Muitas pessoas entraram em contato comigo durante a grande enchente que passamos para saber como estávamos aqui na Comuna. A todos expliquei que a localização onde nos encontramos nos protege das chuvas. Estamos em um vale, entre os morros que circundam a cidade de Porto Alegre, longe do rio Guaíba, e nossa topografia nos coloca a 70 metros acima do nível das águas. Somos inatingíveis pelo rio.
Curiosamente, quando há 10 anos surgiu a ideia de criarmos uma comunidade intencional fomos visitar vários lugares, na nossa cidade e nos arredores. Um deles foi Viamão – cidade ao lado da capital do RS – numa área muito maior, mas cujo acesso era muito dificultoso e longe do centro de ambas as cidades. O preço também era bem maior e inalcançável pelas nossas parcas economias, e por isso esta opção foi descartada. Outra propriedade que fomos visitar era na cidade de Eldorado do Sul, cidade que se situa logo após atravessar a “ponte do Guaíba”, saindo de Porto Alegre em direção à parte sul do Estado. Era um condomínio muito bonito, com vizinhos famosos, e uma vista maravilhosa do rio que separa aquela cidade da capital. A distância e o preço também nos impediram a compra, e por esta razão acabamos desistindo.
Nossa insistência nos fez encontrar, algum tempo depois, o local de agora, onde já estamos estabelecidos há 7 anos. Quando aqui chegamos, este era um bairro pouco valorizado, ainda que dentro de Porto Alegre, mas muito verde, com matas nativas e um riacho ao fundo, porém com problemas estruturais sérios: sem acesso à internet – inclusive sem telefonia celular – e sem via de acesso adequada, pois a única forma de chegar ao local era através de uma estrada vicinal de saibro, totalmente esburacada, que se tornava completamente intransitável durante as chuvas. Passaram-se os anos e estas condições foram aos poucos ajustadas; hoje temos uma rua com piso novo e acesso à internet de boa qualidade. Porém, não fossem estas péssimas condições iniciais e seria igualmente impossível comprar o local onde erguemos a Comuna. Ou seja: fomos bafejados pelo hálito doce da Deusa Álea – a divindade dos eventos aleatórios – e tivemos muita sorte de não fazer nenhuma das escolhas que, no futuro, se mostrariam desastrosas.
Quando me ligam perguntando como estamos aqui em decorrência das enchentes que castigaram o Estado, eu imediatamente lembro que o local que visitamos há alguns anos hoje está submerso; o bairro inteiro, que fica próximo da margem do rio, praticamente desapareceu, assim como boa parte da cidade de Eldorado do Sul. Cada vez que me perguntam eu paro para pensar nas coincidências da vida e nas decisões fortuitas – ou não – que tomamos. Poderíamos estar agora lamentando a perda de tudo que construímos em mais de 40 anos de trabalho. Poderíamos estar confinados ainda na casa de parentes ou em abrigos, tendo nossa comunidade destruída pelo avanço das águas. Por esta razão, agradeço as coincidências que nos protegeram desta tragédia. Agora consigo, mesmo que superficialmente, ter uma ideia do quanto esta catástrofe abalou a vida das pessoas que perderam tudo nesta enchente. Espero que a dor que sentimos – de forma direta ou indireta – seja capaz de mobilizar a todos para as reformas necessárias em nível local e sistêmico para que este tipo de catástrofe não se repita. Todos os indicadores apontam para o retorno – em breve!! – deste tipo de acontecimento climático, e precisamos estar preparados para o próximo revés. E que o Rio Grande do Sul possa fazer as escolhas políticas que não fez, principalmente motivados que estávamos pela retórica neoliberal e fascista que se apossou do Brasil.

