construção de novos paradigmas em qualquer ramo do conhecimento.

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23 Fatos sobre partos em um Hospital na China

partos china

Primeiras impressões sobre a obstetrícia na China. Hospital Geral de Ju Lu, uma cidade média que está distante 1000 km da capital Beijing.

1- Não há homens atendentes de parto, e por questões claramente culturais. Médicas e parteiras trabalham lado a lado, mas em um ambiente 100% feminino.

2- Não há pediatras na atenção ao parto, mesmo em gestações de risco. Somente parteiras treinadas. Se existe algum problema a criança é levada para a unidade de neonatologia que fica ao lado. O mesmo se observa na Europa.

3- Icterícia neonatal se trata com:

  • Luz
  • Hidratação
  • Medicina Chinesa – um conjunto de ervas. Fiquei tão interessado que elas me deram uma caixa de presente com as ervas para icterícia neonatorum. Elas ficaram impressionadas com a excessiva (para elas) preocupação que temos com a bilirrubina.

4- Taxa de episiotomia 15%.

5- Partos deitados, posição tradicional, infelizmente. Esse é um modelo que precisa mudar. Ficaram vivamente interessadas em tentar oferecer posições alternativas.

6- Elas realizam parto na água, em uma sala especial, bastando para isso pagar uma taxa de 600 yuan – 300 reais. Usam uma banheira moderna, feita na “Dinamarca”. Gostam muito de atender partos assim.

7- Duas maternidades no mesmo prédio: uma simples e a outra SUPER sofisticada, mais chique que todas que já vi nos hospitais de Porto Alegre ou São Paulo (e eu estou agora em uma cidade menor do que Caxias do Sul – 400 mil habitantes). A maternidade chique tem modelo PPP (pré parto, parto e pós parto) que é usada por pacientes mais sofisticadas e que aceitam pagar uma conta mais alta. “Gente phyna da China”.

8- O sistema de saúde é sempre “meio público e meio privado”. Não existe atendimento grátis e universal. O governo paga uma parte sempre, mas o resto é com você. A paciente é quem escolhe se quer ir para a maternidade chique ou para a mais simples (que, no entanto, é bonita e funcional). Quando perguntei “e se o paciente não tiver como pagar?” as parteiras se olharam e responderam “elas pedem para a família ajudar”.

9- É curioso passar na frente dos banheiros nos corredores do hospital e sentir o cheiro forte de urina. Isso parece não incomodar ninguém nos restaurantes, aeroportos e/ou hospitais. Esse cheiro é o que mais me impressiona como visitante.

10- Enfermeiras ganham 3.000 yuans por mês quando são funcionárias iniciais. Com o tempo podem chegar a 4.000 yuans. Isso significa entre R$ 1.500,00 e 2.000,00 mensais, muito pouco para o padrão ocidental. Elas ficaram muito interessadas em saber quanto se ganha no Brasil por parto realizado, ou quanto ganham enfermeiras e médicos trabalhando em hospitais (o que é sempre difícil de responder).

11- Trabalhadores de saúde, como médicos e enfermeiras, ganham pouco e não tem acesso a uma vida plena de classe média. Quem ganha muita grana são os aventureiros do capitalismo nascente. Sempre, em qualquer lugar.

12- Eles têm genuíno respeito pelos “experts” estrangeiros. Minhas aulas de hoje lotaram e tivemos mais de 70 profissionais do hospital. Médicos, parteiras e até cardiologistas. Quando cheguei ao hospital para falar fui recebido na porta da frente pelo diretor médico do hospital que veio pessoalmente me cumprimentar. Ele fez questão de carregar minha pasta com o computador até a sala de conferências.

13- Eles têm muita vontade de aprender. Quando mostrei que, com pequenas adaptações, poderiam fazer partos verticais na cama da sala de partos, eles pegaram bloquinhos e começaram a fazer desenhos e anotações, inclusive o diretor administrativo do hospital que nos acompanhava.

14- Partos no setor público ainda acontecem em sala de parto, mas não há dificuldade alguma para adotar o modelo PP. Falei isso para elas e parece que entenderam. Prometeram tentar mudar o paradigma de “uma sala por vez”.

15- Ponto importante: apesar de não existirem doulas a família é aceita e convidada a ficar por perto durante TODO o trabalho de parto, na mesma sala e tomando chá. O marido pode acompanhar sua esposa quando ela vai para a sala de parto. Tive vergonha de explicar a elas nossa luta para ter doulas presentes nos partos hospitalares do Brasil.

