Memórias do Homem de Vidro – 04

O Homem de Vidro

O sangue ainda estava no chão, colorindo de vermelho o piso da sala de emer­gência. O ar carregado retinha o cheiro, entre adocicado e acre, que invadia mi­nhas narinas. A lâmina muda jazia nos panos abertos, mas, ainda limpa e relu­zente, espelhava minha estupefação. Os azulejos da parede refletiam minha face atordoada e desconcertada. A força e a dramaticidade dessa cena se repetiriam muitos anos depois, e com a mesma intensidade, na casa de Madalena, mas na­quele exato instante eu era apenas um personagem passivo dos acontecimentos. Quase nada havia entendido do que ocorrera e, no entanto, esse momento mar­cou de forma indelével o resto da minha vida. Uma ferida emocional, ardente e corrosiva, que apenas estava começando a doer. Eu me encontrava na ilusória quietude do núcleo do furacão. Mal sabia aonde essa tormenta iria me levar.

Ainda escutei, vindo da dobra do corredor, o som das rodas mal azeitadas que conduziam a mulher para a sala de observação. A cena caótica escondia um mis­tério, mas ainda era cedo para decifrá-lo. As luzes da sala aumentavam minha confusão. Não escuto há tempo o choro do bebê. Foi levado para longe do cálido olhar de sua mãe, e talvez já esteja recebendo o tratamento de rotina. Olho para o lado, à procura de uma pista. Vejo os estudantes ainda conversando. Vejo risos nas suas faces, enquanto a minha permanece contraída. Por que eu estou me sentindo tão mal? Por que me tortura a impressão de que eu não entendi direito? Por que parece que alguma coisa está faltando? Saio da sala tentando parecer normal. Se eu pudesse pelo menos entender a sequência de eventos… Por que as coisas não saíram como deveriam? Por que parece ter sido tão diferente? Sinto-me irritado, aborrecido, mais pela falta de compreensão do que por qualquer outra coisa. Por quê? Não me havia sido ensinado que um parto em que a mãe e a cri­ança estão bem é o desiderato supremo do bom atendimento obstétrico? Então por qual razão me sinto tão mal?

Em mim a “farpa na mente” doía. Uma inquietude, uma insatisfação. A dukka dos budistas. Mas ainda era muito cedo para entender a metáfora de Matrix. Tento lembrar de tudo o que aconteceu. Talvez se eu pensar em cada fato, cada detalhe, cada movimento, eu descubra a pista que me falta; a coluna que sustenta o meu mal-estar. Caminho de volta à sala dos médicos com a esperança de que com o tempo isso passe. Talvez se eu me concentrar no trabalho, ou na atenção às outras pacientes, eu consiga esquecer o desconforto que sinto.

Ou então, consiga lembrar…

Apelo para a memória. Os eventos do dia não pareciam trazer nada de significa­tivo. Apenas mais um plantão como residente de primeiro ano. O que poderia ter havido? Meu plantão começara da forma usual. Cheguei ao hospital e conversei com os colegas de cara amassada que estavam se despedindo. Tomei meu café no re­feitório do hospital e subi ao centro obstétrico para a passagem de plantão. Nada diferente dos demais dias do ano, a não ser o fato de que o centro obstétrico es­tava vazio. A noite havia sido movimentada, e não havia mais pacientes para atender. Estávamos em um sábado de maio, 1986.

As horas passavam sem que nada ocorresse para modificar a cor do nosso dia. Tentei recordar uma piada. Uma coisa com advogados. Não lembrei, mas me sur­preendi rindo morfeticamente da última que acabaram de me contar. Plantões são assim: a gente se acostuma com os extremos da atividade. O excesso, a falta de leitos, o ritmo frenético de enfermeiras, doutorandos e pacientes. Tensão, agressi­vidade e ansiedade. Ou então o tédio das salas vazias e dos leitos arrumados. Nessas circunstâncias, o que resta a fazer? Histórias, fofocas, bate-papos e gra­cejos. Piadas interminavelmente concatenadas. Ritmos temáticos: o de hoje era o dos advogados. Um amontoado de médicos e aspirantes a tal espremia-se em uma pequena saleta no coração do hospital. No canto da sala gritava um telefone interno, trazendo resultados de exames e pedidos de informações sobre pacien­tes. Na nossa frente, um quadro negro mostrava graficamente a presença das pa­cientes e o progresso dos trabalhos de parto. Hoje o quadro estava vazio. Há quanto tempo eu já estava ali? Tento fazer mentalmente a conta: três, quatro ho­ras? Estaria chovendo? Lembro-me do espanto com que ficava ao ver pessoas com guarda-chuvas pingando na recepção e lembrava que, quando havia chegado ao hospital, o sol brilhava lá fora. Coisas da reclusão. Do outro lado da sala, um cinzeiro repleto repousava debaixo de um cartaz “Proibido Fumar”. Em um hospi­tal, médicos não obedecem às regras; eles as criam. Estão acima delas.

