Arquivo do mês: março 2015

Frustração e negação

frustacao

“É comum acreditar que um parto será “lindo” na dependência do que desejarmos. A prática nos mostra que, mesmo acreditando na importância dos desejos e projeções maternas, eles não são suficientes para garantir o destino de um nascimento. Parto é algo que acontece entre as orelhas, de uma forma subjetiva e única. Sua manifestação se encontra alicerçada no inconsciente, como qualquer outra manifestação da sexualidade humana. Assim, não há como se valer dos desejos expressos sem levar em consideração o universo de sensações, memórias da pele, lembranças, frases, marcas, sentimentos, sons, ruídos, luzes e cores que constituem nossa arquitetura psíquica. Só o que podemos fazer diante das demandas por experiências criativas e enriquecedoras é não criar falsas expectativas ou garantias ilusórias de um parto maravilhoso. Nem todos podem passar pelo parto como desejam: ele é um projeto que se consolida durante toda uma vida.

Estar preparado para as frustrações é sinal de maturidade e uma condição essencial para quem deseja se aventurar no campo da maternidade. Auxiliar na construção de uma experiência positiva e realista é dever de todos que se dedicam a acompanhar esta jornada.

É preferível se permitir frustrar por um não-parto do que criar uma ilusão de felicidade, a máscara mentirosa do não entristecer. Eu entendo quando se diz “não permitir que a natural frustração por um projeto que não vingou supere a alegria de um nascimento“. Isso sim é colocar as coisas em perspectiva, e estou de pleno acordo. Por outro lado eu desconfio muito quando pessoas negam suas dores. Por exemplo, quando mulheres se separam e me dizem que estão “felizes” ou que não sentem “nenhuma frustração”. O nome disso é negação, e ela não ajuda a superar os traumas e quedas. Assumir (e curtir!!!) suas tristezas é fundamental para a cura.

Um caso de cesariana bem indicada nos deixa tranquilos quanto à indicação cirúrgica, mas não significa um antídoto mágico contra as frustrações (dos pacientes e nossas). Que possamos vivê-las com a intensidade necessária para cada caso e cada sujeito, para que a recuperação seja a mais completa possível.”

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Rótulos

rótulo

Muitas pessoas se incomodam quando alguns profissionais do Brasil que atendem sob a égide da humanização do nascimento são chamados de “humanizados”. Eu não me importo com esta rotulagem.

O rótulo é inevitável. Se nós não falarmos os pacientes o fazem sem a menor cerimônia. Obstetra humanizado, enquanto rótulo, existirá enquanto houver necessidade de contrapor nossas condutas ao modelo hegemônico contemporâneo. Houve um tempo em que havia astrônomos heliocentristas, para diferenciarem-se daqueles que seguiam o modelo ptolomáico. Hoje eles se chamam apenas “astrônomos” e o heliocentrismo foi incorporado aos conhecimentos básicos deste ramo do saber.

Dia haverá em que os valores da humanização – protagonismo restaurado e garantido, visão interdisciplinar e respeito à MBE – serão a base para qualquer ação obstétrica, e o nome “humanização” cairá em desuso por redundância, e não por decreto;  muito menos por ferir suscetibilidades.

Eu não vejo problema algum em ser referido como obstetra “humanizado”, desde que o significado desta expressão esteja claro para quem a diz.

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Amamentação e Inteligência

Inteligente

Sobre a pesquisa recentemente divulgada que demonstra inequívocas vantagens na amamentação, principalmente no que tange à inteligência e ao sucesso pessoal.

Nenhuma pesquisa pode ser analisada de forma definitiva ou completa. Os resultados deste estudo a respeito da amamentação se assemelham com aqueles que demonstram as virtudes do parto normal em relação à cesariana. Se não é possível estabelecer uma linha reta de causa e efeito positiva (parto normal ou amamentação levando à saúde e ao sucesso) ou negativa (cesarianas e desmame levando à malefícios ou fracasso), também é verdade que as atitudes mais fisiológicas relacionadas com os ciclos femininos nos apontam para uma TENDÊNCIA de saúde e adaptação que não pode ser negligenciada.

