Arquivo do mês: maio 2013

Crenças, Gostos e Castas

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Conservadores saem as ruas no Brasil, a exemplo do que fizeram na França há poucas semanas.

No Brasil, quase à mesma hora, ocorreram a Marcha das Vadias e a Marcha para Jesus. Mais do que uma demonstração de ativismo feminista ou uma demonstração de fé no “Senhor Jesus”, vejo em tais demonstrações um claro divisor de classes sociais. Há poucas semanas um fenômeno semelhante: Daniela Mercury e Joelma dividiram as opiniões entre os pobres e a classe média. A cantora baiana por assumir publicamente um relacionamento homoafetivo e a musa do Calypso por defender posturas conservadoras em relação à homossexualidade.

Se você é de classe média pega mal se posicionar contra homossexuais e os direitos que estes reivindicam, da mesma forma que pega mal escutar Latino ou Luan Santana. Muitas opiniões que vemos a respeito destes temas são, em verdade, aprisionamentos ideológicos determinados pelas castas sociais, e não avaliações maduras sobre os temas em questão. Mesmo que você curta cantar músicas do Latino enquanto toma banho, se você quer se manter na classe média não fica bem declarar publicamente que gosta delas.

Desta forma os gostos estéticos (musicais, artísticos, literários, etc.) e sua expressão explícita no convívio público, são senhas, códigos e “palavras passe” para a classe social onde você se encontra. Lembro de escutar uma conversa de duas meninas adolescentes em que uma dizia a outra: “Que tipo de banda você ouve”? A outra respondeu incontinenti: “Ramones”. Quando ouviu o nome da banda a primeira lhe abriu um enorme sorriso. Era o código: a tribo específica à qual você se liga. Era possível, a partir desse reconhecimento, uma vinculação. Eu penso em fazer isso na sala do café dos médicos no hospital onde atendo: iniciar uma conversa animada com uma colega a respeito de música, e citar elogiosamente várias duplas sertanejas, apenas para observar a cara de espanto dos colegas médicos, como que a dizer “O que esse indivíduo está fazendo aqui, entre nós?”

Quanto aos objetivos da “Marcha das Vadias” ninguém discorda. Pelo menos os objetivos explícitos e conscientes, o que não tem necessariamente que ver com os objetivos verdadeiros e inconscientes. Mas veja bem, na “Marcha para Jesus” também havia o interesse de exigir direitos, fazer uma demonstração de fé de forma contundente e firme e estava cheio de homens conscientes e parceiros, todos em prol da família e da religião. Eram nitidamente pessoas do “bem”, cheias de boas intenções. Mas, se as intenções e a essência das pessoas era a mesma (nas Vadias e em Jesus havia gente bacana, e muita gente histérica também, claro), o que salta aos olhos é a diferença de classe social.

Por isso é que afirmo que muito mais do que um interesse ideológico existia uma imantação por classe social. Pega mal para a classe média se ligar à Jesus, e fica estranho para as pessoas de classe baixa entrar no meio da parada das Vadias. A classe média é notoriamente progressista, mas as classes C e D (emergentes no Brasil contemporâneo) são eminentemente conservadoras. É por isso que o Feliciano recebeu mais apoio que paulada, e é por esta razão que o discurso político brasileiro da atualidade apresenta uma nítida guinada conservadora (Jesus, família, sexualidade, etc.) e para a direita (capital, mercado, competitividade, lucro, etc.).

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Mídia inconsequente

amor a vida

“Se vc tem “Amor à Vida” não faça uma cesariana sem justificativas, pois ela aumenta a sua chance de assistir a próxima novela no céu…”

Que desastre…

Preparem-se para mais uma “Campeã de Porcaria” da Rede Globo.
A cena da novela de hoje vai retratar um “parto que deu errado”, causando a morte da mãe e do bebê. A “tecnologia salvadora” foi usada “tarde demais”…

A Globo investe mais uma vez na estratégia de enaltecer a assistência tecnológica, cara e de pífios resultados em detrimento de uma visão mais abrangente e respeitosa com as mulheres. As mortes de mulheres continuam a ser retratadas como a “insistência de apostar em um corpo defeituoso de mulher”, ao invés de entregá-las à ação salvadora das tecnologias

Pois é! Mais uma vez os roteiristas de novela fazem um trabalho negativo para a saúde brasileira, ajudando a aumentar o fosso que nos separa das nações desenvolvidas no que diz respeito à prevenção de danos à saúde. O que mais uma vez aparece é uma mídia mitológica e interessada em cativar anunciantes (como as grandes instituições hospitalares) ao invés de esclarecer, orientar e dissipar ideias errôneas. É por esta razão – entre outras – que o Brasil amarga a vergonhosa marca de campeão mundial de cesarianas.

Para cada mulher que poderia sofrer o que a novela insinua, DEZENAS acabam morrendo por causa de cesarianas, com suas consequências cirúrgicas, infecciosas, hemorrágicas e anestésicas. Isto não é opinião: é evidência científica, corroborada por instituições idôneas e comprometidas com a saúde das mulheres.