E o cheiro? Um centro obstétrico tem um cheiro. Já vi prisioneiros descrevendo o odor das cadeias. Nos antigos hospitais do século XVII, o cheiro das carnes de­compostas dos pacientes enclausurados podia ser sentido a quilômetros de dis­tância. Quando estudante, trabalhei durante muitos anos em uma enfermaria de doentes renais, e o odor das diálises nunca saiu das minhas narinas. Também já vi amigos descrevendo o cheiro característico de uma cidade. Mas centros obsté­tricos também têm cheiro. Depois de alguns anos dentro de um, você aprende a reconhecê-lo. Uma mistura de líquido amniótico, odores corporais, suor; o hálito carregado pelo jejum imposto às pacientes, o material esterilizado. Um odor ado­cicado. Não é ruim, é peculiar.

Os sons e ruídos também são característicos. Os sussurros, os gemidos, os la­mentos. A emoção pelo nascimento. As lágrimas silenciosas das mulheres, como que envergonhadas por estarem tão felizes. Os gritos da equipe médica condu­zindo os esforços expulsivos das quase-mães. Agora, mãezinha, força comprida! Não pare, não pare!” O telefone tocando. “Não, não nasceu ainda, mas deve ser daqui a pouco. Acredite, está tudo bem. Não, não podemos informar o sexo por telefone; ordens superiores. Ela está sim, mas está ocupada fazendo um parto, ligue mais tarde.”

E quem é o pessoal que trabalha com o nascimento humano nos hospitais univer­sitários? Nossa equipe era normalmente composta de dois R2 (residentes gradua­dos de segundo ano) e dois R1 (residentes de primeiro ano, recém-formados) que naquele dia éramos eu e meu colega. Além disso, tínhamos doutorandos (alunos no estágio de 6º ano) e estudantes de medicina e enfermagem. Muitos desses doutorandos e estudantes não tinham o menor pudor em dizer que não suporta­vam obstetrícia, e que estavam ali apenas para cumprir seu estágio. Outros se esforçavam para trabalhar bem aos olhos dos residentes, porque isso poderia au­xiliá-los quando fosse feita a seleção de novos residentes para o próximo ano. De qualquer maneira, a fauna obstétrica era heterogênea e diversificada.

De quando em vez ouviam-se gritos na recepção. Maridos exaltados exigiam que suas esposas fossem internadas. Explicavam que moravam longe e que não po­diam ficar indo e voltando toda hora. Gritavam, ameaçavam. Ao lado, procurando ficar alheias à agressividade exaltada, suas mulheres gemiam em voz baixa. A equipe esforçava-se para convencê-los de que ainda não era o momento de inter­nar, ou de que o hospital estava lotado. Ninguém aceita explicações nessa hora. O choque era, quase sempre, inevitável. Já presenciei cenas constrangedoras de pugilato na recepção de maternidades, mas a regra era de que as brigas ficavam apenas nas ameaças. A porta de en­trada era o ponto nevrálgico do CO. Ali o sistema era colocado à prova, e os com­batentes de primeira hora eram chamados à luta.

Muitas vezes me imaginei estar em uma espécie de aeroporto aguardando os mi­grantes. Às vezes os voos são muitos e deixam o saguão lotado. Hoje o dia era de calma. Mentalmente cantei uma música de Suely Costa e Cacaso, talvez prenun­ciando que a calma momentânea do hospital guardava um segredo e uma sur­presa.

Quando o mar tem mais seguedos
Não é quando é tempestade
Não é quando ele se agita
Quando o mar ter mais seguedos
É quando é…. calmaria.

O papo na sala de conforto médico continuava solto. Os resultados do futebol eram esmiuçados por experts. As falhas incríveis, as jogadas sensacionais. O juiz que teria errado. A escolha do estágio que ainda não foi feita. A namorada que não entende tantos plantões. O filho pequeno que tem saudades do pai. As dúvi­das quanto ao que fazer quando a residência acabar. E a insegurança, cruel, sor­rateira, dissimulada. O medo de errar. O medo de que percebam como tenho medo. O pânico de não saber, quando me perguntarem. A pesada máscara de um saber absoluto que não se suporta. Medo, muito medo.

Eu estava no primeiro ano da residência em ginecologia e obstetrícia, e Max, como gostava de ser chamado pelos amigos, costumava me dizer que um resi­dente era o mais perigoso dos médicos. Max era sempre exagerado e dramático. Nossa formação médica tem uma continuidade, que nos leva das aulas tipica­mente colegiais da faculdade de medicina, passando pelo estágio antes da gradu­ação, e continuando-se no trabalho como residente logo após a formatura. Para quem observa de fora, não existe uma clara e óbvia diferença entre os doutoran­dos e os médicos residentes. Usam as mesmas roupas, o mesmo linguajar, os mesmos maneirismos; são subalternos em suas equipes e tem a mesma face adolescente. Por essa razão, continuamos a nos sentir como estudantes mesmo depois de formados, ao mesmo tempo que sabemos conscientemente que não mais somos. Isso nos leva a uma prepotência reativa: lutamos contra a nossa in­segurança com a ferramenta da soberba.