16- As cesarianas são feitas pelas médicas e auxiliadas pelas parteiras. Não se usam dois cirurgiões em uma cesariana. Cesarianas são feitas no CO só em caso de emergência, caso contrário são feitas no centro cirúrgico.

17- Perguntei para a plateia na minha aula se havia alguém nascido de cesariana e só uma menina ao fundo levantou a mão, visivelmente envergonhada. Havia mais de 70 pessoas presentes.

18- Perguntei se alguma menina havia menstruado antes dos 12 anos e NENHUMA levantou a mão… (só havia 5 homens na sala). Quando perguntei o porquê um dos homens disse que a vida e a dieta na China são piores do que no Brasil ou nos Estados Unidos. Essa resposta apenas demonstra como os chineses tem uma visão deturpada e fantasiosa do Ocidente. A dieta normal dos chineses – muitos legumes, frutas, peixe, carne, nada de leite, pouco sal, quase nada de açúcar e sem refrigerantes – é MUITO melhor do que a dieta no Brasil e quilômetros à frente de uma dieta norte-americana.

19- A tese de que a menarca – início da vida menstrual – mais cedo nas meninas do ocidente se deve à dieta rica em gordura e à precocidade do estímulo sexual fica comprovada por essa minha tímida amostra de mulheres chinesas.

20- Perguntei quantas mulheres na sala já eram mães e umas 40 (mais da metade) levantaram a mão. Perguntei quantas haviam feito cesariana e NENHUM braço se ergueu. Ninguém havia feito cesariana. A China é um país que ainda não foi destruído pelo modelo ocidental dominado pelo medo e pelo ódio. Aqui podemos fazer um trabalho maravilhoso, pois não é preciso lembrar a elas como o parto normal é importante; elas nasceram assim e pariram seus filhos desta forma.

21- A taxa global de cesarianas no hospital (setores público e privado) é de 28%, tendo ao redor de 800 partos realizados por ano. Elas acreditam que esse número é muito alto, e está foi uma das razões para nos trazerem aqui.

22- O relacionamento de parteiras e obstetras é absolutamente colaborativo e amistoso. É emocionante de ver.

23- Existem bolas de Pilates em todas as salas de pré parto, mas na maternidade pública não tem chuveiro para as pacientes em trabalho de parto. Mostrei a elas que água (ou como chamo, “Aquamerol“) é essencial para o parto e elas anotaram nos seus caderninhos.


A taxa global é alta, mas Ju Lu é uma cidade pequena no interior da China. Em Beijing, a situação é certamente diferente, mas não creio que a alta taxa de intervenções seja pelo controle governamental. As razões para a atual situação são provavelmente as mesmas que ocorrem em outros países: medo de processos, tempo, dinheiro, poder, médicos desconectados com a realidade do parto normal, formação acadêmica tecnicista, professores velhos que não atendem parto, etc. Mas nessa cidade o modelo ainda é muito centralizado na fisiologia do parto.

Com exceção da estátua do Mao na frente do hospital, nada poderia ser mais capitalista do que esse modelo. Quando falo (com muito orgulho!!!) do nosso cambaleante SUS elas ficam abismadas e encantadas. “Tudo de graça?”, perguntam. Tenho vontade de começar a conversa com elas dizendo: “Bem, no meu país, a República Socialista Democrática do Brasil, o sistema único de saúde blá, blá, blá….”

s parteiras são umas gracinhas, gentis, sorridentes, tímidas e tem uma enorme vontade de aprender. Não tem vergonha de perguntar nada sobre parto, Brasil, salário, estilo de vida, filhos, etc. Por outro lado são reservadas ao extremo. Uma delas me mostrou uma foto no seu celular de um parto no hospital onde trabalha (bem longe, elas vieram de várias partes da China para o nosso workshop) em que aparecia o marido beijando a esposa logo após o nascimento do filho deles. Nada que a gente não se acostumou no Brasil, e não era nem “desentupidor de pia”; era quase um “selinho”. Todavia, no momento do beijo o seio esquerdo da mulher estava à mostra, enquanto segurava o bebê, e isso causou um certo desconforto, inclusive entre elas. Perguntei o porquê e elas deram aqueles risinhos envergonhados cobrindo a boca. “A China é muito conservadora, doutor“.

