Arquivo do mês: julho 2022

Comércio dos corpos

Algumas mulheres (por certo que uma minoria) não tem ideia do quanto estas generalizações ao estilo “os homens só querem nosso corpo” são infantis, mas não só isso; elas criam barreiras desnecessárias para o enfrentamento das causas básicas dos sofrimentos evitáveis, como a real exploração dos corpos pelo capitalismo. A moda agora é dizer que “homem tem mesmo que pagar o jantar”, pois o objetivo deles é ter acesso ao corpo das mulheres sem nenhuma contrapartida. Que paguem!!! Ou seja: vamos escancarar que é comércio mesmo.

Primeiro de tudo: qual o erro ou a imoralidade em desejar estes corpos – oferecendo-se em contraponto? Por que diabos tais movimentos identitários ressuscitaram vozes puritanas fortuitamente soterradas pelo tempo? A quem serve este tipo de posição belicosa que acredita que os movimentos de aproximação dos homens são sempre mal intencionados e o das mulheres eternamente dóceis e puros?

Ao apostar nesse sexismo, criando a fantasia de que os homens são eternos e irrecuperáveis aproveitadores e opressores, enquanto as mulheres são essencialmente dadivosas, nobres e oprimidas, criamos generalizações injustas que desembocam em uma falsa dicotomia moral dos gêneros, que só gera sentimentos negativos. Tanta energia seria muito mais bem utilizada no combate ao capitalismo, que explora a todos sem preconceito de raça, credo ou gênero. Se há algo positivo no capitalismo é de que ele destrói em nome do capital e seu acúmulo, não se importando a cor ou a crenças de suas vítimas.

Combater sexismo com mais sexismo é a mais abissal das tolices. E sim, é fácil me cancelar, difícil é cancelar esta realidade.

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The Jetsons

Seja bem-vindo, George Jetson!

George J. Jetson (nascido em 31 de julho de 2022) é um personagem fictício e pai da família Jetson, com 40 anos de idade e que vive no ano de 2062. Ele é o marido de Jane Jetson e pai de dois filhos: a filha adolescente Judy e o filho em idade escolar Elroy. Além disso a família possui uma empregada doméstica robô chamada Rose e um cão que se chama Astro.”

George Jetson tinha 40 anos e já era pai de uma filha adolescente. Aqui está uma coisa que os criadores da série não imaginavam: a queda na idade de início da paternidade. Nos dias de hoje um sujeito como ele teria uma criança de colo nos braços. Quantas pessoas de classe média vocês conhecem que tiveram filhos na terceira década de vida, dos 20 aos 30 anos – além de mim? Quais as repercussões que as sociedades experimentaram a partir dessa mudança radical na época de iniciar a vida reprodutiva, alargando em mais de uma década a adolescência?

Uma delas é evidente: a diminuição da relevância dos avós na cultura contemporânea, que deixaram de ser figuras presentes na vida e na educação dos netos para passarem a ser fotos nos álbuns de família e histórias contadas pelos filhos aos netos. As pessoas nos dias de hoje entram na “avozidade” depois dos 70 anos, na oitava década de vida. Com uma expectativa de vida que gira em torno dos 80 anos no ocidente criamos uma civilização cujos avós não conseguem acompanhar a adolescência dos netos, o que é uma perda brutal para ambos.

Sim, é verdade, eu não tenho nenhuma resposta a este dilema e também sequer sou capaz de oferecer uma proposta, mas acho necessário perceber o quanto nossa vida humana se afasta paulatinamente das regras do paleolítico superior, criando uma desajuste entre o que somos e a estrutura psíquica e física para a qual fomos criados.

De qualquer maneira, salve George!! Um dos primeiros heróis da TV (junto com Fred Flintstone, seu antípoda do tempo das cavernas) que mostrava uma típica família americana com a conformação clássica das séries que estariam por vir (Simpsons, Family Guy, Jeannie é um Gênio, A Feiticeira, A Familia Adams, A Família Dinossauro, etc.) onde os homens são atrapalhados, confusos, feios e tolos, e as mulheres são sempre bonitas, sensatas, espertas e ponderadas.

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Pagar a conta

Oi amor, vamos rachar essa conta?

