Arquivo do mês: novembro 2017

Mensageiros Solitários

Fui lavar as mãos no lavabo de casa e percebi a pequena estatueta de vidro por sobre o balcão fazendo companhia à saboneteira e aos livros empilhados. O brilho imponente do objeto me jogou imediatamente para um espaço da memória distante e para uma cidade do interior do Brasil onde ela foi feita. A estatueta foi um presente que ganhei após fazer uma palestra em um hospital, algo que se repetiu mais de uma centena de vezes nos últimos 10 anos.

No último dia de estada na cidade a simpática esposa de um colega me ofereceu o objeto como presente pela minha exposição do dia anterior para um grupo de médicos, enfermeiras, e doulas da cidade. O tema foi “Amamentação e o continuum da Humanização“.

Este colega havia passado recentemente por uma espécie de “epifania humanizadora”, a exemplo de tantas outras que eu testemunhei em minha vida. A partir de experiências traumáticas pessoais ele conseguiu desfazer a capa de insensibilidade que construiu por sobre a atenção ao parto e percebeu o quanto dos seus insucessos eram devidos à inadequação e ao anacronismo de sua prática profissional. Acreditem, esta é a autocrítica mais penosa e dolorida. Também ele havia descoberto esta e tantas outras verdades ao se aproximar da prática das enfermeiras obstetras, as quais lhe ensinaram o valor superior do cuidado e da delicadeza. Marsden, Michel e eu mesmo passamos pela mesma experiência.

Suas ideias eram grandiloquentes e entusiásticas. Com vívida alegria me levou por um “tour” no novo centro obstétrico do pequeno hospital onde, por iniciativa sua, uma banheira de parto estava sendo instalada, assim como vários aparelhos simples e funcionais para o auxílio ao parto humanizado. Ele era puro entusiasmo. Na condição de diretor havia conquistado poder para fazer as mudanças. Falava dos partos ocorridos após sua “conversão” e as lágrimas lhe escapavam dos olhos. Disse que aquela pequena cidade em breve seria um polo de boas práticas para toda a região, a começar pela abolição das episiotomias de rotina, o parto na água, o trabalho das parteiras profissionais, as doulas, os acompanhantes, etc. Seu entusiasmo e sua energia eram contagiantes.

Despedi-me de sua família com a sensação do dever cumprido e com a esperança de que aquela cidade simpática do interior do Brasil pudesse realmente se tornar um exemplo para todo o estado – quiçá o país – irrigando com humanização a aridez tecnocrática daquelas maternidades.

Passam alguns poucos anos e encontrei a doula que estabeleceu o contato inicial entre o colega entusiasmado e eu. Perguntei-lhe como estava meu amigo e como iam os planos de renovação da maternidade e do centro obstétrico.

Sua resposta não poderia ser mais esclarecedora. Disse em apenas algumas palavras, mas que foram um grande ensinamento e uma importante aula de humildade.

– Não sobrou pedra sobre pedra, Ric. Mudou a direção do hospital e ele foi retirado da chefia da maternidade. O novo diretor mandou destruir tudo o que havia sido feito. Desfez a banheira de parto, impediu o trabalho livre das doulas e acabou com a relação de cooperação com as enfermeiras obstetras. Ao ser indagado o novo diretor disse que havia sido pressionado pelos médicos, os quais há tempos estavam insatisfeitos com as mudanças. Sinto muito.

“Mudanças de cima para baixo”, pensei. Meu colega, em seu surto humanizante, estava à frente do seu tempo. Estava inclusive adiante das próprias gestantes a quem desejava ajudar. Bastou ele ser afastado e tudo se perdeu. “Atire no mensageiro”, deviam ter dito seus colegas obstetras ao diretor. Sem ele a liderar as mudanças não haveria massa crítica e muito menos lideranças femininas para dar continuidade às suas mudanças. O tiro foi certeiro; com o mensageiro derrubado a mensagem se apagou junto com a última chama de entusiasmo que carregava.

Ficou doente, teve um AVC e se aposentou,  completou ela com resignação. Agora teremos que começar do zero.

Suspirei fundo e respondi que não seria do “zero”, pois agora já sabiam que nenhuma revolução pode florescer confinada em uma única cabeça. Agora já é possível entender que a luta precisa surgir do coração de cada mulher oprimida por um sistema violento e arbitrário. Se lutadores como o meu colega são importantes e bem-vindos muito mais essencial é cultivar um movimento que não dependa de uma única alma liberta e esclarecida. É preciso formar uma consciência tal que a troca de um líder não afete a progressão das mudanças.

