Arquivo do mês: julho 2015

Outras

Meu Deus, que situação….

Eu li ainda esta semana alguém falando sobre isso e por acaso decidi fazer o mesmo. Resolvi abrir a pasta “outras” do inbox do Facebook, que por acaso há meses parou no número “99”…

Que sensação horrível !!!!

Pessoas há alguns meses dizendo: “Dr Ricardo, estou com 38 semanas e estou precisando de uma ajuda URGENTE sua, pois a minha gravidez blá, blá, blá…“. A estas alturas o bebê já nasceu, já está começando a comer papinhas e ensaia as primeiras engatinhadas. A sensação é tenebrosa, terrível, como se eu não tivesse me interessado pelo caso dela, tivesse negligenciado ou simplesmente desprezado. Alguns convites para congressos (na Paraíba!!!) que eu simplesmente fiquei sabendo apenas agora. Pessoas agradecendo pela leitura dos meus textos, estudantes entusiasmadas e compartilhando sua emoção por terem atendido os primeiros partos. Médicos se solidarizando com a nossa luta pela humanização, enfermeiras pedindo conselhos, pacientes querendo informação de Parto Domiciliar. Centenas de falas, conversas, perguntas, todas colocadas para baixo do tapete.

Entre as mensagens a de uma antiga secretária do Pronto Socorro em que eu trabalhei há 35 anos perguntando se era eu mesmo. “Sim, minha flor… sou eu sim”. Outras tantas coisas escritas e aquela sensação de ter faltado no momento em que me pediram ajuda. Que triste, desagradável e frustrante. Uma moça perguntando se eu sou o “Ricardinho” do Infante dom Henrique, escola de segundo grau em que estudei. Pior: ela era a bonitona da classe!!! Areia, areia… escorrendo pelos meus dedos. Deus me deu uma segunda chance e eu desperdicei. Agora é tarde.

Doutoras recém formadas me pedindo conselhos para a residência. Estudantes de medicina apavoradas com o que aprendem na escola médica. Alunas de enfermagem querendo informações de estágio. Agradecimentos pela palestra da semana passada. Meninas perguntando o próximo curso de Doulas. Relatos extensos de casos acontecidos, violências obstétricas de todo o tipo, mas também de partos maravilhosos que, de alguma forma, eu participei através de artigos ou capítulos dos livros que estimularam a uma mudança de postura. Pedidos de socorro para indicações fajutas de cesariana. Fotografias de absorventes manchados, me perguntando se é normal um sangramento no final da gestação. Perguntas sobre diagnósticos inusitados e bizarros.

Um mundo de informações e histórias que eu simplesmente não vi passaram ao meu lado, na janelinha “outras”, mas que se manteve fechada por todo esse tempo. A sensação que eu fico é aquela da infância, quando um irmão meu me dizia: “O Manoel ligou e disse que precisava falar contigo porque o assunto tem que ser resolvido hoje“. Eu abria o olho e perguntava: “Mas que Manoel?“, e a resposta era alguma coisa como: “Manoel, Miguel, Joel, Papai Noel, eu não lembro bem o nome, mas parecia urgente.

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Discutir

Batalha grega 01

Sempre que eu entro em um debate – em especial nas redes sociais – eu me recordo de uma passagem da Odisseia de Homero onde, durante uma batalha que se iniciava, um soldado pergunta ao seu oponente:

“Diga-me antes de lutar se você é humano ou um Deus. Caso seja um Deus, portanto imortal, não perderei meu tempo numa batalha cuja vitória é, por definição, impossível”.

Em muitas discussões nossos argumentos se comportam como “imortais”. De nada importam as evidências e provas que a nós são lançadas. Somos imunes a elas, infensos ao seu poder destrutivo, pois a couraça que nos protege não é construída pelos tijolos frouxos e débeis da razão cambiante e frágil, mas pelo rochedo inexpugnável dos dogmas.

Quando enfrentamos adversários que se comportam dessa maneira, faz-se necessário agir tal qual o bravo soldado heleno e perguntar ao seu oponente:

“Estarias disposto a deixar morrer seus argumentos se a força dos meus lhes for superior? Permitirias que uma nova ordem invadisse teu pensamento à força de um exército de palavras a mudar a tua mente?”