Um residente sempre sabe tudo o que lhe perguntam. Não existe no seu discurso uma negativa. Um modelo que se ergue sobre a ideia de assimetria de saberes precisa estabelecer uma prática de dissimulação que reforce tal postura. Uma en­cenação constante e repetitiva de inequívoca superioridade; uma altivez criada pela magia de um conhecimento que imaginamos possuir. Na minha época, eram famosos os residentes “chutadores”: respondiam qualquer questão com certeza inabalável, que a muitos impressionava. Mais tarde, íamos aos livros para confir­mar e descobríamos que tudo não passava de encenação. Nessa época, criei com Maximilian uma prática de contar histórias fictícias sobre a origem das cirurgias, ao modo das contadas em O Século dos Cirurgiões, de Jurgen Thorwald, mas da maneira mais convincente e lógica possível. Dessa forma, por exemplo, a perine­oplastia, que é a plástica perineal realizada para auxiliar na incontinência urinária, foi em verdade criada no século XIX por um professor de cirurgia da universidade de Pádua chamado Giuseppe Perini (daí o nome do ato operatório), que criou a famosa operação de “levantamento da bexiga” porque sua mulher sofria dessa enfermidade após ter dado à luz a nada menos do que 20 filhos e ser obrigada a carregar sua “bexiga caída” em uma espécie de tipoia. Max contava essa história, que eu inventara durante uma cirurgia, com tanta propriedade e seriedade que muitos residentes realmente acreditaram nela. Nossos “causos” ficaram famosos entre os colegas, mas nos criavam alguns constrangimentos quando realmente queríamos falar a sério. Depois de uma resposta pronta e direta a uma pergunta formulada, alguns colegas nos olhavam com desconfiança, sem saber se era ver­dade ou apenas mais uma brincadeira.

E como se expressa um residente? Lembro de frequentar plantões de pronto-so­corro desde os primeiros anos de medicina. Em um deles, quando devia estar no segundo ano do curso, voltei-me para um paciente do setor de queimados e lhe perguntei um detalhe qualquer do seu tratamento. Ele prontamente me respondeu, mas o residente que me acompanhava observou: “Você já está falando como mé­dico. Parabéns!”. Por muitos anos, eu me perguntei o que ele queria dizer com isso, e porque eu mesmo notara algo de diferente na minha forma de falar. So­mente muito tempo depois, percebi que o que diferenciava um comentário normal de uma observação tipicamente médica em um hospital público era um pequeno detalhe chamado “arrogância”. Essa “particularidade” na minha entonação ficou marcada como o início de um discurso médico que eu tentaria modificar no trans­curso da minha vida profissional, tal qual um velho marinheiro que tenta se livrar da tatuagem de uma paixão fracassada de outrora. Confesso que fiz alguns pro­gressos, mas a noção de uma falsa superioridade essencial é como o sotaque do nosso idioma original, do qual nunca conseguimos nos libertar completamente.

Em um centro obstétrico, temos um dos choques mais evidentes entre cultura e natureza que nossa sociedade pode estabelecer. O momento crítico do nasci­mento é exposto ao julgamento da sociedade, e ali os valores que constituem a matriz do nosso sistema de crenças determinam os rumos que desejamos impri­mir. Nossa sociedade, diante da incerteza que esses eventos produzem, cria me­canismos de defesa para fazer com que eles se adaptem a padrões lógicos de compreensão. O mecanismo básico é o rito. O ser humano, na sua ancestral luta pela sobrevivência, acaba sempre estabelecendo estratégias adaptativas.

Como residente, acabei me acostumando a presenciar a ritualística hospitalar e obstétrica sem questionar suas razões ou me aprofundar em seus significados. Temos um comportamento padronizado e repetitivo. Aprendi a ter um modo de agir ritualístico, automático, irreflexivo nas minhas atitudes médicas, e fazer aquilo que se conforma com o que foi estabelecido pelas figuras mitológicas da nossa formação. Somos doutrinados, construídos e moldados a obedecer a um sistema que se autoperpetua pela repetição sistemática de valores que, primordialmente, são estranhos a nós. A objetualização dos pacientes, sua “coisificação”, a classifi­cação arbitrária em patologias — tudo isso nos é inusitado quando adentramos a faculdade de medicina. Essa é a razão principal do medo dos cadáveres que os estudantes expressam ao ingressar na escola médica. Não existe para eles um “corpo real”, feito de músculos, nervos, ossos e sangue. Os corpos são “natural­mente” dotados de vida, de alma, de erotismo. Essa compreensão lógica da vida acaba sendo derribada durante a formação médica, em que a metáfora principal que explica o funcionamento humano é a máquina, como bem disse Robbie Davis-Floyd, no seu artigo “Obstetric Training as a Rite of Passage”.