A verdadeira revolução do parto virá das mulheres, ou não virá.

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Luto

É importante – talvez essencial seja a melhor palavra – preparar-se psicologicamente para todos os desfechos não desejados de uma gestação, como um parto com intervenções, uma cesariana e até a morte de um bebê. Meu pai sempre dizia: “Lute pelo melhor, prepare-se para o pior”. O luto que se segue aos fatos inesperados é mais difícil, longo e dolorido do que aquele conversado, reconhecido e preparado, cujas etapas de assimilação e resolução foram previamente esclarecidas e debatidas.

Não há mal algum em se preparar psicologicamente para qualquer infortúnio no processo de gestação, assim como é obrigação dos profissionais de parto abrir um espaço no pré-natal para debater estes temas. Deveria haver em todo acompanhamento pré-natal um tempo para que as mortes pudessem ser trazidas à fala, para que ninguém deixasse de reconhecer que o nascer implica uma série de lutos.

Adélia Messider Perman, “A Flor Negra – Ensaios sobre Luto e Despedida”, Ed. Lacroix, pág 135

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Palestina Livre

Há muitos anos eu pensava como boa parte dos ocidentais que acreditavam na narrativa heroica da reconquista da “terra Santa”, a retomada de Israel, o retorno à “Terra Prometida”, o “a terra sem povo para um povo sem terra”, em especial pela propaganda insidiosa do cinema americano que sempre mostrava os árabes como fanáticos, irracionais, egoístas, machistas, violentos e vingativos. Nunca a imagem de um povo inteiro foi tão massivamente atacada quanto ocorreu com os árabes a partir da segunda metade do século XX. São inúmeros os exemplos de preconceito odioso no cinema americano neste período. Todavia, tive a oportunidade de assistir um fabuloso documentário chamado Reel Bad Arabs (que pode ser visto no Youtube), de Jack Shaheen que demonstrava de forma inequívoca como Hollywood manipulava a forma como enxergamos o Oriente Médio, com evidentes interesses geopolíticos. Jack G. Shaheen, observa que apenas os nativos americanos têm sido tão implacavelmente difamados pelo cinema, e mostra com mais de 1000 filmes analisados que “árabe” permaneceu a abreviação descarada que Hollywood passou a usar para designar “bandido”, muito depois de a indústria cinematográfica ter mudado sua representação de outros grupos minoritários. Esse filme abriu meus olhos para isso. Até então eu creditava que Israel havia feito o deserto florescer, que era uma “ilha de civilização no meio da barbárie”, que havia criado a célula mais interessante de trabalho socialista – os Kibutzim – para dignificar o trabalho do seu povo.

Por muitos anos também acreditei nas falácias de que Israel era a única democracia em meio à tiranias e ditaduras. Quando vi o poder de manipulação dos meios de comunicação sobre a realidade no Oriente Médio eu pude entender o quanto eu estive envolvido em mentiras por décadas. Estas e outras tantas falsidades foram criadas para justificar o Nakba – a catástrofe que se iniciou em 1948 com a expulsão de 750.000 palestinos de suas casas durante a tomada do país por forças sionistas. A narrativa que justificava esta limpeza étnica brutal era baseada em mentiras, como a ideia de que os palestino abandonaram suas casas por vontade própria. Falso; em verdade, Israel é a própria barbárie no oriente médio, o principal fator de desestabilização na região. Ao contrário de “A villa in the jungle”, como ousavam falar os sionistas, Israel é a própria selva, espalhando terror e exclusão a todos os países ao seu redor.