Se a resposta for negativa, afaste-se da luta. Estás diante de um imortal, que permanecerá intocado pelas novas verdades, preso no cimento de seus preconceitos.

Lembre que “discutir” é “sacudir“. Discutir vem do termo latino “discutere“, que deriva de “quatere” (daí a palavra inglesa “quake“, como em “earthquake“) que significa sacudir. Dessa forma, “discutir” significa sacudir alguma coisa com o fim de separá-la. É o mesmo que fazemos quando discutimos: sacudimos as palavras para verificarmos se o argumento é sólido. Quando se discute com outra pessoa presume-se que os argumentos do seu oponente PODEM mudar sua visão de mundo – ou sua opinião sobre aquele assunto específico – desde que sejam coerentes e lógicos. Também é certo que SEUS argumentos poderão modificar a visão seu adversário sobre a questão debatida, desde que sejam igualmente corretos e abrangentes.

Entretanto, se você aprioristicamente se nega a mudar de posição e fecha as portas para uma nova postura então a discussão é absolutamente inútil. Quem se nega a mudar, mesmo com a força dos argumentos, não tem opinião: tem fé, e esta é irracional por definição. Como regra de ouro, “nunca discuta racionalmente com alguém cujos argumentos não forem racionalmente construídos”.

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Evolução das Consciências

Multidao

Eu ainda acho que a atenção adequada, feita por profissionais bem preparados, é o MELHOR CUIDADO possível para uma mulher que dá à luz. Entretanto, é importante perceber o quanto a “industrialização do parto”, e a visão fria e mecânica do evento, podem prejudicá-lo. A pergunta que fica é: por que não podemos ter o melhor de dois mundos? Por que insistimos num modelo tecnocrático e desrespeitoso, autoritário e cruel com as gestantes?

Bem, não existe resposta fácil para esta pergunta, mas também é ingênuo e injusto acreditar que esse é um problema dos médicos. Mesmo que entendamos que eles tem uma importância central no processo (porque detém e concentram poder) também é importante notar que médicos são representantes de um modelo construído por TODOS, numa geleia cultural onde a sociedade como um todo participa, acrescentando práticas que representam seus valores mais profundos.

Médicos também são reféns deste paradigma, vítimas da visão objetualizante que a cultura lança sobre as mulheres e suas gestações. Assim sendo, mais do que procurar culpados, é importante EDUCAR a população para que esta mude a cultura através de uma visão mais positiva sobre a mulher e o feminino. Depois disso, a mudança das práticas médicas ocorrerá por consequência. É exatamente o que estamos vendo agora: a evolução das consciências levando a uma transformação lenta – porém perceptível – nas práticas.

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Amor e Ódio

vendedor

Amor e ódio

Foi num livro de Dale Carnegie que eu entrei em contato pela primeira vez, há mais de 30 anos,  com a questão delicada das expectativas em relação ao trabalho que realizamos.

O texto, de seu célebre livro “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas” escrito em 1936,   mostrava um profissional que oferecia um trabalho muito diferenciado no setor de vendas, com uma qualidade superior, a qual não era oferecida por nenhum dos seus concorrentes. Ao contrário dos seus colegas, fazia avaliações gratuitas depois de entregue o produto, e mais de uma, para cativar a clientela. Entretanto, não se tratava apenas de uma estratégia  para agradar seus fregueses, mas sim de um compromisso ético, algo que fazia para se sentir bem, auxiliando seus clientes com as orientações que ele julgava necessárias. Ele acreditava que a venda de um produto não se esgotava na entrega e no pagamento de uma mercadoria, mas precisava estar conectada com a utilidade, com a fraternidade e com a ideia de ajuda mútua.