O galãzinho da Globo disse em uma entrevista para a TV que não acha justa a obrigação de pagar as contas em um encontro com uma garota. Falou também que não se importa de pagar a conta do restaurante para amigos e namoradas, mas que se sente desconfortável com essa expectativa, como se esse ônus fosse obrigatório, e esta atitude seria “o que se espera de um homem”. Obviamente identitáries reclamaram do comentário.

Estranhamente eu vi este mesmo tipo de reclamação vindo exatamente das mulheres durante décadas, e sempre achei uma justa reivindicação. Muitas me diziam que não se importavam de cozinhar e/ou lavar a louça para o marido ou a família, mas se diziam indignadas com a naturalização que se criava sobre essa função, como se esse fosse o papel a ser desempenhado pelas mulheres. Como se ao ver uma pilha de louça suja na pia fosse natural e lógico que a obrigação de limpá-la recaísse sempre sobre elas.

Ora…. serei mais uma vez o “chato da equidade”. Se é possível reclamar de velhas construções sociais incidindo sobre as mulheres, porque seria injusto ou errado que os homens também questionassem seu papel de “pagadores compulsórios”?

Eu tenho a mesma posição em relação às pessoas ou instituições que sempre quiseram me pagar coisas. Nestes momentos eu lembrava das palavras do meu irmão, que sempre dizia: “Tudo que é de graça é muito caro”. Por isso a minha eterna posição rabugenta em relação às indústrias farmacêuticas e seus “presentinhos”. Eu sabia que jamais me dariam uma caneta, um jantar, uma viagem ou o ingresso em um congresso apenas pelos meus belos olhos; ele queriam a minha assinatura nas receitas pois sabiam que eu era a ligação fundamental entre o chão da fábrica de drogas e a boca do paciente. Seus agradinhos serviam para me seduzir a prescrever suas bugigangas, e para isso não titubeavam em me comprar com espelhinhos e miçangas.

Com o tempo eu fui abandonado por todas as empresas de medicamentos, a ponto de nunca mais receber nenhuma em meu consultório – o que me deixou muito orgulhoso.

“Ah, mas você vê maldade em tudo”. Não!!! Vejo a realidade da relação capitalista e me permito enxergar por detrás do meramente manifesto aos sentidos mais grosseiros. Muitas mulheres sacam rápido quando os homens pretendem exercer um poder sobre elas através do pagamento das contas, mas poucas se apercebem como será difícil contornar a situação depois de terem recebido a sua parte. “Ou dá ou desce”, sempre foi o mantra de quem tinha o volante nas mãos. Por trás destas dádivas (dos homens, das mulheres, das empresas, etc.) existe a expectativa de uma contrapartida, e quem se nega a enxergar isso é tolo ou perverso.

Só há uma forma de se proteger: não aceitar nada “de graça” se você desconfia que existe uma clara intenção de receber um “benefício” posterior, caso contrário a sua dívida ficará ativa. Mas, pra não dizer que não falei de flores, muitas vezes existem razões bem óbvias para deixar alguém lhe pagar, como por exemplo uma amiga que sabe que você está mal de grana, ou o namorado que acha que “é a sua vez de pagar”. Não é necessário criar um modelo de absoluta paranoia. No meu caso, quando as pessoas dizem “Deixa que eu pago, você é nosso convidado” eu aceito, porque sei que farei o mesmo quando for a minha vez de convidar.

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Poeira

Sei o quanto é desanimador e triste pensar isso, mas basta que o último verme consuma a derradeira fibra de nossas tripas e nada mais restará de nós nesse plano. Nosso carbono dividido entre as saprófitas será eventualmente parte da poeira das estrelas que migrará para outras galáxias e mundos. Deixamos para trás apenas um punhado de afetos, memórias e ideias que com o tempo igualmente irão se dissipar, vagando soltos pelo cosmos como os ventos dos sóis infinitos.

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As Fases da Lua

Certa feita estava em um evento social (isso soa quase como uma piada para um ermitão como eu) quando escutei uma voz conhecida me chamando alguns metros atrás de mim. Eu de imediato reconheci o timbre da voz, mas logo percebi que se tratava de alguém de um passado muito distante:

– Então Ric, as fases da lua realmente influenciam no parto?

Olhei para o lado e encontrei um colega de residência. Por alguns segundo fiquei tentando imaginar a razão de me fazer esta pergunta após algumas décadas sem nos vermos. Por que me perguntar da lua? Durante algumas frações de segundos eu busquei nos arquivos empoeirados da minha memória até conectar os pontos. A explicação para esta bizarra conexão me oportunizou refletir sobre padrões que utilizamos para valorar circunstâncias e personagens.