Passei a estudar a questão Palestina há quase 20 anos, mesmo correndo o risco de ser chamado de antissemita, algo que ocorre com todos que se aventuram a estudar a história da região e descobrem os massacres, as mortes, os abusos, as prisões, as torturas. Não aceito mais cair na armadilha do “antissemitismo”, como denunciou Norman Finkelstein, quando na ausência de argumentos para defender o colonialismo branco europeu no oriente médio se levanta a “cartinha do holocausto”, procurando calar qualquer oposição à invasão colonial. Ninguém mais pode aceitar esse tipo de cilada. Israel é uma colônia europeia, encravada na Palestina histórica, roubado dos habitantes originais que habitam a região há milênios. Israel é um país que, para manter o domínio à força da região, não se priva de matar mulheres e crianças palestinas. Como dizia sua ex-primeira ministra Golda Meir “Não podemos perdoar os árabes por matar nossas crianças, mas jamais poderemos perdoá-los por nos obrigar a matar as suas”, culpabilizando as próprias vítimas pelos massacres a que eram submetidas numa demonstração impressionante de racismo e desprezo pelo povo palestino. No último grande massacre a Gaza (2014) foram 2200 mortos sendo 500 crianças. Gaza não tem tanques, exército ou armas. Foi um massacre covarde contra a população civil.

Existe, entretanto, a ideia de que os palestinos participam da democracia israelense. Qualquer observador atento perceberá que se trata de uma “história para inglês ver”. Os palestinos na política de Israel são uma farsa, apenas usados para dar uma face democrática e enganar os incautos que desejam acreditar na falácia de um “Estado Democrático e judeu”, que nada mais é do que uma etnocracia, tão violenta e excludente como era o apartheid na África do Sul. Os palestinos de Israel são “cidadãos de segunda classe” (como eram os negros na África do Sul) e são oprimidos pelas mais de 50 leis racistas que discriminam judeus de palestinos, e por certo que não poderão jamais constituir uma maioria no Knesset. Os 6 milhões de palestinos não tem direito a voto, e isso já seria suficiente para deixar claro que Israel é um país excludente e opressor. Infelizmente, é essencial explicar sempre que nos manifestamos que ser contra o modelo de limpeza étnica e extermínio de Israel contra a população originária palestina não é ser contra os judeus, da mesma forma que ser contra os nazistas não é ser contra os alemães.

Por isso, ao estudar a questão palestina eu centrei minha atenção sobre os autores e jornalistas judeus que cobrem a questão, exatamente para evitar as visões marcadamente desviantes e comprometidas. Desta forma cito aqui os meus heróis judeus para aclarar as questões relativas à Palestina e o neocolonialismo europeu no oriente médio, o qual se baseia em limpeza étnica e genocídio da população que lá vive há séculos. Apenas lembrem que o antissemitismo é um drama europeu, e que nunca houve animosidade entre os judeus e a população árabe do local até meados do século passado com a imigração do movimento sionista para a região, que culminou com a criação do Estado de Israel em terras palestinas em 1948. Os autores são: Ilan Pappe, Max Blumenthal, Miko Pelled, Norman Finkelstein, Shlomo Sand, Gideon Levy e Noam Chomsky. Além deles, eu citaria os não judeus, como o jornalista e deputado inglês George Galloway e o ex-presidente americano Jimmy Carter, que são grandes críticos ao modelo de Apartheid em Israel.

Estes autores, seus livros e suas palestras, foram responsáveis pela mudança na minha perspectiva sobre a verdadeira narrativa Palestina e o roubo da sua terra. Foi com Norman Finkelstein e “A Indústria do Holocausto” que eu acordei para estas acusações toscas de antissemitismo para todos que defendem a Palestina, usando o corriqueiro “holocaust card”. Foi com Miko Peled, o filho do General israelense, que eu entendi a segregação racial por dentro de Israel e compreendi as verdadeira história da guerra do Yom Kipur, ocorrida em 1967, e que causou a anexação de grande parte do território palestino. Foi com Ilan Pappe que eu entendi a limpeza étnica da Palestina que foi arquitetada desde o século XIX, em especial os significados do Nakba e sua história. Ilan Pappé, da Universidade de Exeter, é um dos mais importantes “new historians”, que elaborou sua perspectiva a partir da leitura os arquivos secretos tornados públicos sobre as guerras israelenses. Foi com Shlomo Sand que entendi a invenção do “povo judeu”, que nada mais é que uma criação ficcional para justificar o extermínio árabe e o domínio político e militar da região. Já com Noam Chomsky, antigo defensor do sionismo, entendi que não há nada de verdadeiramente judeu em apoiar um sistema assassino e desumano, e que sempre é tempo para mudar e escolher o lado certo da história. Foi assistindo “5 câmeras quebradas” que pude ver de perto a resistência pacífica dos palestinos e seu sofrimento sob a opressão de um estado brutal e violento. Finalmente, foi com Max Blumenthal que eu percebi a brutalidade dos ataques a Gaza promovidos pelo Estado sionista de Israel através do seu livro “The 51 days War“, sobre o massacre ocorrido em Gaza em 2014.