Perdemos o status de organismos, assumindo a condição maquinal, cujos técni­cos habilitados são os médicos, que com seu saber científico farão com que essas máquinas funcionem de forma “azeitada”, através da incorporação de tecnologia. Este é o modelo materialista, exógeno, cartesiano e positivista de nossa formação, mas o mais triste é que sequer entendemos isso como um modelo ou paradigma entre outros. Encaramos essa forma de proceder como “a correta”, estabelecendo com esse saber uma postura claramente mística e religiosa. Meras opiniões rece­bem status de dogma; suposições sem nenhum embasamento são vistas pelos estudantes como regras fundamentais para a atenção aos doentes. Nossa forma­ção é caracteristicamente verticalizada, em que o saber se transmite por tradição (o velho professor falando de “seu jeito” de atender e de sua experiência pessoal) da mesma forma como se dá o ensino das funções de cura nas sociedades an­cestrais, mas incrivelmente nos consideramos “cientistas”, enquanto eles são “primitivos”.

A organização hierárquica de um CO também funciona por um sistema de castas. No topo da pirâmide ficavam os professores, que quase nunca eram vistos du­rante os plantões. Funcionavam como uma instância de saber inquestionável, mas na prática inacessíveis. Em segundo lugar os contratados, médicos empregados do hospital para coordenar os plantões obstétricos, que acabavam se tornando os professores “de fato”. Normalmente, não tinham nenhuma afinidade com o ensino e alguns sequer tinham gosto pela obstetrícia. Limitavam-se a determinar condu­tas baseadas no “é assim que eu trato” ou “assim está no protocolo”. Esses médi­cos eram nossa principal referência profissional.

Abaixo dos contratados plantonistas estavam os residentes graduados, de se­gundo ou terceiro anos. Eles tinham mais autonomia. Coordenavam os partos, realizavam cesarianas, indicavam cirurgias no ambulatório, ensinavam residentes de primeiro ano e reproduziam a ritualística que lhes foi ensinada nos anos que passaram na escola médica. Normalmente, incorporavam os maneirismos, as ati­tudes e a postura dos seus professores. Tinham entre eles um assunto repetitivo: “o que vou fazer quando acabar a residência?”.

Eu me encontrava um pouco acima da base da pirâmide de poder médico. Estava há uns poucos meses na residência de ginecologia e obstetrícia do hospital da universidade. Era um “R1”. Os residentes iniciantes não podem acompanhar par­tos sozinhos, muito menos realizar cesarianas ou cirurgias ginecológicas. Fazem as internações obstétricas, atendem no ambulatório, avaliam as pacientes interna­das, prescrevem toneladas de relatórios e obedecem a ordens. Eu era, entretanto, um residente um pouco diferenciado dos demais. Antes de entrar na residência, havia trabalhado em hospitais de periferia como interno plantonista. Durante mui­tos anos, frequentei os mais diversos plantões de emergência e clínicas para pa­gar meus estudos na faculdade de medicina e sustentar a minha família. Fui apre­sentado à obstetrícia nesses plantões da época de estudante, e quando me formei já havia contabilizado mais de uma centena de partos assistidos. Isso era absolu­tamente incomum na minha época, porque a maioria dos meus colegas de obste­trícia se formou tendo visto apenas uma meia dúzia de nascimentos. Como resi­dente de primeiro ano, eu tinha mais experiência em partos do que boa parte dos R2 que deveriam me orientar, o que provocava um certo mal-estar entre eles.

Abaixo dos membros da hierarquia médica estava a enfermagem. Esta se dividia em cores. As enfermeiras tinham a sua cor específica no trajar, assim como as técnicas e as auxiliares. As enfermeiras eram sérias, um pouco prepotentes, e sempre se estabelecia um clima tenso nas conversas com elas. O fato de eu ser casado com uma me deixava mais à vontade, mas eu percebia que havia um “ranço” sempre que médicos e enfermeiras se encontravam para tratar de assun­tos de trabalho. Do ponto de vista do modelo de assistência, muito cedo percebi que a formação das enfermeiras era fundamentalmente a mesma que nós recebí­amos. Tanto elas quanto nós havíamos recebido um ensino fundado na tecnolo­gia, em uma visão cartesiana do paciente. Pouco espaço havia para as questões afetivas e sociais. A ideia (ou a esperança) de que as enfermeiras, por serem mu­lheres, poderiam expressar uma atitude mais feminina em relação ao nascimento logo se desfez nos primeiros contatos com elas. Elas pareciam amarradas na ca­misa-de-força da tecnocracia, que as obrigava a sufocar sua natural feminilidade. Assim também ocorria com as residentes mulheres, que eram frequentemente mais intervencionistas e agressivas nas suas condutas que os seus colegas ho­mens. Ser mulher não lhes garantia uma atitude feminina. Havia algo mais impor­tante que a feminilidade a guiar essas condutas. O que seria?