Na China as midwives são todas enfermeiras. Não há “obstetrizes” de entrada direta, como Ana Cristina Duarte ou Cristina Balzano Guimarães, ou como as parteiras da Holanda. Outro detalhe importante: não há subalternos no cuidado. Não existem técnicas ou auxiliares de enfermagem; todo o serviço é feito por elas, com exceção da nutrição ou da limpeza do local (a das pacientes também é com as enfermeiras).

As taxas de cesariana estão aumentando principalmente pelas grandes cidades, como Beijing. Lá o paradigma de atenção tenta copiar o pior modelo do mundo, o americano: sem parteiras na atenção e alta tecnologia. “High tech low touch”. Iatrocêntrico, etiocêntrico e hospitalocêntrico. Esse modelo nunca funcionou onde foi utilizado, pois desconsidera as dimensões emocionais e o suporte psicológico e afetivo que foi a marca do nascimento desde o surgimento de nossa espécie.

Elas se preocupam muito com bolsa rota e me perguntaram como atendemos. Disse que o meu critério é aguardar trabalho espontâneo por 24h e só depois penso em induzir. A maioria esmagadora entra em trabalho de parto nesse período. Elas me contaram que internam todas as bolsas rotas e quando perguntei ao porquê me disseram que era por medo de “prolapso”. Partos pélvicos são atendidos por cesariana. Percebi que as parteiras não têm treinamento para atendimento de pélvicos. Gêmeos apenas se o primeiro for cefálico e o segundo for pélvico. A explicação para isso ficou “lost in translation“.

Elas investigam espessura da parede uterina por ultrassom para atender VBAC. Expliquei que não fazemos isso no Brasil por não haver evidências de que possa prevenir rupturas. Não fazem versão externa para pélvicos e nem sabem técnicas, posturas, exercícios, homeopatia ou acupuntura para tratar essas posições.

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Silêncio Benevolente

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Sempre agradeço a todas as pessoas que explicitamente gostam de mim, em especial aquelas que já expressaram isso. Não são muitas, bem sei, essencialmente por culpa minha. Como já disse anteriormente, nasci sem o dom da simpatia, uma das virtudes que mais admiro e invejo. A pessoa simpática é acima de tudo corajosa e segura, pois sabe que seu sorriso pode ser confundido com fragilidade ou fraqueza; mesmo assim sorri e expõe sua alegria e brilho interiores. Nunca tive essa segurança a essa força para poder ser simpático e doce.

Mas hoje lembrei das pessoas que NÃO gostam de mim, as que não me aceitam e que não me suportam. Sempre penso que, no lugar delas, teria infinitos argumentos para justificar tal antipatia e rechaço. Não é preciso muita imaginação ou criatividade; basta me conhecer por pouco que seja para ver uma plêiade multicolorida de defeitos aparecerem no meu rosto como o brotar instantâneo de uma acne adolescente. Entretanto, é para estas pessoas que vai meu agradecimento.

O Mestre nazareno já dizia que “os inimigos são teus verdadeiros amigos”. De fato, são eles que nos mostram os tantos defeitos que carregamos, mas como sabê-los sem que nossos desafetos os apontem a nós? Para isso nossos inimigos são essenciais e indispensáveis.

Porém, há um tipo de desafeto que, ao perceber seu momento de dor e angústia, refreia seu impulso de lhe criticar e …. se cala. Silencia por caridade e consideração, mesmo nutrindo verdadeiro desamor por você. Ele sabe que a crítica mordaz, mesmo que justa, neste momento seria um exagero de crueldade. Diante disso, aguarda um momento melhor para oferecer o beneplácito da ofensa pedagógica.

Aos que me desgostam e silenciam, meu agradecimento sincero e emocionado. Vocês são verdadeiros amigos, os melhores que se pode ter.

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Entrevista em Portugal

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Acabo de assistir a manifestação de uma obstetra de outro país (sim, uma mulher) sobre a humanização do nascimento em que ela inicia sua fala dizendo que “não existem partos naturais; existem apenas partos eutócicos ou distócicos“. Achei interessante essa frase porque ela revela claramente a forma de traduzir um fenômeno humano sem levar em consideração seus elementos… humanos. Ela basicamente desconsidera o parto na perspectiva de quem o está incorporando, e o classifica por quem o observa e intervém. Nesta concepção não há sujeito no parto, o qual se restringe apenas a um fenômeno que ocorre em uma pessoa sem que esta tenha qualquer interferência sobre ele. Esse é o retrato fiel do modelo médico da atenção ao parto.