E acima de tudo, foi através do aprofundamento nas leituras que pude tirar da frente dos meus olhos o véu da propaganda sionista e islamofóbica que me impedia de ver a realidade. Espero que este seja o caminho de todos que desejam a paz, até porque é absolutamente incoerente defender o legítimo direito de vastas populações subjugadas e oprimidas pelo mundo enquanto negamos este direito aos palestinos. Não haverá solução para os dilemas da palestina sem que a democracia seja vitoriosa, sem que aos palestinos sejam garantidos o retorno para a pátria e a garantia de sua terra. A única alternativa é a “solução final”, a morte, a destruição total, e devemos todos lutar para que essa possibilidade jamais se torne realidade.

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Inacreditável!!!

A BATALHA DOS AFLITOS

Em 26 de novembro 2005 ocorria um dos eventos mais espetaculares da história do futebol mundial. Sem precedentes. Não é exagero: isso nunca mais vai se repetir em lugar nenhum do mundo envolvendo grandes clubes na disputa por um campeonato em nível nacional.

As finais da série B daquele ano envolviam quatro equipes classificadas na fase anterior: Grêmio, Náutico, Portuguesa e Santa Cruz. Um gaúcho, um paulista e dois pernambucanos. Na rodada final e decisiva o Grêmio jogava contra o Náutico em Recife enquanto o Santa Cruz jogava na mesma cidade contra a Portuguesa de Desportos. Estas seriam as duas partidas do quadrangular final da série B daquele ano. Das 9 combinações de resultados possíveis para estas duas partidas 8 favoreciam o Grêmio. Só não podia acontecer uma combinação: a derrota do Grêmio combinada com a vitória do Santa Cruz. E aos 36 minutos do segundo tempo era exatamente isso que estava acontecendo. Vamos então recordar os acontecimentos daquele dia.

O Grêmio tinha um time horrível derivado da hecatombe da falência da ISL – uma empresa Suíça de marketing esportivo. Apesar disso, ali estavam Anderson e o garoto Lucas, mas o resto do time era composto de jogadores medíocres. O técnico era local, sem nome e sem história – Mano Menezes, que depois chegou até a dirigir a Seleção Brasileira. Costumo dizer que se o goleiro Galatto não fizesse o que fez Mano Menezes seria motorista de táxi em alguma cidade do interior do Rio Grande até hoje. Durante o campeonato fez muitas burradas, inclusive deixar Anderson – o melhor jogador do time – no banco. Foi criticado de forma contundente pela imprensa e até hoje eu o considero o técnico de futebol mais sortudo de toda a história do futebol.

Antes mesmo de se iniciar a partida o Náutico fez de tudo para prejudicar o Grêmio. Prenderam jogadores e comissão no vestiário, não permitindo o aquecimento no campo, mas antes se deram ao trabalho de pintar as paredes, deixando os jogadores tontos pelo cheiro forte de tinta. O clima era de uma verdadeira guerra, incendiado pela imprensa local que queria os dois times pernambucanos na categoria de elite do futebol brasileiro; os jogadores de ambos os times eram gladiadores preparados para toda sorte de infortúnio.

O jogo na primeira etapa foi sofrível. Pouquíssimo futebol sendo apitado por um juiz inseguro e tecnicamente ruim. Muitos anos depois foi envolvido em escândalos da polícia militar. Marcou um pênalti absurdo contra o Grêmio no primeiro tempo que não foi convertido. Teve sorte.

Enquanto isso na outra partida em Recife, a Portuguesa saía na frente, o que aliviava o Grêmio. Entretanto, não durou muito para o Santa Cruz empatar e virar o jogo. O alívio durou pouco.

No segundo tempo o jogo continuou horrível em termos de futebol, mas o Grêmio resistia. O jogo do Santa Cruz não parecia mudar em nada; estava definido. O destino do Grêmio seria mesmo nos Aflitos.

Em um contra-ataque do Náutico, o goleiro do Grêmio – Gallato, guarde esse nome – fez pênalti em Kuki mas o juiz não marcou, o que me deu a certeza de que não havia por parte dele interesse em ajustar resultados. Se quisesse favorecer o Náutico esse seria o momento. Os lances que ele marcava eram sob brutal pressão dos jogadores e da torcida. Estava perdido e apavorado.