Durante a residência por diversas vezes eu fui confrontado com algumas informações a respeito do “gatilho do parto”, ou seja, quais os elementos internos e externos envolvidos na início do trabalho de parto. Hoje sabemos que o processo está relacionado à maturidade fetal, que é quem inicia este processo. Todavia, há mais de 3 décadas atrás, muito se discutia sobre fatores ambientais e circunstanciais – inclusive por aqueles que trabalhavam em maternidades – e era comum escutar que as fases da lua tinham um papel no desencadeamento de eventos que culminariam no nascimento de um bebê. Alguns colegas de outras especialidades me falavam que a lua, por sua gravidade, era capaz de mover extensas massas de água, no fenômeno conhecido como “marés”. Ora, se o ser humano é composto de 70% de água é natural imaginar que esta mesma água seria, de alguma forma, modulada pela força atrativa da lua. Lógico, não?

Essa pode ser até uma boa ideia, ou apenas mais uma fantasia colocada no catálogo interminável de crenças aplicadas sobre o evento do nascimento humano. Quando as pessoas me diziam sobre a experiência que tiveram com o plantão lotado em um dia de lua cheia eu perguntava se elas lembravam da luz cheia anterior, se também havia sido movimentado. A resposta era negativa, e eu argumentava que deveria se tratar apenas de “viés de confirmação” – a tendência de recordar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais – e não de uma correlação verdadeira entre eventos. Eu, particularmente, não acreditava nessa coincidência, mas também sabia que só poderia haver uma forma de comprovar seu acerto ou erro.

Sim, a aplicação de um método.

Desta forma resolvi analisar todos os partos do hospital escola ocorridos no ano anterior. Capturei as folhas da enfermagem do centro obstétrico e comecei a analisar os dados. O que primeiro me chamou a atenção foi o número enorme de internações fora do trabalho de parto, por indicações médicas variadas, além do uso de oxitocina, que poderia fazer um parto ocorrer antes do que estava programado para acontecer. Enquanto eu me ocupava com a elaboração de uma hipótese houve um encontro de residentes no hospital, e na oportunidade fui convidado a mostrar minha proposta de pesquisa. Afinal, muitos colegas ficaram vivamente entusiasmados em saber se, afinal, é verdade ou não esta suposta influência da lua sobre os nascimentos.

No dia da minha fala mostrei apenas alguns dados preliminares e expliquei que seria necessária uma depuração para que fosse possível ver a ação natural da lua sobre os eventos do parto. Porém, foi durante a breve apresentação que me dei conta da inutilidade da minha pesquisa solitária. Já naquela época eu estava me divorciando definitivamente da ideia do “parto natural”, um termo que desde então passei a combater. Não existe nada de “natural” no parto, se esta palavra for usada como contraposição às perspectivas culturais, portanto artificiais, e que não dizem respeito à pura ação biológica sobre o processo de expulsão fetal do claustro materno.

Para avaliar a influência da lua sobre os partos seria necessário realizar o isolamento das milhares de outras condicionantes socio-culturais-contextuais que agem sobre o parto, uma tarefa que eu percebi ser completamente impossível e inviável. Talvez há alguns séculos, em uma tribo de indígenas autóctones da Amazônia, seria possível retirar muitos destes condicionantes, mas nem assim seria o suficiente para retirar deles a linguagem – e como diria Lacan “a palavra matou o real”. O parto natural está restrito aos outros mamíferos, e mesmo para eles apenas quando estiverem em segurança, distantes do nosso olhar. A par deste meu desencanto, a influência da lua sobre partos acabou sendo desmentida por diversos estudos, e hoje resta pouca dúvida sobre a questão.

Eu me dei conta muito cedo que o real do corpo é inacessível para um universo simbólico, onde variáveis infinitas agem sobre o pensamento, e este sobre o corpo e suas funções. O desencadeamento de um parto pode até ocorrer pela lua mas é muito mais provável que hoje em dia seja mais condicionado pelo humor e pelas crenças do médico do que por qualquer alteração hormonal. Por esta razão a pesquisa logo se tornou absolutamente desinteressante, até porque a minha visão a partir de então estaria totalmente direcionada para as questões relacionadas ao protagonismo feminino no evento, o que consumiu praticamente toda a minha vida profissional. As influências da lua ficaram como uma curiosidade passageira da época do final da residência.