Saúde, como sabemos, não ocorre por ações isoladas, mas através de uma rede interconectada de atitudes positivas. Amamentação e parto normal são elementos que, comprovadamente, atuam de forma positiva na promoção da saúde, mas pouca ação têm quando analisados isoladamente.

Simplesmente amamentar ou parir naturalmente não é garantia para o sucesso, e nem as cesarianas – ou a falta de amamentação – uma passagem só de ida para a derrota. Para conseguir esses benefícios é importante uma postura coerente, sistemática e constante em direção à harmonia de seus corpos e mentes com a natureza ao redor.

Criar “linhas retas” simplórias de causa e efeito só pode gerar frustração e interpretações equivocadas, mas negar os efeitos positivos dessas atitudes é cegar-se às provas e evidências do seu valor.

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Solidão

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As vezes eu penso que a maioria das teses que defendo são simples e fáceis de entender. Parto humanizado, protagonismo da mulher no nascimento, uso judicioso e consciente da tecnologia, visão integrativa do parto, uso de medicina baseada em evidências, soberania dos povos, fim do apartheid na Palestina, etc. são teses que se aproximam dos ideais libertários iluministas de liberdade, fraternidade e igualdade. Um conjuntos de conceitos com quase dois séculos e meio de existência não poderia ser algo difícil de defender.

Todavia, basta um passeio rápido pelo Facebook para perceber a emergência de “heróis” que defendem o oposto de tais princípios. Ditadura, darwinismo social, prepotência, sectarismo, obscurantismo belicoso, exaltação mística religiosa interesseira, solução de problemas centenários com medidas de exceção e um culto aos “salvadores da pátria” podem ser achados em todos os cantos virtuais da Internet.

Isso para mim é quase um alívio. Saber-se minoria é reconfortante para quem acredita que as unanimidades são tolas e frequentemente erradas. Lutar por mudanças de base – como uma nova visão sobre o parto e o feminino – é seara de decênios, e neste tempo é fundamental acostumar-se com a margem. O centro e seu conforto é reservado para os de índole calma; aos angustiados sobrará sempre a marginalidade e suas agruras.

E muitas vezes a solidão…

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Evidências

Evidencias

Para quem deseja acreditar, até a opinião do porteiro do hospital passa a ser evidência “nível A”. Por outro lado, para aqueles que não aceitam que seus paradigmas sejam questionados nenhuma metanálise será suficiente.

Nossa mente pensa racionalmente, mas atua emocionalmente. O desejo nos controla muito mais do que nossa vã filosofia ousa admitir.Ao alcançar o umbral da razão as certezas se desfazem como a bruma desaparece sob o sol da manhã.

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Ofensas virtuais

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Há alguns dias uma médica teria ofendido uma conhecida professora e obstetra humanista por causa da sua adesão à campanha para estimular os médicos a sentarem durante a assistência ao parto. Os adjetivos foram fortes, tendo nossa colega sido chamada de “sem noção“, “doentia” e “retardada“…

Eu creio que um pouco tem a ver com o ódio que assola a classe médi(c)a nos tempos atuais, misturada com o anonimato presumido nos comentários escritos no mundo das redes sociais. Entretanto, prefiro ir um pouco mais além e me aprofundar na análise da gênese de observações ofensivas e preconceituosas como estas.

Eu creio que estes comentários são análogos àqueles feitos pelos conservadores relativos ao beijos gays nas telenovelas. Trata-se de um choque estético, um modo diferente de olhar o amor (pelos outros e pelo parto) que abala mentes incapazes de pensar de forma criativa e abrangente. Muita gente ainda não compreendeu a razão da campanha para que os médicos sentem para auxiliar um parto, mas até que percebam que nos colocamos em posições estapafúrdias apenas para que a liberdade de posição da paciente seja assegurada, então jamais entenderão o sentido último do nosso malabarismo. Uma lástima que alguns escutem o grito, mas não sabem de onde vem. “Olha, psiu… vem daqui… aqui mais embaixo, onde habita o tal do protagonismo garantido“.