Esse vendedor combinava visitar seus clientes depois de um determinado tempo, para ver se estavam se adaptando adequadamente com a nova peça. Fazia isso porque tinha prazer em ver a alegria dos compradores e para constatar o fato de que, mesmo que de forma humilde, havia sido útil para a realização de um sucesso. Entre seus colegas de venda, ninguém seguia seus passos. Acreditavam ser ele um tolo, que perdia seu tempo quando deveria estar planejando e executando novas vendas. Ele, apesar disso, continuava tendo fé na relação que estabelecia com seus clientes, que assim viravam amigos e parceiros. Hoje em dia isso tem um nome: “pós-venda“, mas na época de Dale, primeira metade do século passado, esse mentalidade ainda engatinhava.

Um dia, após fazer uma transação muito difícil, que incluiu inúmeras ligações para a indústria, fornecedores, empresas de transporte marítimo e rodoviário, alfândega e receita ele conseguiu fechar uma venda de uma máquina que resolveria os problemas graves de uma pequena fábrica. Os compradores ficaram agradecidos e ele combinou uma visita para a próxima semana. Entretanto, por problemas pessoais, não pôde comparecer à visita de cortesia que sempre realizava, e fez uma ligação pedindo que o dono da empresa fosse avisado.

No dia seguinte recebeu um telegrama duro, quase ofensivo, dizendo que a visita esperada não se concretizou e por isso estavam profundamente decepcionados com a venda. A mensagem terminava com um adeus severo, deixando claro que não mais fariam negócios com a empresa deste vendedor.

A questão que martirizava o nosso vendedor era: por que a conexão tão fácil e rápida entre amor e ódio? Por que o seu trabalho exemplar não foi reconhecido, e uma “falha” (era uma questão de saúde) humana cometida não foi perdoada? O que acabou faltando na sua venda foi exatamente aquilo que ninguém mais oferecia, apenas ele.  Por qual razão algo que era oferecido graciosamente foi considerado essencial para o julgamento do seu trabalho?

A única explicação que posso oferecer é de que o vendedor feriu algo de muito sensível para seus clientes: a expectativa.

Os compradores esperavam pouco dos outros vendedores. Sabiam o que poderiam receber. Tinham uma expectativa baixa em relação ao tipo de serviço oferecido. Nosso herói, entretanto, tinha a fama de oferecer um “plus”, algo diferenciado. Quando isso não veio, sentiram-se roubados de algo que, mesmo não sendo uma vantagem prometida ou compactuada, era conhecida por eles.

Quando se frustrou a expectativa, sobreveio o ressentimento.

Lembrei disso quando, há alguns meses, uma paciente – cujo parto natural foi uma grande vitória para todos nós em função dos inúmeros incidentes que o cercaram – queixou-se de maneira explícita e dura de pequenos detalhes que circundaram o nascimento do seu filho. Sentiu-se desconsiderada e magoada; ferida e ressentida. Ao invés de reconhecer o extremo esforço e dedicação oferecidos para garantir um parto empoderador ela preferiu fixar-se num detalhe absolutamente desimportante sob todos os aspectos.

Mas qual a razão disso?

Bem, não me cabe julgar suas razões por estar frustrada. “Cada um sabe a dor que carrega, a tristeza que sente e a mágoa que o corrói“, já me dizia um ébrio, mas perspicaz, Max. Deve haver razões suas, inexpugnáveis para mim, que justifiquem esse dissabor. Entretanto, muito do que ela me falou diz respeito à falha que tivemos em relação a tornar suas expectativas mais realistas. Não fôssemos tão dedicados à sua assistência e talvez os detalhes não ficassem tão evidentes. Tivéssemos agido como todos e nada disso apareceria. A fantasia de parto que ela sonhou não recebeu um contraponto de realidade de nossa parte: ela continuou acreditando que seu parto seria absolutamente isento de qualquer falha humana.

Quem trabalha com esse tipo de evento, como o nascimento humanizado, precisa estar atento a estes desafios. É importante educar os pacientes para que tenham metas factíveis, e que não esperem milagres dos profissionais. Cuidar de alguém também é preservar suas emoções, agindo profilaticamente em relação aos seus sentimentos.

Manter níveis de expectativas adequados e realistas  para as gestantes e seus companheiros é um dos mais importantes itens do pré-natal.