A TV Globo consagra a mentira que a gente escuta todos os dias: de que o parto normal é o culpado sempre pela morte, como sinônimo de negligência, e quando ocorre o óbito de uma criança ou de sua mãe em decorrência de uma cirurgia a sociedade ingenuamente se resigna, e vemos as pessoas balançando as cabeças e dizendo que “foi feito de tudo para salvá-los”. Ledo engano, brutal equívoco.

É quase impossível melhorar a atenção ao parto no Brasil enquanto grandes corporações de TV disseminam desinformação e criam, no imaginário feminino, conceitos preconceituosos e equivocados sobre uma pretensa fragilidade feminina e sobre uma falsa defectividade na forma de parir.

O que me deixa triste e desanimado é que, se era realmente importante criar um “viúvo”, marcar um personagem com as cicatrizes da morte trágica de sua família, porque não o fizeram como consequência de uma cesariana???? Porque não se alinharam às recomendações da Medicina Baseada em Evidências? Quais os determinantes obscuros para – mais uma vez – se juntarem àqueles que desejam que as taxas vergonhosas de cesariana permaneçam no mesmo lugar? Qual a verdadeira intenção da Rede Globo? Será apenas burrice dos roteiristas? Falta de informação ou imaginação? Será que esse clichê maldito ainda não se esgotou nos dramalhões tupiniquins? “Senhor Alberto Roberto, teremos que escolher entre sua esposa ou seu filho. O senhor terá que decidir…” Ora, que cafonice, que falta de respeito com o telespectador, que ausência de senso crítico e atualização!!

Eu creio que o fracasso da última novela, que foi considerada como a pior novela daquela autora, forçou os diretores e a cúpula da Vênus Platinada a apostar nos dramas maniqueístas e nas tramas moralistas mais antiquadas. Só isso, ou uma teoria por demais persecutória, pode explicar tamanha bobagem da Rede Globo.

As pessoas que lutam pela liberdade de escolha e recusas informadas no parto não descansarão até que tais mentiras sejam esclarecidas, até que parem de retratar os partos como ruins e negativos, e que deixem de oferecer a falsa ideia de que a intervenção tecnológica no nascimento é melhor do que os recursos que a natureza nos ofereceu.

E que Deus nos perdoe por mais este crime contra o parto natural, que poderá produzir um estrago nas intenções do governo brasileiro de diminuir a mortalidade materna e as cifras alarmantes de cesarianas…

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Medo

Mad doctor with a syringe in his hand
Somos um núcleo de medos, envoltos por uma faixa de crenças, sobre as quais repousa um verniz de intelecto.

Nos últimos anos como divulgador de um conjunto de ideias agrupadas com o nome de humanização do nascimento eu tive a oportunidade de conhecer muitas pessoas da área médica que mostravam interesse em se aproximar de um modelo que apregoava mais respeito e dignidade no parto. Muitas tinham um perfil que eu chamaria de “clássico”: boas intenções, bom trabalho, gentileza, boa experiência, um certo enfado com o excesso de intervenções e uma legítima vontade de fazer mudanças em suas condutas. Entretanto, quando oferecíamos um olhar mais profundo sobre as reais motivações, o verdadeiro cerne do processo de nascer, as implicações políticas, econômicas, sociais, psicológicas, antropológicas e médicas do nascimento, muitas delas estabeleciam de imediato um discurso defensivo, e iniciavam uma retórica de contra-ataque. Bastava falar que “fazemos demais”, “intervimos demais”, “cortamos em demasia”, ou que “nossa proposta passa pela defesa de um parto fisiológico de acordo com os desejos das pacientes”, para sermos taxados de “ditadores”, “arrogantes”, “xiitas”, “fanáticos” e até “salvacionistas”. Tantas foram as vezes que tal fato ocorreu que eu acho até estranho quando não percebo o processo de retração.

Para mim este discurso desvelava uma característica tão humana quanto inexorável: o medo. Sim, medo de que, expostos a uma realidade mais ampla seremos obrigados a rever conceitos antigos, os quais, de certa forma, muito nos haviam beneficiado. Medo de mudar, de reconsiderar posturas, de despir-se de conceitos que durante muitos anos foram caros para nós.

Eu acho compreensível isso, até porque também faço isso (tenho consciência dessas limitações). Portanto, quando as pessoas se colocam para trás e dizem: “Quer saber? Vocês são radicais demais, falam muito em parto normal. O que importa é o bem estar de mães e bebês. Não importa como veio ao mundo. cesarianas também podem ser humanizadas. É um horror obrigar uma mulher a ter um parto normal e etc” tudo o que vejo na minha frente, quando se dissipa a névoa de preconceitos contra ideais bem simples (repetindo: protagonismo restituído, visão integrativa do parto e medicina baseada em evidências) é o medo de mudar. Medo de reconhecer que fomos muito além do que devíamos. Pânico de ver o castelo de conceitos recebidos na escola ruir por falta de sustentação.

Tenho certeza que as pessoas bem intencionadas – TODAS – passam por esse processo de rejeição. Eu sempre conto a história, que ocorreu há muitos anos, quando Zeza me contou que sua amiga de escola havia decidido ter seu parto de cócoras. Eu estava no quinto ano de medicina e recém havia me decidido a fazer a residência em obstetrícia. Não tinha nenhuma ideia do que seria uma postura mais “suave”e respeitosa em relação ao nascimento. Ao ouvir a afirmação de Zeza, que continha a determinação da paciente em ter seu parto numa posição diferente, eu disparei incontinenti: “O que? Ela sobe em coqueiro? Ela é índia? Ela não tem períneo para isso. Se fizer tal estultice vai se rasgar toda!