A quietude do plantão só era quebrada por mais uma gargalhada. Um telefonema de mulher perguntava por alguém que já se fora. Respondi que o plantão havia terminado às oito horas, e que ele havia saído. Desliguei o telefone e fui recrimi­nado de forma zombeteira por meus colegas. “Como você foi dizer isso? Podia ser a namorada ou a mulher dele! Você será o responsável por um divórcio!”. Risadas e comentários maldosos. Nada mais propenso a fofocas e maledicências diversas do que um plantão tedioso. Subitamente a ordem foi desfeita. Uma esbaforida auxiliar de enfermagem aden­trou a sala dos médicos gritando:

— Tem uma paciente que está tendo seu filho na sala de emergência! Por favor, alguém vai lá!

Um silêncio constrangido se formou, deixando gargalhadas congeladas no ar. Por um instante, tudo esperou. Olhei para os lados instintivamente e me dei conta de que naquele momento eu era o mais graduado na sala. Meu colega de residência devia estar avaliando pacientes internados nos andares cirúrgicos, e eu ficara dando cobertura para os partos e avaliações de emergência. Só havia doutoran­dos, estudantes de medicina e eu. Não restava dúvida: essa era uma tarefa que a mim cabia realizar. Ergui-me rapidamente do velho sofá surrado e corri em direção à entrada do cen­tro obstétrico, sem sequer perguntar em qual das duas salas de exames a paci­ente estava. Senti a auxiliar me seguir, mas corri mais do que ela e abri com vigor a porta da primeira sala de exames.

Nada. Nenhuma mulher. Nenhum som. A maca de exames vazia mostrava os len­çóis desgrenhados, mas ninguém estava ali. Dei dois passos para trás e abri a porta da outra sala de urgência, mas a minha surpresa se repetiu. Ninguém. Am­bas as salas estavam vazias.

Olhei para trás e encarei a auxiliar. Seria uma brincadeira? Seria um trote sem graça? Antes que eu pudesse reclamar ou dizer qualquer coisa, ela me avisou:

— Doutor, abra bem a porta da primeira sala. A paciente está lá.

Voltei à primeira sala e abri totalmente a porta de entrada. Foi só então que eu a vi.

Maximilian, muito depois, faria uma interpretação dessa cena. Disse-me que “a paciente precisava ser encontrada onde estava, e não onde você queria que ela estivesse”, numa referência a uma antiga música de Milton Nascimento. Apenas quando abri a porta até o final é que pude enxergar a paciente. Estava acocorada no canto oposto da pequena sala de admissão.

Era uma mulher com mais de 30 anos. Vestia-se de forma muito simples. A pele era escura e os longos cabelos eram presos atrás com um elástico. Olhava para o chão e parecia estar fazendo força. Corri em sua direção e lhe segurei o braço. Com um só movimento, afastei-lhe os joelhos e levantei o surrado vestido de chita. Baixei um pouco minha cabeça e então consegui ver os negros cabelos de um bebê brotando da vulva.

— Minha filha — gritei eu assustado. — Seu bebê vai nascer. Deite!

Meu grito para ela continha um sentido que eu não ainda conseguia perceber. A emergência do momento produzira a irreflexão da minha atitude, fazendo brotar das fissuras abertas do inconsciente um conteúdo ideológico profundo. Minha ex­clamação, e o que se seguiu a ela, foi a encenação de uma luta que se estabele­cia entre dois valores culturais.

Foi então que ela levantou a cabeça e a girou em minha direção. Pude ver-lhe a boca tesa, a face suada e os olhos negros. Ela me olhou, mas de uma forma como eu nunca havia sido encarado. Seu olhar trespassou meu corpo e chocou-se con­tra os azulejos da sala.

Ela me olhou como se eu fosse feito de vidro.

Nada fez. Não se moveu; não me obedeceu. Seu olhar, parado no infinito próximo da parede, parecia querer dizer algo. Mas o quê? Parecia nada escutar, nada en­tender, nada pensar. Para ela foi como se eu não estivesse ali.

Uma enfermeira abriu um pacote com campos esterilizados. Peguei um deles e coloquei próximo à vulva da mulher. Pedi uma luva, mas não havia nenhuma por perto.

Uma nova onda de contração tomou conta do seu corpo. Olhei novamente para a vagina e percebi a cabeça do bebê dilatando ainda mais o períneo. Ordenei que me trouxessem uma tesoura para realizar a obrigatória episiotomia, mas não houve tempo para isso. Ainda tive oportunidade de dizer-lhe: “Não faça força ainda. Espere!”

Inútil. Novamente ela não escutou minhas ordens. Mais uma força e… nasceu.

Minhas mãos despudoradamente nuas tocaram o calor úmido dos negros cabelos do bebê. Senti o visgo dos líquidos quentes molhando-me os dedos. Pela primeira vez, experimentei nas mãos a realidade crua de um nascimento. Essa sensação nova me trouxe um misto de assombro e medo.