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Madre Teresa

Mother-Teresa

Há alguns minutos Madre Teresa de Calcutá apareceu na minha frente para conversar comigo. Era um pedido que há muito tempo eu fazia: “uma aparição, uma visão”, para que eu pudesse comunicar a ela meus dissabores. Pois eu fui finalmente agraciado com a materialização que ocorreu aqui, na minha frente.

Anjezë Gonxhe Bojaxhiu, a beata de Calcutá, vestia seu hábito de freira e tinha o corpo encarquilhado que costumamos reconhecer. Sua face enrugada e sua compleição pequena a tornavam inconfundível. Não podia ser um engano, e disso eu estava certo. Se você acha que isso não é verdade, pode parar de ler por aqui mesmo.

Quando a vi resolvi que era o momento de dizer a ela algumas verdades que estavam entaladas em a minha garganta e que eu pretendia dizer há muito tempo, mas nunca tinha tido a oportunidade. Esta chance chegou, finalmente, agora…

– Sra. Teresa, muito me impressiona o fato de ser tão reverenciada pelas suas ações “ditas humanizadas”. Não que sejam vazias ou inúteis, pois posso reconhecer virtude em tais atitudes. Entretanto acredito que elas, na verdade, escondem preconceito e desconsideração. Sim, se puder me escutar falarei o que tenho guardado em meu coração, mesmo que isso possa lhe ferir.

A velhinha apenas levantou a sobrancelha esquerda e continuou a me fitar de longe.

– Continuando, a senhora ajudou centenas de crianças na Índia, o que a fez merecedora do Prêmio Nobel, o que é algo que reconheço ter valor. Porém eu lhe pergunto: porque este elitismo? O que a senhora fez pelas crianças negras da Nigéria? E as crianças vítimas de Napalm no Vietnã? Qual foi sua ação para interromper a guerra que lá ocorria? Qual sua atitude para acabar com o Apartheid? Por que a senhora dedicou-se a uma determinada etnia e desprezou as outras? Por acaso as crianças indianas são melhores do que as demais? Mais limpas, mais dóceis? Ou existem questões financeiras envolvidas? Veja, não estou lhe acusando de nada, mas eu percebo um mercantilismo em suas ações, uma falta de verdadeira fraternidade, e um desejo de ajudar apenas as pessoas que a idolatram. Isso não é exatamente cristão, não lhe parece?

Madre Teresa continuava olhando para mim fixamente e não moveu um músculo sequer além do leve golpe de sobrancelha anteriormente citado. Seu rosto era calmo e sereno, como a tentar entender as razões da minha inconformidade.

Continuei.

– Tudo o que vejo na sua obra é para aqueles que a senhora considera os escolhidos. Pão, afagos, roupas quentes e abrigo. Mas e os que moram longe? E os que estão em outros países? Como a senhora aceita que apenas alguns sejam beneficiários de seu amor e compaixão, enquanto tantos outros sucumbem à dor e à miséria? Como pode manter essa face inexpressiva diante de tanta desconsideração com o que deixou de fazer por tanta gente?

Mantive meu olhar censurador e firme, não me deixando fraquejar pela doçura e calma de sua expressão.

– Olhe bem…. não sou dessa área. A caridade não é uma coisa que me mobiliza ou comove. Prefiro trabalhar aqui, atendendo partos e ajudando algumas poucas gestantes. Mas a senhora poderia ter feito muito mais, mas preferiu ser a “Madre de Calcutá” quando o mundo inteiro estava sequioso de ajuda, de afeto, de uma mão amiga, pessoas estas que a senhora se negou a ajudar por querer se manter apenas nesta cidade. De nada adianta me dizer os lugares que a senhora visitou e nos quais abriu filiais de sua Congregação “Missionárias da Caridade”, pois muito maior será a quantidade de cidades e vilarejos que a senhora NÃO visitou, deixando tais pessoas à própria sorte, à mercê da vilania do mundo.