Quando faltavam 9 minutos para acabar a partida o juiz Djalma Beltrame marcou um pênalti contra o Grêmio de forma absolutamente equivocada. Nessa hora já tínhamos perdido um jogador, Escalona ao 26 min, que foi expulso ao levar o segundo cartão amarelo, mas estávamos resistindo. Nessa nova marcação de penalidade máxima equivocada o jogador Nunes do Grêmio se virou de costas após o chute do adversário e o juiz apontou para a marca da cal de forma imediata. Não foi falta, e as milhares de repetições na TV confirmaram. Indignação total de toda a nação tricolor. Ele provavelmente marcou este pênalti para compensar o fato de não ter marcado o pênalti anterior.

Surgiu-se um brutal o confronto e os jogadores do Grêmio foram sendo expulsos de campo, um após o outro, por indisciplina. Antes da cobrança mais três acabaram indo para rua. Ao todo 4 jogadores saíram: Escalona (antes do entrevero), Nunes, Patrício e Marcel. O juiz ficou cercado, a polícia entrou em campo, dirigentes dos dois clube também. Brigas, empurrões e o Grêmio já estava diante do pior cenário que um clube pode enfrentar: partida final do campeonato, com 6 jogadores apenas na linha, o adversário completo, um pênalti contra si, na casa do oponente, com o estádio lotado e faltando apenas 9 minutos para acabar a partida. As imagens marcantes que antecedem a cobrança são da torcida do Náutico de mãos dadas rezando, em silêncio reverencial.

Do outro lado, no time Timbu, sobreveio uma crise. Ninguém queria bater a penalidade. Os jogadores mais experientes “pipocaram” e serão para sempre cobrados por isso. Era muita responsabilidade: a bola do jogo, aquela que daria acesso à “série A”, o grupo de elite do futebol brasileiro. Acabaram determinando que um jovem lateral, um menino recém saído da base, batesse o pênalti. Ademar seu nome.

Era visível seu pânico ao se posicionar para a cobrança. Um garoto diante da possibilidade de acesso de seu clube à série A. Depois de muitos minutos de brigas, empurrões, discussões, ameaças e tensão o juiz apita. A respiração da torcida do Grêmio é interrompida e o silêncio se faz em todo o Brasil. Ademar caminhou trôpego para a bola, enquadrou o corpo para bater de esquerda. Disparou o chute e…

Galatto!!!! Inacreditável!!!! Seu corpo caiu para a esquerda, mas mantendo o pé no centro conseguiu tirar a bola para escanteio. A maior torcida do Rio Grande gritava de euforia, mas eu permaneci quieto e apreensivo. Tínhamos 7 jogadores em campo contra 11 do adversário. Quatro jogadores do Grêmio já haviam sido expulsos: Escalona, Nunes, Patrício e Domingos. Se já é difícil equilibrar um jogo com um jogador a menos imagine com 4 jogadores faltando! Era possível que o gol do Náutico ocorresse até no escanteio que ocorreria em sequência, com tantos jogadores a mais em campo. Não havia muito para se tranquilizar, e os 9 minutos restantes seriam um século, mesmo que o empate ainda nos garantisse o segundo lugar e o acesso para a série A.

Foi então que o mais improvável aconteceu. Depois do escanteio a bola espirrou para a esquerda e caiu nos pés de Anderson. Ele se livrou do adversário com um drible e na sequência foi atropelado pelo zagueiro Batata, sendo arremessado violentamente para fora de campo. O juiz não teve alternativa a não ser dar o segundo cartão amarelo e expulsar o defensor do Timbu, mas ainda restavam 9 jogadores vermelhos contra 6 gremistas na linha. Todavia, o time do Náutico estava tão perturbado que não sabia o que fazer em campo. A cobrança da falta foi tão rápida que chegou a enganar o cinegrafista. Anderson saiu correndo solitário em direção ao gol adversário, livrou-se do zagueiro com um jogo de corpo, entrou área adentro e desviou do goleiro, colocando a bola no fundo das redes.