Entrevistas como esta são sinalizadores inequívocos dos estertores do velho paradigma. Elas escancaram a desconexão do discurso médico com a cultura dinâmica e mutante. Não há mais como separar as intervenções médicas das expectativas e valores dos pacientes, em especial das mulheres que passaram – e ainda estão passando – por uma profunda transformação em seu papel social. A assimetria de poderes – que ainda é vista por muitos médicos como o elemento central da ação médica – perde espaço para uma atitude que tende à igualdade e à cooperação. Se a confiança no conhecimento e capacidade dos profissionais sempre será essencial, a prepotência e a desconsideração das dimensões humanas e subjetivas do paciente vai perdendo sua força a olhos vistos pelo surgimento de uma cultura que não aceita mais a alienação como forma de relação entre os diferentes atores sociais. Construir uma atenção ao parto sem garantir o protagonismo à mulher como a pedra fundamental da atenção ao nascimento ficará em nossa memória como a lembrança desconfortável de uma época de prepotência que por muito tempo regulou as relações entre os médicos e seus pacientes

Veja aqui a entrevista

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Rochedo

Rochedo

“Os homens livres são um perigo para os déspotas; as mulheres livres o são para os chauvinistas. O livre pensador é – pelo simples pensar – uma ameaça ao dogmatismo e à irracionalidade. O sincero ameaça de morte o falso e o dissimulado. Todavia, o maior perigo está naquele que perdoa; este será sempre o rochedo a impedir o avanço do oceano de ódios.”

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Devaneios juvenis

Eu não passava de 14 anos e tinha uma vida inteira e incerta pela frente. Não sabia exatamente como era o mundo, como se construíam suas tensões e nem como se organizavam seus caminhos.

Sentado no banco do ônibus sentia os tapas estroboscópicos da luz que driblava os prédios e as árvores para encontrar meu rosto de menino. O ar frio matutino arejava meu pensamento colegial, e fazia minhas ideias volitarem por sobre o cabelo desgrenhado.

De súbito um corpo de aproxima do banco onde eu sentava. Não lhe pude ver pois que estava atrás da linha dos meus olhos, mas seu braço se projetou defronte meu rosto para se apoiar na guarda do assento em frente ao meu.

Uma moça. Só o que podia ver era seu braço coberto por uma fina lâmina de tecido branco que se ajustava às suas voltas e reentrâncias. O tecido terminava com uma delicada renda no punho, que cobria parcialmente sua mão pequena. Os dedos esquálidos terminavam em pequenas unhas vivamente coloridas com esmero e cuidado. A pele era morena, o que fazia contraste com a alvura do tecido da blusa, num contraponto instigante. A renda se movia com os solavancos do coletivo, fazendo uma estranha dança sobre a mão pequena e firme. No dedo anular um delicado anel, cuja luz refletida pintava de amarelo minha retina.

Fiquei olhando para aquele fragmento de pessoa, tentando imaginar o que se escondia para detrás do meu campo de visão. Como seria seu rosto, seu corpo, seus lábios e seios? Qual seria sua voz? Que pensamentos carregava em sua mente naquela manhã? Estaria, como eu, indo à escola? Seria mais velha do que eu?

Quanto mais eu brincava mentalmente com essas perguntas mais me fascinava ao olhar aquele braço à minha frente. Entretanto, percebi que este fascínio era muito mais pelo que eu não via do que pelo que se apresentava à minha frente. O que me excitava os sentidos era imaginar para onde corriam as veias que eu via plúmbeas na mão apertada contra respaldar do banco. O não sabido era o mais interessante; o que eu não via era o que mais me atraía.

Repentinamente a mão se desprega do banco e se recolhe, aproximando-se do corpo que eu não via. O chiado da porta se abrindo anunciou a parada. O corpo da moça é ultrapassado por outro vulto e seu braço escapa da minha visão. Quando crio coragem de voltar minha cabeça para trás e já não mais ela está ali. Envolta num emaranhado de corpos com pressa ela sai pela porta sem que eu tivesse a oportunidade de admirar o resto de si.

Com outro chiado e a porta do ônibus novamente se fechou. A moça da blusa de renda se foi sem deixar vestígios, e não ser a ferida viva em minha memória, a sensação inebriante de encantamento que me acompanha há quatro décadas.

Talvez ali, naqueles momentos de pura fantasia durante uma viagem matinal de ônibus, eu tenha me aproximado de forma definitiva do mistério e do encantamento que constituem o feminino. A esta moça a minha dívida por ter me oferecido uma amostra discreta do infinito que uma mulher representa.

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