Sim, eu disse isso, com toda a convicção. Com toda a empáfia, toda petulância e com todo…. o medo. Mas medo de quê? Medo de não ser aceito pelos meus pares, de não ser reconhecido, de que zombassem de mim. Medo de ser diferente e de poder estar errado. Medo das consequências de ver o mundo por um outro prisma. É assim que somos: um bando de medrosos. Eu tinha MEDO, muito medo.

Quis o destino que alguns meses depois desse rompante de arrogância e estupidez me caísse nas mãos um exemplar do livro do Dr. Moysés Paciornik chamado “Aprenda a Nascer com os Índios“, e eu acabei sendo, por causa dessa paixão avassaladora pelas ideias que ali encontrei, o introdutor dos partos de cócoras nessa parte do Brasil (muito antes de eu tomar conhecimento de qualquer conceito a respeito de humanização).

Portanto, ficar em pânico e retrair-se diante da novidade é natural. Entretanto, para ser realmente um agente de mudança é necessária uma espécie de força extra, algo intenso o suficiente para suplantar a inércia das posturas recalcitrantes. E isso só é possível para aqueles que não têm alternativas além de seguir em frente.

Eu costumo receber muitos estudantes de medicina, enfermagem e obstetrícia para conversar comigo sobre a humanização do nascimento. Para eles eu sempre apresento uma visão propositalmente sombria. Olho para seus olhos sequiosos de respostas e esperança e digo: “Se você tem alguma alternativa, não me dê ouvidos. Saia daqui, tome a pílula azul e acorde amanhã no seu quarto com o livro do Resende todo babado embaixo de sua cara. Mas se quiser tomar a pílula vermelha lembre que ela não tem volta, não há como retornar de um passeio que te leva a uma consciência maior de si mesmo e da sua profissão. Mas só a tome se não houver mais nenhuma escolha, pois no mundo dos que nadam contra a corrente cada braçada é dolorosa e angustiante“.

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Loucura e preconceito no mundo dos trogloditas

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Será que ainda precisamos do “Homo ignobilis”?

Recebi de uma querida amiga paulistana (cujo nome não direi para não causar constrangimentos a ela) um link para ver partes de um livro recém-lançado sobre as mulheres e suas “doidices”. Eu imaginei, no primeiro momento, que se tratava de uma visão masculina sobre o misterioso mundo feminino, e as maravilhosas “loucuras” que as mulheres fazem na sua passagem pela Terra. Entretanto me deparei com uma torrente de preconceito, desinformação e grosseria que me chocou, a ponto de resolver escrever a respeito. O capítulo 10 deste livro (cujo nome não direi para não dar publicidade a um material tão ruim) chama-se “Parto em Casa”, que foi escrito em função da experiência que o autor (Sr W.) teve ao vislumbrar a Marcha de Mulheres que ocorreu em 32 cidades brasileiras em defesa do direito de escolha, do Parto em Casa e do nosso colega Jorge, injustamente acusado pelo órgão de classe do Rio de Janeiro. Não li o livro todo, porque este capítulo já é suficiente para demonstrar a grosseria do julgamento que o autor faz das mulheres e do feminino. Tomo a liberdade de transcrever apenas um parágrafo para que tenham uma ideia do que se trata:

“(…) Os outros benefícios [do parto domiciliar] não merecem nem ser citados por tamanha incoerência e esdrúxulas afirmações. Se perceber, verá que não batem bem da bola, são normalmente aquelas que não se apegam ao batente, como sabemos. Quando a mulher trabalha, ajuda no sustento da família e tem responsabilidades para continuar a vida como ela é, não tem tempo para essas “frescuras” [a Marcha e o ativismo]. Tem o filho na maternidade mesmo e após alguns dias volta à luta. Isso, sim, é mulher de verdade (…).”

Pelo trecho acima pode-se avaliar a qualidade do resto do livro. Por esta razão eu resolvi escrever a primeira resenha desta publicação, e que constará no Google Livros. Aqui está ela:

“Sobre o Livro XXXX do senhor W. tenho a dizer que o capítulo sobre o “Parto em Casa” é lamentável, triste, preconceituoso e chauvinista. Poderia escrever sobre o resto do livro, mas se ele contém algo semelhante a este capítulo ele certamente não vale a leitura. Eu acreditei (pelo título) que o livro era bem humorado e que tratasse das coisas lindas e até incompreensíveis (ao olhar masculino) da epopeia feminina na terra, mas é provavelmente (pela amostra que tive) um aglomerado de grosserias contra as mulheres, e uma torrente de preconceitos sem cabimento.