Escandalizar-se com médicos abaixo de uma mulher, adaptando-se às  posições dela (e não o contrário) ou com pessoas do mesmo sexo se amando, apenas demonstra a incapacidade de adequação a um mundo que gira e se transforma; muda e se transfigura. Para muitos dói saber que não existem verdades estanques ou modelos eternos. Tais xingamentos nada mais são que gritos de dor de sujeitos que perderam o chão, seus referenciais e seu norte, mas que são “velhos” demais para rever conceitos e posturas. Perdidos em sua angústia e medo só lhes resta xingar e ofender, iludindo-se que tais palavras agressivas possam fazer o tempo parar ou impedir a terra de girar.

Pobres e tristes, correm o risco de terminar seus dias corroídos pelo rancor.

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Conversa de Enfermeiras

Conversa de enfermeiras na troca de plantão do Centro Obstétrico de um hospital privado da cidade:

– E aí a sala de recuperação e o centro de material e blá, blá, blá, e a escala, e a rouparia e blá, blá, blá, e as salas de parto e blá, blá, blá, e também depois do aumento que houve, né?

Espichei o ouvido e perguntou:

– Aumento de quê? Salário?

Elas sorriram

– Quem dera doutor. Estávamos falando do aumento de partos normais no hospital. É impressionante.

– Sério?, perguntei eu.

– Sim, inquestionável. Vamos tabular e te mostrar.

Eu sabia que eu ainda estaria vivo para testemunhar a “virada”. A razão para a mudança? As mulheres, as mulheres.

Alguns dias depois e testemunhei três salas de PP no hospital cheias. Partos acontecendo a toda hora. Figuras desconhecidas transitando pelos corredores conduzindo trabalhos de parto. Em duas salas havia doulas acompanhando, enquanto maridos esperavam pacientemente lá fora o momento de trocar com elas de lugar.

Recém se completou um ano de “proibição branca” de doulas (as pacientes precisam escolher apenas um acompanhante, seja ele o companheiro ou a doula), mas nós não desistimos. Nossa tática foi aceitar a imposição e agir com suavidade. Com a quantidade de partos aumentando e o número de funcionários estacionado as doulas passaram a ser cada vez mais importantes e necessárias.

E isso fica cada dia mais fácil de constatar.

Parabéns meninas pela perseverança delicada e firme

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Defesa da própria cesariana

Cesariana

“A defesa da cesariana pelas mulheres que se submeteram a ela nada mais representa do que a proteção que estas fazem do sentido último da sua sexualidade. Por isso esta defesa frequentemente oscila entre a paranoia e a fúria.”

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Parto em Casa…

parto-expulsivo

Percebo que muitos profissionais que argumentam contra o direito de uma mulher parir em casa com auxílio qualificado (médicos e/ou enfermeiras e obstetrizes) precisam mais informações sobre a quantidade e a variedade de equipamentos usados no parto domiciliar planejado. Além disso, é importante que conheçam a realidade de países que, mais do que reconhecer a validade dessa assistência, ESTIMULAM que os partos sejam extra hospitalares e atendidos por midwives (enfermeiras obstetras e obstetrizes, no Brasil).

O discurso do “risco” serve como um fio lógico para justificar o controle sobre o corpo e a sexualidade femininas. Como diria Robbie Davis-Floyd, sempre que ouvimos a palavra “segurança” em relação à atenção ao parto a palavra correta deveria ser “controle“. O mesmo raciocínio de risco usado na assistência ao parto nos impediria andar de avião, ou obrigaria a presença de médicos em cada rua ou automóvel. Quando partos planejados em domicílio são comparados com os hospitalares em GRANDES avaliações e com RIGOR METODOLÓGICO o que se observa é um número muito pequeno de intercorrências relacionadas ao acompanhamento e uma baixa morbi-mortalidade em ambas as amostras, mostrando que o ambiente hospitalar não acrescenta segurança quando comparado ao ambiente extra-hospitalar.