Nasceu na contramão, atrapalhando o sábado, pensei. Desceu ao mundo cho­rando o menino, como eu sempre me habituara a ver, acreditando ser esta a única forma de chegar ao nosso convívio. Sua mãe, acocorada à minha frente, reclinou a cabeça para trás e percebi as batidas do seu coração nos vasos do pescoço suado. Estava exausta. As enfermeiras, alunos e doutorandos deixam a sala ainda menor. O cordão umbilical, ainda preso ao útero, é cortado rapidamente, e do cor­redor consigo escutar os gritos do pequeno bebê ao ser levado para a área de neonatologia.

Estava quase terminado. Aguardei mais alguns instantes e tracionei o cordão um­bilical restante, ainda grudado à placenta. A mulher contraiu o rosto e notei que a placenta estava descolando. Mais um esforço, um puxão. Pronto. A placenta ver­melha e carnosa foi expulsa sem dificuldades. Até aquele momento, a paciente permaneceu de cócoras. Negou-se a se movi­mentar. Mantinha as palmas das mãos voltadas para baixo a tocar a laje fria da sala.

— Por que você não veio antes para o hospital? Olhe só o transtorno que você causou! Esse não é o local adequado para se ter um filho. Aqui não temos apare­lhos, nem material adequado. Seu nenê nasceu no chão. Menos mal que consegui colocar um pano estéril, senão ele nasceria na sujeira!

Minhas palavras eram de franca inconformidade. As enfermeiras presentes con­cordaram e continuaram a bombardear a mulher com perguntas e críticas. “Quem está com você? Onde está seu marido? Onde estão seus documentos?” Como uma mulher entra no centro obstétrico e causa tal confusão? Ela nada dizia. Man­tinha-se em silêncio. Estava agora com a cabeça baixa e os olhos fechados.

— Espere mais um pouco. Vou examiná-la para ver quantos pontos vai precisar.

Já calçando um par de luvas, abri os lábios vaginais à procura de lacerações. Imaginei que certamente as encontraria; afinal, não houve tempo para uma episi­otomia, e sem dúvida seriam necessários inúmeros pontos de sutura para con­sertar os cortes erráticos que a natureza determina quando os partos não sofrem intervenções. O exame do períneo reservava mais uma surpresa. Nenhum corte, nenhuma lace­ração. Os lábios vaginais levemente inchados permitiram a passagem do bebê sem nenhum traumatismo. Que estranho!

— Você teve muita sorte — arrematei eu. — Não vai precisar levar pontos.

Levantei-me da posição de joelhos que até então eu me mantinha, e ofereci-lhe minha mão em auxílio. Ela se segurou firmemente em mim e ficou de pé. Uma maca a aguardava para conduzi-la à sala de recuperação pós-parto. Pronto. Es­tava tudo acabado. Deitou-se na maca e olhou mais uma vez para mim. Nada disse, apenas ficou me olhando enquanto as auxiliares a carregavam para fora da sala.

Por que seu olhar parecia me atravessar, sem se fixar em mim? Por que ela nada disse? Por que ela não cooperou com o parto, obedecendo minhas orientações? As lembranças dos eventos do dia não foram de grande utilidade para diminuir a minha angústia. Não foi o sábado que me causou a ansiedade, nem o susto de um atendimento imprevisto. A resposta para as minhas perguntas se encontrava na­quela pequena sala de exames. Algo que ocorrera ali seria a resposta.

Voltei à sala e ela ainda estava suja. Pensei na “sujeira” que um parto desses pode produzir. Sangue, líquido amniótico, campos cirúrgicos manchados de ver­melho vivo. No canto da sala, um borrão verde-escuro me mostrava que o recém-nascido evacuou logo após nascer. Parei para pensar o que verdadeiramente é “sujeira”, mas a compreensão desse conceito só viria à minha cabeça muito tempo depois.

A resposta tinha que estar ali.

Meu pensamento se fixou no olhar da mulher. Ele estava ainda impregnado na minha retina. Por que ela nada me disse? Uma enfermeira passou por mim e co­mentou, enquanto recolhia o material do chão da sala: “Que coisa, não é? Quase que não deu tempo para atender aquela gestante. Já pensou se o senhor não es­tivesse por perto?”

Sorri para ela e me mantive pensativo. E se eu não estivesse por perto para assis­tir esse parto, como seria? E se ela tivesse seu filho sem meu auxílio, o que teria acontecido? Meus olhos pararam em um ponto qualquer da sala e ficaram estáticos. A per­gunta ecoava na minha cabeça.

“Sem minha presença, como seria?”

Comecei lenta e dolorosamente a entender. Olhei para os lados, temendo haver testemunhas dos meus pensamentos. Encontrava-me nu, atirado ao chão do meu Nabucodonosor. Como o renascido Neo, senti-me envergonhado pela súbita nu­dez. A farpa na mente dilacerava. Pensei mais uma vez nos eventos da pequena sala e percebi, aterrorizado, que tudo o que eu fiz desde que entrei naquele local para atender a uma emergência foi atrapalhar uma mulher a ter seu filho.