No texto sobre o parto domiciliar ele chega a dizer que isso é “coisa de mulher desocupada” (vide acima), usando as MESMAS PALAVRAS que os homens proferiam para debochar e desmerecer os interesses intelectuais femininos, como estudar, adiar um casamento, fazer uma faculdade ou decidir-se a não ter filhos nos anos 60. Um texto triste, lamentável, infeliz e inaceitável para uma sociedade que se propõe plural e justa. Desafortunadamente este senhor não passa de um fóssil vivo, um exemplar do “homo ignobilis” do início do século, que resiste em tratar as mulheres com um misto de compaixão arrogante (pobres delas, loucas, são apenas mulheres…) e desconhecimento total do ser feminino. Se eu fosse mulher e lesse isso, realmente ficaria LOUCA, e faria parte dos 90% que ele acusa. Por outro lado eu informaria a ele que só quando 100% das mulheres se indignarem com tanta ignorância e preconceito é que esse mundo oferecerá mais dignidade para elas no momento de fazer escolhas informadas sobre como parir.

E, por favor… eu li o capítulo (as partes que o Google permitia) e ficou CLARO que não se tratava de uma “brincadeira”, ou de uma espécie de “humor machista”. Não vou aceitar ser chamado de mal-humorado: ele expressou uma opinião séria, desconsiderando e debochando de gestantes que lutam por liberdade de escolhas. Não, não se trata de uma comédia ou de uma caricatura.

É preciso que cidadãos como o Sr W. permaneçam no mundo apenas pendurados em paredes de museu, para mostrar como eram os homens na pré-história da cidadania, quando as mulheres eram obrigadas a ter seus filhos da forma como os homens determinavam, e não da maneira como a ciência comprova como seguras, e as mulheres desejam.

Entretanto, é minha opinião de que o ponto de vista do Sr. W está cada dia se tornando mais cafona, démodé, ultrapassado e velho. Essa já foi a opinião consensual na cultura ocidental, mas hoje é apenas a hegemônica. Já existe, principalmente por força da Internet e das redes sociais, uma consciência muito maior dos direitos das mulheres, assim como informações idôneas sobre a segurança no parto domiciliar (e não o amontoado de opiniões e visões enviesadas deste senhor). Com o passar do tempo esta postura retrógrada e ofensiva com as mulheres será vista apenas uma visão antiquada e sem embasamento, e a história verá este texto como um resquício do preconceito que ainda recaía sobre as mulheres na cultura ocidental nos umbrais do século XXI.”

Ric Jones

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Decisões e Protagonismo

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Onde foi, durante o caminho, que cometemos este erro?

“Colocar a culpa nos outros (médicos, natureza, defeitos genéticos, bacias pequenas, etc…) pode ser muito bom e efetivo para aliviar a frustração de parto que (por alguma razão), não ocorreu. Aliás, é o que TODO mundo faz, principalmente quando analisamos a propensão para culpar os médicos pelos maus resultados; o que antes era um “esporte nacional” americano agora tornou-se uma bolha de judicialização prestes a explodir por lá. Entretanto, eu prefiro pensar que o fracasso, na imensa maioria das vezes, está relacionado ao que NÓS MESMOS fazemos, pelas nossas escolhas pessoais, assim como o sucesso de nossos projetos também se estabelece por uma série de eleições que realizamos. Jared Diamond, no seu livro “Colapsos” já falava explicitamente em como as sociedades “ESCOLHEM” fracassar ou ter sucesso, e cita os Anasazi, os habitantes de Páscoa e os nórdicos da Groenlândia do século XI como exemplos de más escolhas que levaram ao colapso e, por fim, ao extermínio. Entretanto, estas escolhas desastrosas – nas sociedades mas igualmente na vida privada – não operam conscientemente, mas os resultados vão acabar acontecendo por conta das eleições mal direcionadas ou incorretamente avaliadas. Assim também fazemos com as pequenas e aparentemente simples decisões quanto ao parto; elas vão ao final compor um quadro onde nitidamente se enxerga a “mão” do pintor, com suas fraquezas, dificuldades e medos, assim como sua capacidade, determinação e coragem.

Culpar algo fora de nós é normalmente manobra escapista, que apesar de nos aliviar momentaneamente das tristezas por um objetivo não alcançado, acaba criando um fosso de alienação, que por fim nos impede de ter nas mãos as rédeas de nossa vida.

Eu entendo quem pense ser mais “adequado” encontrar respostas na genética, nas bacias pequenas ou nos micro-organismos. Há quem prefira diminuir suas dores e frustrações determinando que a culpa pelo que lhe acontece é dos médicos, da natureza madrasta, do hospital ruim, das bactérias, dos vírus, da mãe cerceadora, do pai severo ou ausente, ou por causa de uma maldição qualquer (divina ou satânica). Eu prefiro correr todos os riscos e assumir a minha posição de protagonista, sem cair na tentação de me alienar das responsabilidades. Não fosse assumir esta posição e nenhuma vitória seria plena, pois que ela estaria sempre a ser conduzida por outro.

Max sempre me disse que crescer significa assumir as responsabilidades do vida, tomar para si o protagonismo de suas decisões, e não delegar para outros o que nos cabe. No nascimento, assumir como suas as prerrogativas de decidir o caminho a seguir é o primeiro passo na direção de um nascimento digno e cidadão.”

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Partos marcados

Pele de Bebê
Que marcas deixamos na alma de quem nasce?