Impossível, milagre!!!!! Exatos 71 segundos após a defesa de Galatto o Grêmio marcou um gol espetacular. Sete bravos guerreiros (1 goleiro e mais 6 na linha) contra os erros de um juiz em pânico, uma torcida que lotou o estádio e um time com 9 adversários na linha. A torcida foi à loucura em todos os cantos do mundo!!! A essa hora o jogo do Santa Cruz já havia terminado e os jogadores do time “cobra coral” chegaram a dar a volta olímpica, iludidos de que haviam conquistado o campeonato da série B. Ledo engano!!! O Imortal tricolor jamais se entrega até o apito final.

Depois do gol do Grêmio baixou uma incrível apatia no time pernambucano. Nos 9 minutos que se seguiram não houve sequer uma situação de gol, mesmo com tamanha diferença numérica. Os jogadores do Grêmio se multiplicavam em campo, obstruindo as investidas, e assim o fizeram até quando Beltrame terminou o jogo e o Rio Grande do Sul veio abaixo.

Ali se confirmava a lenda da imortalidade cantada meio século atrás por Lupicínio Rodrigues no hino tricolor.

Saí da casa do meu pai onde assisti o jogo e fomos para a avenida Goethe, próximo de onde era a antiga Baixada, estádio do Grêmio até os anos 50. Uma multidão enlouquecida lá reunida dizia em uníssono “Eu não acredito“, “Não é possível“, “Milagre“. Nenhum título poderia ser mais comemorado, não pela taça em si, mas pelas circunstâncias de bravura, luta, heroísmo e enfrentamento das adversidades.

A Batalha dos Aflitos é o ápice do heroísmo no futebol. Nada parecido isso aconteceu jamais ocorreu no âmbito do futebol profissional. Ela deve ser valorizada por por sua façanha épica sem paralelo no mundo esportivo. E não esqueçam que o futebol não vive de campeonatos que são vencidos com quatro rodadas de antecedência, mas de fatos improváveis, vitórias inesperadas, derrotas humilhantes e retornos triunfantes.

O futebol não vive da qualidade e da excelência, mas da paixão e da superação.

Por esta razão, para chegar a essa epopeia em Recife, foi necessário uma série imensa de erros e incompetências, e isso deve ser lamentado. Inclusive não se deve esquecer dos erros na concepção do time e as mancadas absurdas do técnico. Portanto, não é justo analisar o evento da Batalha dos Aflitos com maniqueísmos; a “batalha” deve ser exaltada pelo heroísmo inédito, pelas circunstâncias e contextos, pela superação e pela magia que a cerca. Todavia, precisa ser lamentada pelos erros, pelas falhas e equívocos que levaram a ela.

De qualquer maneira, esta data ficará na lembrança de todos os gremistas como a maior prova de que é preciso lutar e acreditar até o último instante, porque se a vitória se afigura impossível e distante….. “até a pé nós iremos!!”

Para quem quiser entender mais sobre esse momento épico do futebol mundial veja este clip….

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Racismo e autocrítica

Pense bem antes de chamar alguém de “racista” ou “machista” apenas por discordar de algum aspecto dessas lutas sociais. Muitas pessoas desenvolvem verdadeira aversão a estes importantes movimentos porque desde o primeiro contato foram tratados como inimigos. Movimentos que não fazem autocrítica e não depuram seus exageros acabam virando cultos personalistas, cheios de arrogância e fanatismo. Antes de acusar alguém avalie se não são os seus conceitos que precisam de renovação.

Baakir Abayomi, “The relevance of the counterpart”, Ed. Nihil, pág 135

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Desejos Infinitos

“As necessidades são finitas, os desejos não. Passado o ilusório alívio da compra ele volta com mais força tão logo o impacto da satisfação se desfaz. Isso equaliza o rico e o pobre: os objetos podem até ser diversos, a angústia é a mesma. Por esta razão a cura da angústia pelo dinheiro é um engodo. Ouso dizer, sem medo de errar, que eu e Warren Buffet temos o mesmo mal-estar. Sobressai, nessa compreensão, a sabedoria de Sêneca: “A pobreza não ocorre pela escassez das coisas, mas pela multiplicidade dos desejos”. 

Creio que aqui Sêneca exclui as necessidades básicas como comida, proteção, calor e afeto essencial. Acima dos ditames básicos da vida biológica sobressaem os desejos, emergentes da linguagem, insaciáveis e infinitos. Buscar a cura dessa angústia pela falta é como dar uma dose de vinho a Pantagruel imaginando assim saciar seu desejo e sua sede.”