Tudo.

Todas as minhas atitudes foram prejudiciais ao bom andamento de um parto. A minha ansiedade ao entrar na sala, meus gritos, minha ordem para que deitasse, meus pedidos para que não fizesse força, minha tentativa de abrir uma episioto­mia injustificável e não consentida, minhas reclamações em voz alta, a falta de respeito e carinho com uma mulher que acabava de ser mãe. Perguntas fora de hora, xingamentos. Equívocos, erros, absurdos.

A resposta à pergunta da enfermeira é que, se eu não estivesse por perto, aquela mãe provavelmente teria mais tranquilidade para ter seu filho. A dureza dessa resposta, e a dificuldade em admitir, é que tinham produzido a minha inquietude e a minha ansiedade. Agora produziam a minha vergonha. Mas por que eu agira daquela maneira? Afinal, as pessoas presentes acharam que eu agi corretamente, que fiz o que se espera de um médico. Ninguém ali pa­rece ter percebido o que eu percebi. Como Paulo, na estrada de Damasco, apa­rentemente fui o único a ficar cego com a luz ofuscante dos fatos. Tudo o que eu fiz foi obedecer aos modelos estabelecidos. Estaria eu sendo injusto, duro demais comigo mesmo?

Naquele exato dia eu percebi que algo muito errado existia no meu proceder como obstetra e que eu não poderia admitir que se mantivesse. Entendi que um médico não pode ser um obstáculo ao bom andamento de um evento como o nascimento humano. Tive a noção clara e forte de que eu estava ali muito mais para aprender do que para ensinar algo às mulheres. O olhar daquela mulher havia me ensinado que, a exemplo do que escreveu Frederick Leboyer – médico francês que, com a publicação de “Birth Without Violence” de 1975, foi o deflagrador de uma revolu­ção na forma como recepcionamos os bebês – um médico deve ser imóvel, está­tico e invisível. Deveria ser como que feito de vidro, transparente mas presente, para que sua presença não venha a atrapalhar os ditames sábios da natureza. Minha conduta arrogante e prepotente nada mais era do que a manifestação da minha gigantesca insegurança diante do nascimento. Mesmo entendendo a im­portância de um auxiliar de parto, seja ele médico ou parteira, não poderia jamais esta presença significar o controle do processo. Não nos cabe controlá-lo; apenas auxiliá-lo. Como eu tive a oportunidade de ver na camiseta de uma parteira aus­traliana:

Imagine que você é uma parteira
E está assistindo o parto de alguém
Trabalha bem, sem exibicionismo e espalhafato.
Facilite o que está acontecendo,
Ao invés de pensar o que deveria estar ocorrendo.
Quando este bebê nascer,
Sua mãe certamente lhe dirá:
“Fomos nós duas que fizemos”.
(Lao Tzu – 500 aC)

O nascimento humano conjuga em um só momento os eventos mais temidos das sociedades em todos os tempos: nascimento, sexualidade e morte. Quanto mais temidos eles são, maior será a necessidade de ritualizá-los. Os rituais que aplica­mos ao nascimento nos levam a criar a impressão ilusória de que este está sob nosso controle. Internamos mulheres em hospitais, tiramos-lhes a roupa, raspa­mos seus pelos, lavamos seus intestinos “contaminados”. Depois, elas são colo­cadas em camas onde um monitor invade a privacidade do seu útero, para que escutemos o coração de seus bebês. Rompemos a bolsa de águas, colocamos ocitocina para que a paciente ganhe seu filho dentro do tempo que nós estipula­mos. Diante da dor causada pela solidão, medo e tensão, estabelecemos uma analgesia peridural, que via de regra termina com a aplicação de fórceps ou mesmo uma cesariana, pela dificuldade de essa paciente colaborar com um parto que há muito deixou de ser seu. Somos, entre outras coisas, escravizados ao re­lógio, que na parede diz que o nascimento deve ocorrer dentro de um prazo pré-estipulado de tempo. Elas devem se adaptar ao sistema, e não o contrário. Não há lugar para um tratamento centrado na pessoa, e pouco importam as particularida­des, características e a subjetividade dessa mulher.

O parto deixou de ser um evento das mulheres, sendo sequestrado pela biomedi­cina e encenado através dos rituais hospitalares contemporâneos, mantendo e transmitindo nosso sistema profundo de valores.