Parto marcado, parto determinado; o parto subjugado pela cultura, assim como tantas outras coisas foram solapadas pelo interesse de controlar os tempos e os eventos. Entretanto, para o parto existe um agravante: os tempos são determinados por outros, e não pela mãe e seu bebê. Nascemos de acordo com as disponibilidades e interesses de outros sujeitos e este é um dos primeiros ensinamentos de submissão à autoridade que recebemos. A partir de então, em todas as situações em que que baixarmos a cabeça diante de um poder autoritário estaremos apenas dando continuidade a um destino marcado muito cedo, ou como diria Cazuza “Nossos destinos foram traçados na maternidade“. Nas palavras da minha querida colega, parteira Mary Zwart, diante do aviltamento do parto como fenômeno feminino, esta a pergunta que cabe ser feita: “Você quer que seu filho nasça como paciente ou como cidadão?” É necessário formular a verdadeira questão no parto: que mensagem o nascimento impregna, marca e tatua na pele de alguém cuja vida recém se inicia?

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Marcas na Alma

Mulher triste
Porque ainda aceitamos tanta violência?

Uma mensagem enviada para mim sobre um caso de violência obstétrica, dessas que normalmente passam desapercebidas por nós, mas que deixam marcas profundas na nossa existência. O relato abaixo ocorreu na cidade de Botucatu – SP


Ric,

Eu demorei a entender a dimensão da violência que sofri no meu parto.

Foi tão difícil convencer o marido de que a presença dele no nascimento do Pedro era importante…. ele se convenceu, se empolgou…

A começar eu fiquei de pé no corredor frio do hospital, onde o único lugar que eu tinha pra me apoiar era o meu marido e o o bebedouro (que foi onde fiquei). Enquanto isso ouvia as enfermeiras me chamarem de fresca, que aquilo ali estava só começando, que eu só ia parir no dia seguinte e olhe lá (!!!). Bem, só pra calar a boca delas, eu pari em 2 horas.

Em segundo lugar fui examinada por um residente que me mandou subir na escadinha e deitar na maca, com todas as dores das contrações (não, ele não podia abrir mão daquilo, eram ordens da professora). Depois ela quis demonstrar como se estourava a bolsa e chamou “todo mundo” pra ver (os residentes, eram bem uns 10 – segundo meu marido eram mais de 10 pessoas acompanhando… claro, meu marido foi convocado a sair da sala, ficou constrangido de me ver naquela situação, com aquele monte de estudantes, todos da minha idade, alguns conhecidos dele, de vista, pois ele fazia mestrado na farmacologia e tinha muito contato com os estudantes de medicina, inclusive nas festinhas). Nesse momento eu me senti estuprada, pois eu gritava (não conseguia falar de outra forma) que não era pra estourar, que meu irmão havia me dito que não era pra estourar (pois ele é GO e sabia que podia ocasionar um prolapso de cordão). Ela me ignorou, simplesmente, estourou a bolsa com ar superior (pois quando ela me perguntou o porque não estourar, eu não tive argumentos, nem força pra argumentar) e continuou falando com os alunos.

Dali tive que me levantar pra ir pra sala de cirurgia, andando semi nua pelo corredor, toda ensanguentada. Dei de cara com o meu marido, que já queria bater em todo mundo porque estava impedido de entrar. Eu fiz sinal pra ele ficar quieto, pois no momento já mal conseguia respirar. Já não conseguia raciocinar…

Obedeci, simplesmente, tinha medo de que tudo ficasse pior e que, por vingança me fizessem uma cesárea, pois quando me disseram que eu iria pra sala de cirurgia e eu gritei que “não, eu quero parto normal”, percebi que uma desobediência poderia ser determinante ali. Subi novamente na escadinha e me deitei na mesa de cirurgia. Me entreguei, pensando na frase clássica “se o estupro é inevitável, relaxa e goza”. As enfermeiras colocaram as minhas pernas nos estribos, enquanto a doutora descrevia o meu quadro pros estudantes. Fechei os olhos, pois não queria ver a cara de ninguém, estava frustrada já antes de parir. Senti que o bebê (que antes eu sentia que estava saindo) já não estava saindo mais… a força que eu sentia antes, do expulsivo, tinha diminuído. Me mandaram segurar naqueles ferros e fazer força, muita força… “Vai mãezinha, que se não parir em 15 minutos, vai ter que ser cesárea e você não quer, não é mesmo?”. Pra “ajudar”, subiu na minha barriga e empurrou. A médica bem boazinha, “olha, tá difícil de sair, vou fazer um cortezinho pra ajudar” (que me rendeu 7 pontos). Nesse momento ela falou que ia colocar o fórceps (pros alunos), mas depois ela desistiu, disse que já estava saindo. E nasceu meu filho, com 2,980Kg. Vi que levaram ele pra uma pia (depois não vi mais, só as costas das enfermeiras, e ele chorando sem parar). O residente fez os pontos errados, a professora deu bronca, mandou tirar e fazer de novo. Eu estava exausta, mas mesmo assim quis me levantar e ir embora. Não deixaram, falaram que eu ia cair, pois estava com hemorragia.

Depois de alguns minutos trouxeram meu filho todo embrulhadinho. Eu queria ver as mãozinhas, os pezinhos…. mas lá estava ele embrulhado, de luvinha, touquinha, meinha. Me mostraram ele como mostram um bebê pra uma mãe que acabou de passar por uma cirurgia. Me deram a ordem: “beija ele, mãe, nem parece que está feliz!”