Entretanto, e aqui o ponto que eu achei interessante, a imagem do “jovem médico místico” preocupado com a influência das fases da lua ficou gravado na memória do meu colega, como se aquela imagem pudesse traduzir minha personalidade e os meus interesses. Nada poderia estar mais longe da verdade, como o resto da minha vida pode comprovar. Todavia, fiquei igualmente impactado ao me dar conta de que este tipo de comportamento é extremamente utilizado por todo mundo – inclusive por mim.

Comecei a lembrar de pessoas pelas quais tenho uma profunda antipatia por coisas feitas ou ditas em um passado distante e percebi que muitas vezes (quase todas) essa má impressão está ligada a pequenas coisas, posições que o sujeito teve no passado, e que podem estar completamente distantes de sua realidade atual. É possível que tenham abandonado por completo suas posturas, suas ideias, suas perspectivas de mundo e tenham se tornado bastante diferentes. Como a menina na praia de Copacabana que deu uma declaração preconceituosa e até racista para a extinta TV Manchete, mas que refez sua vida, estudou filosofia e hoje diz ter “horror de gente que pensa como ela pensava”.

Pessoas mudam, pessoas crescem, se modificam. Pessoas evoluem… o que era algo valioso no passado pode se tornar desinteressante em muito pouco tempo. Paixões se dissipam no ar sob a ação do sol, novos amores surgem, assim como novos interesses brotam da experiência cotidiana. É possível que, dentro de um tempo variável, todos sejamos compelidos a mudar o nosso foco, nossa visão da realidade, fazendo o interessante virar frugal, e o banal essencial.

Minha maior fantasia é ter um encontro com Jesus depois de morrer. Imagino encontrá-lo no plano espiritual, e, passado o susto por vê-lo, nossa conversa seria assim:

– Fala Nazareno!!! Feliz de te encontrar!! Meu, que honra…

– Obrigado, mas ninguém me chama mais de Nazareno há alguns séculos. Aqui acabei me dedicando a outras coisas, meu foco de atenção está em outros projetos. Nada contra aquela minha fase, que foi até bem legal. Fiz vários amigos e curti muito. Converso muito com os apóstolos ainda. Pedro, por exemplo, quando vem para cá sempre fica na minha casa, né Madalena?

Olho para o lado e Madalena concorda com um sorriso e um meneio de cabeça, enquanto passa um pano nos móveis da sala. Volto o olhar para o Messias e o vejo carregando com certa dificuldade uma sacola marrom.

– O que tem na sacola, Mestre? Precisa de ajuda?

– Ahh, tudo bem. Faz parte do treinamento. São meus halteres.

– Halteres?

– Sim, nos dois últimos séculos tenho me dedicado ao fisiculturismo. Percebi que este é um caminho muito mais interessante. Se eu estivesse bem fisicamente teria sido muito mais difícil para os romanos me pegarem. Essa é a minha paixão por ora…

Ok, uma fantasia, mas creio que manter-se com a fotografia estática de qualquer um – para o bem e para o mal – diminui a imensa adaptabilidade humana para encontrar novos caminhos, novas paixões e projetos.

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ENAPARTU

ENAPARTU – Sorocaba, julho 2012

Há 10 anos se realizava o ENAPARTU – Encontro Nacional de Parteria Urbana – uma ideia criada para regulamentar, fortalecer e normatizar a parteria nas grandes cidades e através de parteiras profissionais habilitadas. Foi um movimento que pretendia criar dentro da ReHuNa (Rede pela Humanização do Nascimento) um departamento exclusivo para a questão do parto urbano, numa perspectiva revolucionária, rompendo as amarras autoritárias relacionadas ao parto e estimulando o debate aberto e franco sobre nascimento humano, feminilidade, patriarcado, autonomia e suas relações com a parteria.

O movimento tinha ideias e propostas avançadas (demais?) para sua época. Ainda estamos patinando no enfrentamento necessário à corporação e nas propostas de multilateralidade. Vivemos ainda no universo unipolar da obstetrícia, sem perspectivas de curto prazo para abrir outras opções em nível sistêmico.

Apesar de eu ter me afastado em definitivo de qualquer participação institucional sobre o parto ainda acredito na necessidade das redes e das associações e reconheço a importância desse centralismo como propagador de ideias e na produção de representatividade política. Espero que esse congresso possa servir de semente para o florescimento de uma corrente revolucionária para a parteria.