Meu final foi apoteótico:

– Muito triste ver o que a senhora fez com os seus ideais…

A humilde senhora finalmente se levantou. Deus dois passos tímidos em minha direção. Colocou as mãos sobre o colo e de forma suave e lenta… sorriu. Pegou em minhas mãos e juntou-as com as suas. Olhou firmemente em meus olhos e disse uma única frase:

Faça diferença para aqueles que te procuram, ofereça o afago para todos ao teu redor e o perdão para quem não te entender, e para o resto procure exercitar a paciência“.

Largou minhas mãos, sorriu e caminhou em direção à porta.

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Elitismo e Meritocracia

Sobre um texto que li hoje criticando a “meritocracia” e o “elitismo” do movimento de humanização do nascimento.

Aliás, já vi esse texto – escrito por outra pessoa e com palavras semelhantes – há há muitos anos na Internet e de forma repetida. Provavelmente a autora nem se apercebeu de como seu discurso está defasado no tempo. Esse debate sobre “elitismo” no movimento de humanização do nascimento tem mais de uma década e meia, e surgiu ainda nos encontros virtuais nas listas de discussão das “amigas do parto”.

Por acaso este texto surgiu na mesma semana que li outro artigo sobre as pessoas que reclamam de quem faz, mas, em contrapartida, não fazem nada. A autora mesmo diz não ser militante do parto humanizado, que não é algo que a envolva de corpo e alma, e isso para mim significa: “não me envolvo nessa temática, nunca fui à rua lutar por partos dignos, nunca dei minha cara à tapa, nunca fui xingada por ser a favor do parto normal, nunca fui perseguida pelas minhas ideias sobre nascimento, não compreendo muitos dos termos, nunca lutei por esta bandeira, mas quero criticar bastante quem o faz”.

Todo o texto dela é embasado em UMA grande crítica: as coisas que o movimento de humanização ainda não fez. As críticas vem pelo vazio gigantesco do “ainda não feito”. Tentem imaginar descrever QUALQUER movimento ou pessoa baseado no que ele NÃO fez, e desreconhecendo tudo o que protagonizou em sua vida ou percurso.

“Descartes era genial, porém feio; Pelé era um bom futebolista, mas como goleiro era medíocre; Jesus brigou no templo e se enfureceu, e isso é pecado; Darwin revolucionou o mundo como o conhecemos, mas era deprimido; Marx era um pensador revolucionário, mas um péssimo pai de família; Freud transformou o mundo ao abrir as portas do inconsciente, mas era fixado em sexualidade; Galileu Galilei enfrentou seus algozes com bravura, mas mentiu… apenas sussurrou i pur si muove…”

Reclamar de fora, sem enfrentar, apontando dedos, chamando de elitistas os poucos profissionais médicos, de enfermagem, obstetrizes e doulas que tiveram a coragem de sacrificar a própria segurança pessoal em nome de uma ideia é um ato grosseiro e insensato. Chamar de “elitistas” pessoas que vivem honestamente do seu trabalho é agressivo e injusto. Chamar de “meritocrático” apenas por mostrar às mulheres que SIM, a tarefa de mudar o sistema depende DELAS (não confundir com a ideia de que a CULPA é delas) é tentar fazer “fogo amigo” com palavras de ordem e agressões sem sentido. Dizer que nada é feito pelas mulheres negras e pobres do SUS é cegar-se às iniciativas pelo parto humanizado no ISEA e Sofia Feldman, entre outros.

O artigo é tudo, menos brilhante e atual. Como eu disse, essa queixa de caráter vitimista (uma tentação quase insuportável no meio em que a autora circula) tentando colocar a responsabilidade em alguém é retrógrado e inútil. “Ei vocês aí… façam alguma coisa pelas mulheres negras, chinesas, iranianas e nigerianas. Vocês só trabalham para quem pode pagar. Trabalhem de graça, sejam sacerdotes. Enquanto isso, eu continuarei ganhando meu dinheiro e cobrando bem por cada hora que dispensar no meu trabalho. Mas VOCÊS tem obrigações conosco, e estamos de olho”.