E eu não estava mesmo. Estava triste, chateada, magoada e confesso que rejeitei meu filho naquele primeiro minuto. Eu que o queria tanto já não o queria mais. Levaram ele embora pra incubadora. Eu queria ver meu marido… chorar e dizer que aquele não era o parto da lagoa azul, como eu imaginava… Pedi meu marido, ele veio. Perguntei onde estava o meu filho, ele disse que na incubadora, que ele era lindo e que ele ia pra lá que não queria perder ele de vista. Saiu.

Enquanto isso me colocaram em uma maca e me levaram pra enfermaria. Pedi pra trazer meu filho, que queria ficar com ele. A enfermeira muito sensível disse que só em duas horas, “agora você vai dormir, porque vai passar o resto da vida sem dormir!”

Apesar de ter passado a noite inteira em claro, com dores, levantando pra ir ao banheiro, vomitando… eu não consegui dormir (meu pequeno havia nascido às 9h da manhã). Esperei ele chegar. Quando ele chegou dormia, não acordava, só dormia… Pensei, “meu filho é um anjo, só dorme”…

Acordou, mamou mal. Dormiu no peito sem mamar direito. Começou a perder peso, teve icterícia. Vez e outra vinha um pediatra, levava ele, pesava e voltava dizendo que tinha dado complemento porque ele estava perdendo peso. Fiquei 5 dias no hospital. As enfermeiras disseram que era pra eu amamentar de 1 em 1 hora, senão ia ter que ficar mais tempo ainda no hospital. Eu passei todos aqueles dias e muitos, muitos outros acordando de 1 em 1 hora, dia e noite (com despertador do lado), pra enfiar o peito na boca do menino e segurar (ele não fazia questão de mamar – tbém, com soro glicosado na veia e NAN….), quando ele dormia eu o acordava mexendo no queixo, na boca… de medo dele perder peso e ter que ir pro hospital.

Meu marido indignado, queria que eu fosse pra casa. Nem eu, nem ele imaginávamos que aquele momento mágico de estar juntinho com nosso bebê recém nascido se transformaria nisso.

Quando cheguei em casa tivemos logo uma briga. Ele chorou falando que não admitia, que aquele monte de estudantes tinha visto o filho dele nascer e ele tinha sido proibido de entrar na sala de parto. Que todos eles tinham visto a mulher dele com as pernas abertas, como ele ia encarar eles os encontrasse na faculdade? O detalhe disso tudo era: marido muito ciumento, muito possessivo. O ciúme dele se transformava em violência. E esse ciúme ficou ainda mais exacerbado depois do parto.

O parto, que poderia ter sido um momento de respeito e de aproximação acabou se tornando um problema nas nossas vidas. Qual foi o grau de contribuição desse evento pra nossa separação? Eu não sei… mas é certo que contribuiu.

Não posso deixar de me lembrar desse parto como um evento doloroso. Não posso deixar de culpá-lo por muitos eventos que se sucederam. Quem pode saber se o nascimento do meu primeiro filho tivesse sido diferente, será que não estaríamos juntos até hoje? Se éramos tão apaixonados? Se fizemos um filho com tanto amor? Eu prefiro não pensar e levar a vida adiante. Hoje tenho outro marido, outro filho e mais um pra nascer.

Enfim… não adianta chorar o leite derramado. Mas eu gostaria muito, mas muito mesmo de dar uma resposta à essa GO (que sequer sei o nome, mas ainda vou saber!). Se houvesse uma lei que punisse naquele momento eu a teria denunciado, sem a menor sombra de dúvidas. Ela foi totalmente desrespeitosa, acabou com o meu momento, do meu marido e do meu filho.

Nos marcou pra sempre. Eu nunca vou conseguir não chorar esse parto.

M* (que atualmente não consegue mesmo lembrar desse parto sem chorar)

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Maria da Penha do Nascimento

Maria da Penha

Hoje eu tive um “insight”, mas provavelmente outras pessoas já pensaram nisso. Portanto, não se trata de reivindicar a autoria, mas apenas de falar de um pensamento que eu tive…

Nunca alguém teve a ideia de fazer uma lei “Maria da Penha do Nascimento”?

Não, não se trata do nome completo dela, mas de uma adaptação à realidade das maternidades brasileiras da lei que pune a violência e os abusos contra as mulheres. Assim, cada vez que uma mulher fosse impedida de ter o seu companheiro(a) ao lado no parto ela poderia denunciar com base em uma acusação de “violência contra a mulher”, que é exatamente do que trata o impedimento de um acompanhante durante um momento tão significativo e importante como o nascimento. Se uma episiotomia for realizada sem o consentimento informado (mesmo que de maneira informal e com testemunhas) o Ministério Público será acionado por se tratar igualmente de um abuso cometido contra a integridade física de uma mulher. Assim podemos categorizar inúmeros outros abusos contra as mulheres que são realizados impunemente em maternidades públicas e privadas de todo o país

Exagero?
Será mesmo?
Ou trata-se apenas levar esta lei às suas últimas consequências?
Qual a diferença entre espancar uma dona de casa ou torturar emocionalmente uma parturiente com abandono, episiotomias, Kristeller e enemas, procedimentos inúteis, não autorizados e desnecessários?