Talvez eu não tenha mais a oportunidade de ver em vida um congresso relacionado ao nascimento igual a esse – em outras bases e com outros personagens – mas as ideias de protagonismo garantido às mulheres, interdisciplinaridade e atenção baseada em evidências sobreviverão à minha partida e não serão jamais abandonadas, pois que estão contidas na essência da liberdade, meta última do ser humano.

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Especialistas

Nossa ânsia por “especialistas” é uma das piores consequências da segmentação da medicina. Cada vez que uma pessoa com tosse me pedia que eu indicasse um “pneumologista” uma estrelinha no céu se apagava. Eu percebia, nesses pedidos, uma visão distorcida do papel que os especialistas desempenham no cuidado à saúde. Um especialista é um profissional que sabe muito de pouco, mas a imensa maioria dos pacientes precisa de alguém que saiba um pouco de quase tudo.

Os especialistas são isso: “experts” em partes ou funções do corpo, dedicados às questões mais infrequentes, minúsculas, que ocorrem raramente na população e que pela sua relevância merecem uma dedicação exclusiva. São profissionais com uma visão necessariamente limitada sobre a saúde, mas altamente focada em distúrbios específicos. Por isso mesmo, delegar a saúde ou o tratamento dos pacientes àqueles que carecem de uma perspectiva holística do sujeito é um erro. É uma perversão de sua função original.

Hipertensos consultando cardiologistas, gente com urticária consultando dermatologistas, pessoas com conjuntivite lotando consultórios de oftalmologistas, pacientes com prisão de ventre ou azia consultando gastroenterologistas etc, são exemplos de erros na escolha dos profissionais. Estas são alterações da saúde que seriam muito mais bem atendidas por médicos de família e clínicos gerais, num consultório ou posto de saúde. É facilmente comprovável que 80% destes casos são tratados e acompanhados por médicos de formação generalista, que terão muito mais facilidade para uma abordagem bio-psico-social de seus pacientes.

O médico mais apropriado para a vasta maioria da população é o generalista, ou o Médico de Família e Comunidade, que desde 1975 organizou seus primeiros programas de residência médica, mesmo usando denominações diversas. No ano de 1981 passou a ser chamada de Medicina Geral Comunitária por meio de Resolução da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM); e em 2001, passou a receber o nome de Medicina de Família e Comunidade, reconhecida pela CNRM e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) (resoluções CFM 1232/86 e 1634/2002). Esta área da Medicina recebeu um incremento muito grande de profissionais, apesar de ainda estarmos muito aquém de nossas necessidades.

A Declaração de Alma-Ata, que foi formulada no Cazaquistão em 1978, foi um pacto relacionado à saúde de um modo geral e assinado por 134 países participantes. No que diz respeito à Atenção Básica à Saúde, defendeu estes cuidados nos seguintes termos:

“Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e autodeterminação. Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde. (Opas/OMS, 1978)”

Para além das vantagens para os pacientes existem inequívocos benefícios econômicos para os sistemas de saúde que investem em uma medicina generalista e na ABS (Atenção Básica à Saúde). Dados epidemiológicos de estudos da revisão sistemática da literatura sobre os riscos de internação associadas por condições sensíveis à Atenção Primária, nos mostram que a melhoria de acesso ao sistema de saúde apontam para a diminuição de internações por “condições sensíveis à ABS”, que são problemas de saúde evitáveis, atendidos por ações típicas no nível mais primário e local de atenção e cuja evolução, na falta de atenção oportuna e efetiva, pode determinar hospitalização desnecessária, como pneumonias bacterianas, complicações da diabete e da hipertensão, asma, entre outros. Tais hospitalizações excessivas produzem um custo muito alto para o Sistema de Saúde além de aumentarem os riscos para os pacientes pelas intervenções em cascata que são realizadas no ambiente hospitalar, levando a problemas de complexidade crescente.

Desta forma fica claro que apenas os quadros não resolvidos pela abordagem clínica simples deveriam ser encaminhadas aos profissionais especializados. É nesse contexto – das doenças mais raras e refratárias aos tratamentos mais simples – que eles são extremamente necessários. É para essa parcela pequena da população, que precisamos do trabalho e da dedicação destes profissionais na medicina. Já para o conjunto da população precisamos de generalistas, médicos capacitados e compassivos, capazes de enxergar por detrás dos véus das doenças evidentes, para perceber o arcabouço psíquico e social que se esconde por trás de qualquer quadro de adoecimento.