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A Coisa em Si

A melhor citação de Hegel, segundo a opinião de Zizek, é de que “o mais importante efeito da Guerra do Peloponeso é o fato de Tucídides ter escrito um livro sobre ela”. Essa visão curiosa – que faz a descrição da coisa ser mais relevante do que a coisa em si – poderia ser emprestada a Euclides da Cunha e “Os Sertões”, onde o mais relevante aspecto da rebelião de Antônio Conselheiro seria o livro que a expôs à consciência nacional. Minha filha, com raro sentido de síntese, já afirmava: “Tudo vale se do fato sobra uma bela história a contar”

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A Cafeteria na Esquina do Mundo

A escolha do local do encontro não foi por acaso. Foi naquela exata esquina que há 30 anos havia tomado um café aguado e amargo, mas que cabia no seu bolso de menino. A nostalgia de uma juventude que lhe saía do corpo junto com seus poucos cabelos se misturava com a vertigem das paredes íngremes e cheias de luzes que brotavam do cimento cru da Broadway. Em três décadas a cidade se tornara ainda mais agitada e frenética, com a amálgama de sotaques e feições a traçar sua silhueta. O frio do outono abria frestas no sobretudo de Jerry, deixando passar o hálito gelado da cidade. Com as mãos no bolso e às orelhas escondidas no gorro de lã ele aguardava na esquina espantando o frio que lhe subia pelas pernas. Sua vontade era entrar na cafeteria, mas tinha medo de não perceber a chegada de Annie.

Enquanto espantava o gelo da rua movimentando o corpo de um lado para o outro tentava resgatar da memória os detalhes que lhe restavam de Annie depois de tantos anos. Mais de uma década os separava de sua última conversa, a mais tensa e mais dura de todas. Agora o destino os colocava de novo na mesma cidade, no coração do mundo, talvez a última oportunidade para curar dois corações que se haviam perdido nas rotas tortuosas da vida.

Em sua mente volitavam imagens dispersas de sorrisos e lágrimas, momentos ternos e tristes misturados com aromas, cheiros, lugares e penumbras. Por alguns instantes pensou ser melhor que ela não viesse, que o passado ficasse onde estava, que as feridas antigas fossem esquecidas e que os bons momentos ficassem envoltos em suspiros e sorrisos dissimulados. Todavia, não ousava deixar aquela esquina com medo de perder uma oportunidade que fatalmente não se repetiria.

Um senhor gordo de chapéu e luvas pretas caminha em sua direção com a cabeça baixa desviando o rosto das navalhas de vento a lhe cortar a face e congelar a barba. Quando por fim é ultrapassado pelo seu corpanzil, Jerry escuta uma voz surgida de trás, a qual atingiu um ponto sensível de suas lembranças.

– Jerry?

Voltou seu corpo na direção da voz suave e encontrou o sorriso tímido de Annie, emoldurado por vincos esculpidos pela vida. Sua expressão era uma mistura de alegria, apreensão e surpresa, como quem ainda não sabia se aquele encontro seria suave ou amargo. De resto a vida havia preservado sua beleza ímpar e seu jeito de menina, mesmo já sendo uma mulher madura.

– Annie, Como vai? respondeu, ensaiando um sorriso encabulado.

Pelo menos agora achou que o frio lhe ajudava, pois o gorro azul escondia sua cabeça calva. Sentiu vergonha de ter vergonha, pensou na tolice de sua vaidade e fixou-se nos olhos castanhos de Annie.

– Está frio, não? Podemos entrar?

O calor da cafeteria se chocou contra seu rosto como um sopro quente, devolvendo um pouco da expressão perdida pelo frio e pelo impacto do encontro com Annie. A jovem atendente perguntou sobre qual mesa preferiam e Jerry levantou a mão esquerda mostrando dois dedos e acrescentando “perto da janela”. Com o menu nas mãos a jovem os encaminhou para próximo da vidraça ampla, cujo vidro grosso deixava como tela o ritmo apressado da rua, com seus teatros, caminhantes e táxis amarelos buzinando impacientes.

– Sente-se aqui, de frente para a rua. Já conheço bem essa cidade, Annie, e você recém chegou. Prefiro vê-la pelo brilho dos seus olhos.

Annie sorriu de sua poesia canhestra. Era o jeito de Jerry, ela bem o sabia.

O café fumegante que logo chegou trouxe uma bruma para anuviar os olhares que se cruzavam. Havia uma década de distâncias que precisavam ser esclarecidas e muitas emoções estavam para aflorar daquele encontro.