Não é apenas tiro, soco e pescoção que se constituem em violências. Existem outras, mais sutis e elaboradas, muitas até travestidas de gentilezas (“O senhor, por obséquio, aguarde na sala de recepção pois o chefe de plantão não admite acompanhantes por falta de “espaço”). Muitas destas agressões passam desapercebidas para mulher e sua família à primeira vista. Entretanto, assim como um furto pode ser feito em salas refrigeradas e por senhores engravatados, as violências contra a mulher podem estar misturadas em rotinas, protocolos, posturas, atitudes e culturas locais, mas não deixam de ser menos danosas e violentas.

Por uma sociedade mais justa, abolindo TODAS as violências contra a mulher.

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Psicanálise e Medicina

Freud-Hahnemann
Freud e Hahnemann

– É dos ‘nervos’, doutor.

Coloca a mão fina sobre o abdome encovado e sua face nos expressa sua dor. Ao procurar ajuda já traz consigo a clara noção de que seus males se originam de algo além do seu corpo físico; algo que se esconde por detrás do meramente manifesto. Apesar do gesto simples, sua atitude nos remete a um enigma que persegue pesquisadores, cientistas, médicos e místicos pelo transcurso dos milênios. As doenças “nervosas“, os males psicológicos ou “de fundo emocional”, nos desafiam a criatividade e a inteligência desde que pela primeira vez um homem esteve preocupado com a saúde e o bem estar de seu semelhante. Mesmo que a vinculação entre transtornos psicológicos e físicos seja moeda corrente em diferentes lugares, de simpósios médicos a conversas de bar, sua estrutura íntima ainda é alvo de discussões acaloradas em qualquer nível de debate. Onde afinal esconde-se a tênue linha que separa (ou liga) o sintoma cru em sua manifestação física mais clara e evidente das interrogações e sofrimentos da alma?

Das vertentes ocidentais terapêuticas, a psicanálise e a homeopatia são as duas especialidades clínicas que entendem o sofrimento humano como produtos de elaboração interna, sendo portanto chamadas de “modalidades endógenas de tratamento”. Ambas as práticas entendem os fenômenos de adoecimento como sendo produzidos “dentro” do indivíduo doente, e não como processos adquiridos do exterior. Assim sendo, reconhecem no sintoma muito mais do que um desacerto ou um desconforto de níveis variáveis. Mais do que uma mera leitura superficial de achados clínicos, buscam o significado mais profundo dos mesmos. Para encontrar o fino laço de união entre sintomatologias ilusoriamente apartadas, é fundamental o entendimento de pressupostos fundamentais: na psicanálise a noção de inconsciente, que tem na homeopatia seu equivalente na ideia de “energia vital”.

Sem o conceito de uma ultra estrutura que governa nossas condutas antes do acesso ao racional é impossível entender a sintomatologia psíquica, como muito bem nos elucidou Sigmund Freud no início do século XX. Entretanto, os sintomas físicos também existem em função de uma causalidade, com razões muitas vezes obscuras, mas que são passíveis de investigação e reconhecimento através de uma abordagem ampla e integrativa. A forma de entender esta causalidade é através dos desequilíbrios dinâmicos da energia vital, que a homeopatia elaborou e incrementou.

A psicanálise vai procurar as ligações do sintoma psicológico com os desafios encontrados no processo adaptativo primitivo do paciente, nas suas relações afetivas, sexuais e emocionais com o mundo que o cerca. A homeopatia, criação do médico alemão Samuel Hahnemann no século XVIII, tentará descobrir no próprio sintoma trazido à consulta pelos pacientes o mapa condutor de sua cura, através da tradução dos mesmos em “linguagem repertorial” e no enquadramento do paciente dentro de modelos específicos de adoecimento. Desta maneira, o biotipo, a história pessoal e a sua carga genética serão fatores preponderantes na compreensão de cada caso individual. Por esta razão a homeopatia é também chamada de “medicina do sujeito”.

No processo terapêutico, ambas as modalidades trabalham com um conceito de “similitude”. A psicanálise irá aprofundar-se na própria angústia do paciente, fazendo-a brotar na palavra durante a consulta analítica. A cura se dará através do discurso, pela verbalização e na reorganização de núcleos inconscientes de sofrimento. Na homeopatia, por sua vez, o processo terapêutico ocorrerá através da utilização de um medicamento homeopático o mais assemelhado possível ao próprio conjunto de sintomas dos pacientes, utilizados como sinalizadores e norteadores, onde o medicamento homeopático agirá como estimulador das capacidades internas de reorganização e cura.

A cooperação e interdisciplinaridade entre os profissionais de ambas as áreas é que nos possibilita um entrelaçamento entre o que o paciente nos conta como sofrimento psicológico e o que percebemos como sintoma orgânico. Desta forma holística e integrativa, é possível entender de uma maneira mais ampla o sentido e os significados do ser, do destino e da dor, e através disso encontrar o melhor caminho de cura para cada pessoa.