A responsabilidade para mudar o sistema é das MULHERES, com a ajuda de todos nós. Muito fui achincalhado quando tentava ajudar o movimento de mulheres, a ponto de precisar me afastar para sempre de qualquer ação nesse sentido, mas a queixa era sempre essa: “não se meta, não tente protagonizar uma luta que é nossa”. Pois bem, lição aprendida. A luta é MESMO das mulheres, é responsabilidade delas, a mudança partirá delas e o esforço deverá ser de quem leva o parto no próprio corpo. Nós, ativistas, podemos apenas apoiar e debater, sem retirar o protagonismo de quem é de direito.

Todos nós concordamos que é necessária uma expansão do discurso e da prática. O que deixa desanimado é que o tom é sempre agressivo, ressentido e acusatório. É o mesmo tipo de agressão contra figuras como o Jean Wyllys, agredindo-o por tudo que ele NÃO fez pelos homossexuais ou negros, ao invés de ajudá-lo a expandir sua ação e oferecendo ajuda para esta tarefa. As acusações são, via de regra, levianas e acusam os profissionais de serem interesseiros, movidos por dinheiro, como se houvesse culpa na qualidade de destes colegas, e que eles deveriam trabalhar graciosamente. Normalmente quem faz este tipo de acusação NUNCA se dedicou às causas que critica. Mas, vamos deixar claro que nada disso é novidade. Como eu mesmo salientei este é um dos famosos assuntos “iô-iô”, que vez por outra voltam a bater na mesma tecla das falhas do movimento de humanização, principalmente por causa dos médicos privados e suas cobranças.

O texto ao qual me referi atinge inclusive as doulas, responsáveis diretas pela mudança lenta e gradual da ESTÉTICA do parto, ao acrescentarem doçura, suavidade e afeto nos ambientes de parto. Pois até elas são tratadas como “dinheiristas“, e com o mesmo padrão de crítica: “Ah, mas só pra quem pode pagar, né?“, como se fosse responsabilidade das pobres doulas a mudança da mentalidade das maternidades públicas. Ora, se nós achamos que as doulas são importantes para as mulheres “negras e pobres” do Brasil, é preciso pressionar e exigir do vereador, deputado, dono de hospital ou gerente de maternidade, para que se crie um sistema que incorpore o trabalho das doulas ao SUS. Falar mal do atendimento que as doulas ainda não fazem é, como eu disse acima, injusto e cruel.

A transformação profunda na assistência às mulheres negras e pobres no parto, entre outras mazelas que ainda precisamos eliminar, virá quando pararmos de agredir os poucos profissionais que levam este debate adiante – e que pensam em transformações sensíveis na maternidade – e partirmos para uma ação POLÍTICA organizada e em bloco. A maioria dos ativistas médicos que conheço está fora do sistema público de saúde, e faz seu trabalho na abrangência de suas possibilidades. Não há como pedir para médicos que atendem no consultório que mudem o SUS, já que não podem agir nesse campo. Para isso é preciso que as mulheres, com a ajuda dos movimentos sociais, EXIJAM mudanças no Sistema Único de Saúde. Entretanto, parar de culpar os profissionais (e os movimentos) pelo que AINDA não fizeram é um bom começo de trabalho.

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O Retorno do Soldado

O Retorno do Soldado

(Roteiro adaptado sobre uma ideia original de Isabel Jones)

Depois de passar 12 anos foragido Ricachensky (Rick) Yonewsky voltou a ser visto em público. A sua trágica desaparição há mais de uma década destroçara sua família, destruíra seus afetos e criou uma dúvida entre todos os que de alguma forma privaram de sua intimidade.

O que, afinal, aconteceu com Rick Yonewsky?

As marcas no rosto denunciavam a dor e a penúria que sofreu. Do pouco que disse soube-se que vagou entre os campos de concentração na Armênia e o exílio no Turcomenistão. Quando, por fim, terminaram seus dias de angústia e pôde voltar para casa, só desejava o afago da família e o abraço dos filhos que, sem surpresa, sequer o reconheceram. Mas por que foi e, mais importante ainda, porque voltou? Que mistério rondava a “fuga” do soldado Rick?