Helmer Barret, “Walking in the Edge of the Cliff”, cap 3, pag 135

Helmer Barret é o heterônimo de Vladimir Feigenbaum. Nascido no Brooklin de uma família de judeus ortodoxos, passou boa parte da vida trabalhando no açougue da família. Casou-se com Esther Horowitz e teve 7 filhos (entre eles o ator Jack Fiedler da série americana “Josie”). Lançou seu primeiro livro depois dos 40 anos, sobre histórias e anedotas da comunidade judaica. O livro foi muito bem recebido pelos editores, que solicitaram que escrevesse um romance. daí surgiu “Caminhando à beira do abismo”, onde trata dos desamores do personagem Jerry Rosenbaum, um desempregado que acabou entrando para o crime e para o contrabando para juntar dinheiro e impressionar o grande amor de sua vida. Helmer morreu em 2015, com 100 anos, de falência de múltiplos órgãos.

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Imperativos éticos

Vendo a reação das pessoas aos “anjos caídos” dá para ter certeza que o ódio está no ar. Não há perdão, contexto, compreensão e sequer desejo de justiça. O que se sente é a oportunidade de vingança, e usando as mesmas armas que os inimigos sempre usaram. Assim sendo, existe razão ao se pedir moderação nos linchamentos virtuais. A civilidade impõe que a punição não pode jamais suplantar o crime cometido, e a resposta da vítima não pode se igualar à do algoz. Sem esse imperativo ético não é possível distinguir justiça de revanche.

Edwin Rupert McAllister, “Virtual Lynch”, Ed. Barroblanco, pág. 135

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Personagens de si mesmos

Lembrei hoje de um fato entre tantos de posturas preconceituosas e sexistas de professores de medicina. Este fato ocorreu há quase 40 anos durante um curso de verão na enfermaria de Medicina Interna do hospital universitário. O professor por certo já é falecido. Estávamos em um “round” debatendo casos da enfermaria quando o professor anunciou que precisaria se afastar por uma hora para acompanhar as entrevistas de seleção para os novos residentes do serviço.

Continuamos nas prescrições e questionamentos aos residentes (eu estava no 3o ano de medicina) até que o professor voltou da sua tarefa e perguntamos a ele como haviam sido as entrevistas. “Medianas“, respondeu com ar de enfado. “Nenhum candidato se sobressaiu. Todos ganharam notas médias, nada de mais”. Nesse momento ele parou por uns instantes sua fala e resolveu nos dar uma informação extra. “Só um deles recebeu de mim a nota zero”.  

Para os estudantes presentes essa poderia ser uma informação valiosa. Ficamos todos tentando imaginar o que levaria um professor a zerar a nota de um candidato na entrevista para uma vaga de residente em Medicina Interna. Talvez sabendo do erro cometido poderíamos evitá-lo quando nossa vez chegasse. Não me contive e perguntei ao professor a causa da nota baixa, sem me dar conta que a observação havia sido feita com o único propósito de firmar uma posição e expor um princípio.  

Ele desmunhecou“, disse ele, imitando o gesto afeminado com as mãos grossas, arrancando sorrisos acanhados dos estudantes e residentes presentes na sala. Eu não ri, e ele tomou minha seriedade como uma censura.  

“Eu não permitiria que um degenerado fosse residente nesse serviço”, disse ele visivelmente contrariado e me fuzilando com seus olhos azuis. “Tu gostarias que um sujeito como esse atendesse teu pai, tua mãe ou um irmão teu?”  

Não consegui responder, e minha apatia dói até hoje. Eu era um menino de 20 anos enfrentando, com o olhar parado e uma expressão atônita, um professor rico e famoso com idade para ser meu pai. Meu silêncio até hoje me incomoda, tantas vezes revi a cena e ensaiei respostas para o homem à minha frente. Mas naquele dia minha covardia e meu medo me venceram. Não consegui dizer do meu horror de imaginar um jovem médico sendo barrado no seu sonho apenas por sua orientação sexual.  

No ano seguinte um querido amigo homossexual foi selecionado para residência em pediatria naquele mesmo hospital e fiquei imaginando que sua entrada só ocorreu porque, durante a entrevista, teve que encenar, da forma mais cínica possível, um personagem que não despertasse desconfiança nos professores à sua frente.

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