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Robbie and Humanization

Robbie
Robbie Davis-Floyd

No início deste milênio eu estava em Florianópolis num seminário internacional promovido pela ReHuNa com a Prof. Robbie Davis-Floyd. Enquanto aguardávamos pelas próximas palestras, no saguão do Centro de Conferências, uma jovem jornalista se aproximou do pequeno grupo que envolvia Robbie e lhe fazia perguntas sobre as origens e significados da humanização do nascimento. Aguardou o término das perguntas e fez a ela a seguinte indagação: “Ok professora Robbie, pelo que eu entendi de suas palavras a humanização do nascimento é um conjunto de técnicas, um protocolo diferenciado, um grupo de rotinas ou um método que visa um parto normal e a satisfação das necessidades das mulheres e seus bebês, certo?”

Olhei para Robbie com curiosidade, pois, assim como Robbie, também percebi que esta pergunta se inseria em um contexto muito maior. Sabia da enorme polêmica surgida a partir do que ficou conhecido como “método Leboyer” de partos “naturais”. Robbie conhecia a repulsa que o mestre francês teve, durante toda sua vida, com a ideia de que seus ensinamentos poderiam sem encapsulados e circunscritos como um “método”. Como sabemos, um método é um procedimento, técnica ou meio de fazer alguma coisa de acordo com um plano preestabelecido, um processo organizado, lógico e sistemático de pesquisa, instrução, investigação, apresentação etc. Humanizar o nascimento poderia ter um “método” que pudesse ser aplicado a todas as mulheres? Poderíamos ter planos preestabelecidos para atender o nascimento?

Robbie sabia que havia um truque que se escondia por trás da pergunta. Percebeu que a ideia era retirar a humanização do nascimento da esfera pessoal do médico e sacramentá-la na lei, nas paredes de um hospital, em manuais e nos livros textos. A ideia era olhar para esse movimento e criar mandamentos rígidos e imutáveis, gravados em “tábuas da lei”, que sobrevivessem aos milênios.

Robbie sorriu com aquele jeito de menina e, diante do inteligente questionamento da jornalista, respondeu: “Não, a humanização do nascimento vai além das normas escritas e afixadas em uma parede de hospital. Ela não pode ser burocratizada e reduzida a frios protocolos e rotinas, como se fosse algo dissociado das pessoas e alheio aos cuidadores do nascimento. Humanização do Nascimento, em verdade, é uma atitude, uma postura pessoal, subjetiva, emocional diante do evento do parto, mesmo quando as bases que a sustentam sejam racionais e científicas. É algo para além dos modelos de atenção, e que atinge a essência da relação entre cuidadores e gestantes, assim como de suas famílias e da comunidade.

Humanizar a assistência ao parto se expressa na forma como nos posicionamos diante da vida e do cuidado, como entendemos as grávidas e como as traduzimos, diante da complexidade infinita de um evento subjetivo e único que ocorre na intimidade do seu organismo. Isto, e não uma lista de procedimentos a fazer ou serem evitados, é a Humanização do Nascimento”.

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At the beginning of this millennium I was in Florianópolis at an international seminar promoted by ReHuNa with Prof. Robbie Davis-Floyd. While we waited for the next lectures, in the lobby of the Conference Center, a young journalist approached the small group that involved Robbie asking her questions about the origins and meanings of the humanization of childbirth. She waited for the questions to finish and asked her the following question: “Ok, Professor Robbie, from what I understand from your words, the humanization of childbirth is a set of techniques, a differentiated protocol, a group of routines or a method that aims at vaginal and normal births, meeting the needs of women and their babies, right?”

I looked at Robbie curiously because, like Robbie, I also realized that this question was part of a much larger context. She knew about the huge controversy that arose from what became known as the “Leboyer method” of “natural” births. Robbie knew the repulsion that the French master had, throughout his life, with the idea that his teachings could be encapsulated and circumscribed as a “method”. As we know, a method is a procedure, technique or means of doing something according to a pre-established plan, an organized, logical and systematic process of research, instruction, investigation, presentation, etc. Could humanizing birth have a “method” that could be applied to all women? Could we have pre-established plans to attend birth?

Robbie knew there was a trick behind the question. She realized that the idea was to remove the humanization of birth from the personal sphere of the doctor and make it sacred in the law, on the walls of a hospital, in manuals and textbooks. The idea was to look at this movement and create rigid and immutable commandments, engraved on “tablets of the law”, that would survive the millennia.

Robbie smiled in that girlish way and, faced with the journalist’s intelligent questioning, replied: “No, the humanization of birth goes beyond written norms and posted on a hospital wall. It cannot be bureaucratized and reduced to cold protocols and routines, as if it were something dissociated from people and alien to birth caregivers. Humanization of Birth, in fact, is an attitude, a personal, subjective, emotional posture in the event of childbirth, even when the bases that support it are rational and scientific. It is something beyond the models of care, and which reaches the essence of the relationship between caregivers and pregnant women, as well as their families and the community.

Humanizing childbirth care expresses itself in the way we position ourselves in the face of life and care, how we understand pregnant women and how we translate them, in view of the infinite complexity of a subjective and unique event that occurs in the intimacy of their organism. This, and not a list of procedures to be done or to be avoided, is the Humanization of Birth”.

 

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