Na minha formação médica também fui bombardeado pela “lógica do risco”, mas com o passar do tempo fui me dando conta que ela só fazia sentido num contexto patriarcal, de controle rigoroso sobre a sexualidade feminina. Assim, o parto hospitalar compulsório é um dos meios de propagação e manutenção de um discurso patriarcal e misógino, que deplora a autonomia das mulheres e que – acima de tudo – teme uma sociedade baseada na liberdade sexual e na relação igualitária entre os gêneros.

O que eu acho curioso é o fato de que se comparam partos domiciliares com a atenção hospitalar sem levar em consideração o que as mulheres desejam. Isto é: a vontade das mulheres nunca conta. É o mesmo que avaliar vantagens de um alimento sobre outro e desconsiderar o desejo ou apetite de quem come. Uma fantasia que corre no meio médico é que os profissionais humanizados determinam o local de parto para suas pacientes, quando é o oposto que ocorre: as pacientes é que solicitam ajuda para SUAS escolhas, baseadas em leituras, seminários, pesquisas, conversas, avaliações subjetivas e sua vontade. Portanto, não se trata de escolher o melhor local para parto, mas honrar – ou não – escolhas que as próprias mulheres fazem sobre o nascimento de seus filhos.

Alias… Parto domiciliar planejado no Brasil não passa de 2% da totalidade de nascimento, mesmo quando acrescentamos aos partos planejados aqueles ocorridos em zonas remotas do país, como o nordeste e a Amazônia. Trata-se, portanto, de uma realidade minúscula, mas sua vertente urbana é predominantemente um fenômeno de classe média. Uma questão burguesa, admito. Por esta razão, e pelo número pequeno de partos que acontecem desta maneira, quando me convidam para falar de humanização e parto domiciliar eu sempre digo: “Ok, desde que eu possa falar 98% do tempo em parto hospitalar e casas de parto e 2% em parto em casa, pois esta é REAL relevância da questão“.

Assim sendo, o nosso foco precisa ser na humanização da assistência hospitalar e o aprofundamento do debate sobre o DIREITO DE ESCOLHA por parte das mulheres, sem constrangimentos ou pressões de qualquer natureza.

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Sobre as Tetas

ACER

Historias curtas de Porto Alegre….

Aconteceu enquanto almoçava solitário em um restaurante de Porto Alegre.

Uma senhora desconhecida se aproxima de mim enquanto eu estava terminando meu almoço. Com olhos arregalados, boca de um vermelho vivo e brincos extravagantes, ela coloca a mão no meu ombro e com olhar severo me diz:

– Você é o João Vicente, não é?

Ainda tenho tempo de terminar minha última garfada e, claramente surpreso, respondo:

– Olha, infelizmente não. Eu me chamo Ricardo.

Ela fica desconcertada e me enche de desculpas. Diz que estava me olhando há alguns minutos mas que tinha “obrigação” de me perguntar quem eu era. Eu, também sem jeito, resolvo ser simpático e lhe digo:

– Não se recrimine. Esse João Vicente deve ser um jovem senhor muito charmoso também. É natural que as pessoas se confundam assim.

A senhora dá uma boa risada e me explica:

– João Vicente é meu sobrinho, filho da minha irmã, e ele é a sua cara. Incrível como são iguais! Na verdade eu estava furiosa porque achei que ele estava esnobando sua velha tia.

Sorri para ela amistosamente e disse que nenhuma pessoa em sã consciência esnobaria uma senhora tão charmosa e chique, muito menos um sobrinho.

Mais uma gargalhada e ela arrematou.

– Muito verdade, Ricardo. Imagina só, mamou nessas tetas e agora me esnoba!!

Bateu forte com a mão espalmada nos seios fartos e saiu caminhando. Eu só olhei para o lado e baixei a cabeça, com esperança que ninguém tenha escutado pela metade nossa breve conversa.

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