Eu não lembrava mais da sua cara, papai“, disse Bebeluska, que mal sabia seu nome, já que há doze anos fora dado como morto ou foragido. “Porque voltou depois de tanto tempo?“, perguntou ela.

O velho soldado nem sabia o que dizer. “Voltei porque amo meu país, porque quero provar minha inocência, porque quero resgatar minha honra. E também porque acabou meu dinheiro”, disse ele derramando uma lágrima que driblava os sulcos profundos de sua máscara de sofrimento.

Sua mulher, Olga Zeziskaya, era duplamente viúva. De si mesmo, dado como desaparecido ou desertor, e de Vladimir Cocorutchka, vendedor de puxadores de persiana com quem havia se casado legalmente após Rick ser dado como oficialmente morto.

Infelizmente para ela Vladimir havia caído da janela em que instalava um puxador de persianas. Ao falsear o pé na borda ainda teve tempo de gritar “Perdoe-me Rick. Fiz tudo por amor”. As últimas palavras de “Vlad” denunciavam sua participação no “desaparecimento” de Rick, e talvez o regresso do soldado pudesse por fim esclarecer o mistério de 12 anos.

“Tenho muito a falar, e depois que o fizer não sobrará pedra sobre pedra. Aqueles que fizeram de minha vida um inferno pagarão por cada minuto de exílio e humilhação. E que Deus tenha piedade de suas almas, pois eu jamais perdoarei aqueles que tanto mal me causaram.”

Bebeluska chorava ao ver o pai tão velho e tão amargurado. Em sua cabecinha de menina era incapaz de imaginar as atrocidades pelas quais seu velho pai passou. Ela era toda espanto e surpresa, tanta que nem alegria pela volta do pai cabia em seu coração.

“Tudo isso ficará para amanhã. Quero todos aqui ao meu lado para que eu possa contar-lhes toda a verdade, a longa história suja que cerca meu desaparecimento. Aguardem.”, disse o velho combatente de olhar duro e face dolorida.

“Hoje apenas me permitam ir ao futebol, me afastar do mundo, desviar o olhar e a memória de tantos horrores e, por fim, olhar o preto, azul e branco vencer. Hoje só quero repousar a mente e, por alguns minutos, esquecer o que fiz, e o que fizeram de mim”.

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Espetacularização da Justiça

Justiça

Sobre a espetacularização da justiça e a ação do juiz Moro na “Lava Jato”… (mas também poderia ser uma crítica aos médicos cesaristas e tecnocráticos fanatizados que julgam médicos que apoiam o parto normal)

“E o direito à defesa, corolário e condição fundamental do devido processo legal, é cada vez mais cerceado. (…) Com isso, tenta-se convencer as pessoas de que o processo penal é um estorvo, pois o que importa é prender e condenar antes mesmo de julgar. É o que o processualista italiano Franco Cordero denomina de quadro mental paranoico do juiz, que, ao conduzir o processo, o faz sob o “primado da hipótese sobre os fatos” e passa a agir como voraz acusador.” (Wadih Damous)

Esse é um recurso muito utilizado para atacar médicos que apoiam o parto normal. As provas, a realidade, as evidências e os testemunhos caem por terra diante de um desejo quase explícito de agredir uma ideia, uma tese e uma proposta. “Se a mensagem lhe parece inconveniente, atire no mensageiro”. Juízes se transformam em acusadores violentos, embriagados pelo “primado da hipótese sobre os fatos”, fazendo uma justiça baseada em sua própria visão de mundo, embasada em preconceitos e equívocos.

O mesmo sucedeu no caso da Escola de Base, apesar dos propósitos parecerem nobres. Para atacar o abuso e a pedofilia atropelou-se o bom senso, as provas, evidências e o juízo mais apurado. As vítimas, assim expostas, foram massacradas pela opinião pública, sem possibilidade de recuperação. Depois da tragédia descobriu-se que nada do afirmado era verdade, mas aí já era tarde demais: a honra, patrimônio maior do sujeito de bem, já havia sido destruída para sempre.