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Videocassete

Apenas para contextualizar… este é um post de uma pessoa com problemas de DNA (Data de Nascimento Antiga)

Antes de 1981 a chance de você assistir um filme de novo – por exemplo, 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick – apenas por saudade, curiosidade ou porque queria entender direito uma cena, era se a Globo resolvesse passar o filme às 3h da manhã de uma segunda feira na Sessão Cult. Outra possibilidade, bem mais remota, seria uma sessão/debate de cinema da faculdade, mas esta era uma possibilidade ainda mais difícil de acontecer. Não havia nenhuma outra forma de conseguir uma cópia do filme para assistir quando quisesse. Quanto melhor o filme – os chamados filmes cabeça – menor a possibilidade de você vê-lo de novo.

E quando, numa mesa de bar, alguém começava a debater os significados profundos da cena em 2001 – onde o antropoide utiliza uma ferramenta feita de osso para dominar o meio ambiente e depois esta mesma ferramenta se transforma numa espaçonave – e você nunca havia assistido o filme, o máximo que poderia fazer era pedir que trocassem de assunto, simular uma convulsão ou pedir outra cerveja em voz alta. Você só teria como conhecer a cena através do relato dos amigos…

2001 – Uma Odisseia no Espaço

Lembro bem dos telefonemas durante a semana avisando que “A Última Noite de Boris Gruchenko” ia passar de madrugada e por causa disso passávamos vários dias organizando nosso tempo para ser possível assistir. Hoje já é possível adquirir uma cópia digital de literalmente qualquer filme, assistir a hora que quiser, parar as cenas, estudar os detalhes e até fazer um gif para ilustrar seu ponto de vista, destacar uma passagem interessante ou melhorar uma aula.

O videocassete foi quem abriu as portas para este mundo de acesso imediato à informação, antes ainda da criação e disseminação dos computadores. Para mim, é uma maravilha cuja amplitude os novos não conseguem entender, porque já nasceram no tempo da informática e da rapidez quase instantânea das informações. Portanto, um viva para a revolução digital que se iniciava há quatro décadas e veio mudar o mundo como o conhecemos.

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Séries Gringas

As séries americanas dos anos 60 e 70 que eu assisti na infância sempre passaram pano para o genocídio americano das população nativas, que veio associado à “Corrida do Ouro”, fluxo de deslocamento em direção ao pacífico anterior à guerra de secessão na segunda metade do século XIX. Entre os programas que eu assistia estavam Daniel Boone, Rin Tin Tin, Os Pioneiros, O Último dos Moicanos e muitos mais, sem mencionar os inúmeros filmes com John Wayne, Audie Murphy, Clint Eastwood, Randolph Scott, Glenn Ford, Lee Van Cleef e outros tantos artistas famosos de “bang-bang”, ou “western”. Todos eles poderiam ser caracterizados como filmes criados para a “exaltação da cultura branca europeia”.

Estas criações de Hollywood tinham como objetivo principal descrever os invasores brancos como “bravos e heroicos”, mas também para estereotipar os índios como violentos e traiçoeiros, ignorantes e bárbaros, ou para apresentar sua versão “civilizada”: o “bom índio”, que se tornou pacífico, subserviente, obediente e servil. Mingo (Ed Ames), o companheiro índio de Daniel Boone (Fess Parker) é o melhor exemplo de “índio bonzinho”.

Estas produções de Hollywood formaram toda uma legião de espectadores – toda a minha geração, que brincou de “Forte Apache” – manipulados pela visão colonialista americana, que escondeu durante mais de um século a barbárie e as matanças da “conquista do Oeste”.

Hoje, o que me resta é sentir vergonha de não ter percebido na época a maquiagem vergonhosa que impuseram à realidade…

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Chuva

A mesma lógica que diz que o capitalismo tem cura bastando para isso ser “civilizado” e bem controlado – cobrando impostos dos ricos e punindo corruptos – é a que diz que o parto vai ser mais humanizado educando médicos cesaristas e punindo abusos. Esses sonhadores ficaram trancados em casa no último século quando choveram evidências mostrando a ingenuidade que sustenta estas ilusões.

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