Sobre um texto que está rolando aí exaltando cesarianas e desmerecendo ativismo por partos dignos:
“Mais sobre o mesmo. Intervencionismo médico. Os médicos como salvadores das mulheres, donas de corpos perigosos e defectivos. Um texto óbvio do intervencionismo médico escrito com 10 a 15 anos de atraso. Os argumentos da Dra já foram contestados por inúmeras publicações no mundo inteiro. A sua fala é repleta de um vazio ruidoso: a incapacidade de enxergar o fenômeno pela perspectiva da mulher, e a brutal obliteração de ver a transcendência imanente de um nascimento.”
Se há algo que aprendi no falecido Orkut é não discutir com pessoas que fazem críticas “ad hominem“. No texto da Dra., fartamente distribuído (mas não por mim…), o que sobra como evidência é a descrição do parto por um viés biologicista, “desumanizante”, tecnicista, coisificante e objetualizante. Em nenhum momento ela se refere às pacientes como pessoas dignas e capazes de fazerem escolhas informadas sobre riscos e benefícios de uma grande cirurgia. É um texto agride as evidências científicas (SIM) e que, infelizmente, não oferece uma interface para debate, e isso ocorre por uma questão bem simples: ela NÃO enxerga no parto algo que eu e muitos ativistas dos direitos reprodutivos e sexuais enxergamos: um processo importante de empoderamento feminino e uma preservação da integridade física da mulher.
Entretanto, o texto dela reflete uma realidade cada vez mais evidente: os movimentos sociais, o governo, o Ministério Público, a pressão internacional e as evidências científicas expuseram a posição dos médicos cesaristas como amplamente questionável, demonstrando o viés mercantilista da prática de atender por “linha de montagem”. A defesa – cada vez mais frágil – é confundir “parto humanizado” com parto desassistido ou parto domiciliar, já que as bases da humanização do nascimento são mais do que provadas no campo da pesquisa (como a negativa de usar episiotomias, Kristeller, enemas, tricotomias e cesarianas rotineiramente e sem justificativa clínica).
Assim, a Dra se esforça em mostrar que um parto fora do CONTROLE da medicina é inseguro, mesmo quando as grandes potencias mundiais mostram-se cada vez mais voltadas aos tratamentos realizados por especialistas em parto normal (as enfermeiras e obstetrizes) e reservando aos médicos apenas os tratamentos que incluem patologias. Os argumentos que ela usa são os MESMOS que eu escuto há 30 anos, por isso eu disse que seus escritos tem 10 a 15 anos de atraso. Nós já debatíamos isso no início deste milênio, e a ideia de incentivar cesarianas se mostrou inadequada para mães e bebês, mas inquestionavelmente boa financeiramente para médicos e instituições. Continuar investindo no paradigma cirúrgico é colocar a vida dos pacientes em risco, mas incentivar partos normais com profissionais adequados, capacitados e aparelhados, oferecendo o PROTAGONISMO às mulheres, a visão interdisciplinar e a vinculação com a Medicina Baseada em Provas, é o caminho das grandes democracias.
Acho que não vamos a lugar algum xingando doulas, que tem sua função baseada em evidencias, e são reconhecidas como auxiliares importantes no processo de parto, exatamente por oferecer o calor do afeto à frieza da atenção médico-hospitalar.
O que o texto da doutora ressalta é a centralidade dos médicos e da medicina no cuidado de um processo fisiológico como o parto, com uma visão de “progresso” oriunda do século XIX, onde este se confundia com o acúmulo de tecnologia. Ora, qualquer pensador contemporâneo reconhece que a adoção de um paradigma serve a interesses explícitos e implícitos. O problema é que os interesses invisíveis se tornam cada vez mais claros e transparentes através da análise simples de dados, como a violência obstétrica e a taxa abusiva de cesarianas. O “mito da transcendência tecnológica”, como qualquer mitologia, não se estabelece num vácuo conceitual; pelo contrário, ela expressa valores e interesses de grupos – como os médicos – e instituições – como a indústria farmacêutica e de equipamentos, hospitais etc. – que se servem de um modelo que inferioriza a mulher através de uma visão diminutiva de suas capacidades de gestão e parir com segurança e autonomia. Enquanto tivermos mulheres “fracas” e partos “bomba relógio” teremos médicos e intervenções valorizados acima de sua real necessidade. O texto da doutora explora explicitamente este viés característico do discurso, que serve aos propósitos da sua corporação. “Somos maravilhosos, salvamos mulheres, somos imprescindíveis, exatamente porque sem nós as mulheres são incapazes de dar conta dos desafios da parturição“.
Como eu disse acima, esse discurso “chapa branca” da medicina é antigo mas se choca com as evidências do mundo inteiro que se esforçam pela desmedicalização da vida e, em especial, do parto, em função dos resultados ruins do intervencionismo e da crescente insatisfação das mulheres com a atenção insensível e violenta que recebem.
Lendo o texto da doutora eu ficava pensando: “Meu Deus!!! Avisem os europeus, pois eles estão indo na direção oposta. Alguém precisa mostrar a eles como estão absolutamente errados, e como nós estamos maravilhosamente certos“.