Foi Robbie Davis-Floyd quem pela primeira vez mostrou que essas condutas, chamadas de “rotinas”, não eram obra do acaso. Sequer se poderia dizer que são comportamentos determinados pelo hábito ou com base em evidências científicas em favor das gestantes. A multiplicidade de procedimentos médicos declarada­mente agressivos nas maternidades ocidentais nos mostra que isso não é ver­dade, a começar pelas cesarianas descontroladas. Existe um sentido em todas essas atitudes, que ultrapassa o que podemos enxergar. São rituais inconscientes que construímos para enaltecer nossos valores básicos. Erguem-se sobre os pila­res constitutivos da obstetrícia contemporânea: a compreensão cartesiana do mundo, que separa corpo e alma, e a defectividade essencial da mulher. A obste­trícia criou, a partir desse modelo filosófico de compreensão do feminino, a neces­sidade de técnicas e equipamentos que pudessem auxiliar essa mulher no mo­mento de parir, agora entendida como defeituosa e propensa a problemas, assim como Robbie Davis-Floyd descreveu em Birth as an American Rite of Passage.

Minha atitude na sala de exames refletia exatamente essa postura. Inconsciente­mente, eu reproduzi todo o arcabouço teórico que eu absorvera da escola médica e na minha formação pessoal como obstetra. Minhas condutas ao atender a pobre mulher tinham esses valores como norte:

Uma mulher não pode ter seu filho sem ser por mim.
Uma mulher é incompetente para escolher a posição que mais lhe convém para parir.
Uma mulher precisa ter seu períneo cortado para que seu filho possa nascer.
Uma mulher não sabe como conduzir as forças que farão seu bebê entrar nesse mundo.
Mulheres são, em suma, seres inferiores, incapazes e mal feitas.

Seria esse realmente o modelo de mulher que eu tinha? Entendi que eu deveria fazer uma escolha, e a primeira grande lição a ser aprendida seria a humildade. Ou eu modificava minha conduta como profissional, ou deveria escolher outra pro­fissão.

Qualquer das alternativas me traria dor e sofrimento, porque eu sabia o que pode­ria acontecer a um médico que resolvesse descumprir uma ordenação superior. O tratamento seria o mesmo oferecido a um herege e, na verdade, era exatamente no que eu estaria me tornando. A medicina positivista contemporânea comporta-se como a sucedânea da religião no imaginário social, sendo os médicos seus clé­rigos prepostos e controladores. Ela não perdoa aqueles que se afastam de sua linha ideológica, principalmente aqueles que criticam o modelo tecnocrático de compreensão da realidade.

Durante boa parte da minha vida senti claramente a crueldade do tratamento de “herege ameaçador” a mim imposto. Jamais fui perdoado por me desviar do cate­cismo dogmático das convicções médicas contemporâneas, mesmo que o meu proceder estivesse escudado nas mais claras evidências científicas. Por outro lado, minha admiração pelas mulheres e minha paixão pela magia do nascimento me impediam de desistir. Minha decisão estava tomada. Morpheus disse a Neo, na eterna 1999, que “não há caminho de volta, mas, mesmo que houvesse, você voltaria?”

No outro dia, ao sair do plantão, encontrei Maximilian no refeitório do hospital. Corri em sua direção e lhe disse:

— Max! Uma mulher ganhou seu filho na sala de emergência no plantão. De cóco­ras e praticamente sozinha. Lembra que um dia você me falou que…

— Calma, Ric. Eu já sei de tudo. Nadine me contou. Ela pariu de cócoras então? Que tal pareceu? Pois acho que você precisa ler um livro, que talvez abra seus horizontes.

Max abriu sua bolsa estilo hippie e de lá tirou um pequeno livro de capa alaran­jada. O título era Parto de Cócoras – Aprenda a Nascer com os Índios, do obstetra paranaense Moysés Paciornik. Peguei nas mãos o livro amassado e cheio de anotações e mais uma vez encarei Max, que sorria para mim.

— Leia e depois vamos conversar.

Agradeci o empréstimo e girei nos calcanhares em direção à porta de saída. Havia um dia ensolarado esperando por mim, e duas crianças aguardando um pai que retornava diferente para casa. Antes de sair, escutei a risada marota de Max. Vol­tei-me para um aceno de despedida e ainda tive tempo de escutar as palavras do colega.

— Seja bem-vindo, Ric. Patu Saleh!

Num futuro próximo eu escutaria a mesma frase, com palavras semelhantes, bro­tando da tela de um cinema lotado. Lá estaria Morpheus, dizendo ao “predesti­nado” Neo: “Bem-vindo ao mundo real”. Mas ainda era cedo, muito cedo para en­tender os meandros de um sistema de crenças que eu apenas estava iniciando a questionar. O Simulacrum produzido pela “Matrix obstétrica” ainda estava para ser descoberto. Naquela manhã de maio do ano de 1986, iniciei minha jornada de obstetra huma­nista, que mesmo com todas as dores, incompreensões, agressões e dramas, nunca pensei voltar atrás. Àquela pobre gestante, a minha dívida eterna. Seu olhar ainda presente nas mi­nhas lembranças é a marca indelével da força e da dignidade que cada mulher traz consigo no momento de parir.

Deixe um comentário

Arquivado em Capítulos Livro

Deixe um comentário