Podemos entender as razões para as atitudes de juízes vaidosos e prepotentes, que atropelam a lei e a constituição, mas podemos entender o estuprador, o ladrão de colarinho branco e o pivete que rouba galinhas. Isso não significa que essas ações sejam justificadas. Passar por cima da lei pode evitar uma injustiça, mas como ação é um crime contra a cidadania. Sem regras rígidas voltamos para a selva.

Os que apoiam a espetacularização da justiça deveriam se preocupar com as últimas consequências deste tipo de modelo para a sociedade como um todo. Os linchamentos – onde a destruição do “mal” está acima do direito à defesa e as garantias constitucionais – mostra sua face mais covarde e cruel. Um verdadeiro democrata e amante da verdade jamais se solidariza com um massacre, seja ele midiático ou real. Combater os abusos de poder é complexo, mas indispensável para a civilidade”.

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Isabela

Megafone

Hoje à tarde entrei no shopping para tomar meu último cafezinho antes de visitar pacientes no hospital quando, vindo em minha direção, caminham duas moças jovens e bonitas aparentemente tendo uma discussão. Uma delas interrompe o passo antes de chegar na escada rolante, coloca as mãos ao lado da boca imitando um megafone e grita com voz transparecendo fúria:

É isso aí galera. Prestem atenção!! Eu comi a Isabela!!

A amiga que a acompanhava puxa suas mãos e reiniciam a discussão.

Pensei em gritar “Eu também!!” mas pelo jeito que estavam furiosas elas jamais entenderiam a piada…

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Merecimentos

Imitar-os-bons-exemplos-é-preciso

Temos os profissionais de saúde que merecemos.
Temos o aleitamento materno que queremos.
Temos o parto que desejamos.
Temos os médicos e as enfermeiras que escolhemos.
Temos o parto e a amamentação que nos cabem, neste latifúndio chamado Terra…

Acabo de colocar a cabeça para fora de casa. A brisa sacode meu supercílio esquerdo e enche minhas narinas de ar fresco e tímidos raios de sol. Olho para os lados para procurar a diferença. Uma mulher passa à minha frente, na calçada sombreada da rua onde de moro. Traz uma criança grudada em sua mão direita, e tem uma bolsa de couro pendurada no braço esquerdo. Olho para ela e pergunto-lhe silenciosamente se o parto de seu filho e a amamentação foram, mesmo que por alguns breves momentos, preocupações em sua vida. O silêncio dela deve ser verdadeiro, mesmo que a pergunta tenha sido apenas imaginada.

Não vejo cartazes na rua, muito menos manifestantes. Não consigo divisar no horizonte próximo das casas de minha rua qualquer indício de que o roubo do nascimento e o desmerecimento da amamentação tenham provocado qualquer tipo de insatisfação entre as pessoas. Ninguém parece reclamar. Não escuto um grito sequer de indignação com a espoliação de momentos tão significativos da constituição da essência humana. Estamos a um passo das chocadeiras, do nascimento virtual e do total desvirtuamento daquilo que em nós chamávamos de “humano”. Aqui aparece a face pós-moderna mais dolorosa da medicina: perdemos totalmente o contato com a realidade do nascimento. Perdemos seu odor, seu clima, sua temperatura e gosto. Hoje os médicos só conhecem a sua representação, seu simulacro, sua imagem refletida na parede da tecnocracia. Continuando o raciocínio do articulista Dino Felluga, acrescento que “fizemos um roteiro tão assemelhado com a verdade que este se justapôs àquela. Hoje em dia a realidade é que se desfaz por entre as linhas riscadas do mapa. As fórmulas e as cesarianas mantêm-se de pé enquanto assistimos ao desaparecimento de suas versões originais“.

Mentimos o parto e a amamentação, falseando a natureza.

Somente quando a sociedade perceber o quanto perdeu com a aventura tecnocrática é que poderemos mudar o paradigma dominante e exigir que os profissionais ligados ao parto e à amamentação sigam as diretrizes mais naturais e menos intervencionistas. Enquanto isso não ocorrer continuaremos a formar profissionais que atuem de acordo com os nossos mitos e nossas crenças.

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