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Coco

Eu acredito que Coco (ou “A Vida é uma Festa”) é, disparado, o melhor filme da Disney/Pixar. Eu já assisti umas dez vezes com os meus netos. A história é toda lógica, bem construída, coerente e trata com leveza da questão da morte e da memória. Enfatiza a importância do perdão e o significado da família. Um filme maravilhoso.

Existem muitas formas de analisar este filme, e a mais natural é apreciar a linda homenagem feita ao México e a cultura deste país. Entretanto, eu gosto de analisar outro aspecto relevante: sua teleologia espiritual. O filme descreve basicamente dois planos: o plano físico onde Miguel vive com sua família e o plano dos mortos ou espiritual, onde vivem seus antepassados mais próximos e recentes. Porém, os antepassados mais antigos, aqueles dos quais ninguém mais se lembra (como o tataravô do seu bisavô), acabam “morrendo” no plano dos mortos e indo para um lugar “desconhecido”, aparentemente sem volta. O filme deixa essa dimensão última como uma pergunta sem resposta. Há um personagem que, muito enfraquecido e desenergizado, acaba falecendo no plano dos mortos e tornando-se apenas uma luminescência (como se um corpo etéreo fosse dissolvido e sobrasse apenas o princípio espiritual). Para a mitologia do filme, isso ocorreria quando ninguém mais no plano físico se recorda deles e a eles presta homenagem no “día de los muertos”. Para alguns essa “morte” poderia ser entendida, se assim o quisermos, como a volta ao plano físico, no processo de reencarnação, segundo as concepções espiritualistas. Seria uma perspectiva bem razoável.

Já o plano dos mortos – onde estão os parentes de Miguel – seria como um “purgatório” católico ou o “umbral” dos espíritas. Ou seja, um plano imediatamente adjacente a este mundo, próximo em seus valores e conexões. O filme descreve também a possibilidade de algumas pessoas entrarem em contato com os mortos, como fez Miguel ao tocar o violão de Ernesto de la Cruz (o famoso músico do enredo) no dia dos mortos. Isso ocorre em condições especiais – como o “channeling” ou a mediunidade, que permitiria o contato entre os planos.

Outro ponto importante do filme é o personagem Dante, o cãozinho que acompanha Miguel no mundo dos mortos. O filme mostra que estes cães trafegam com naturalidade entre os planos, como se fosse um só, mostrando como os animais domésticos têm uma sensibilidade apurada às energias sutis do plano extrafísico, como é comum escutarmos no universo de crenças populares. Dante é um cão da raça Xoloitzcuintli, mais conhecido como Xolo. Seu nome só pode ser em homenagem à Dante Alighieri, poeta, escritor e político florentino que viveu entre os séculos XIII e XIV e escreveu a Divina Comédia, livro onde descreve sua aventura após atravessar o Aqueronte e adentrar o mundo dos mortos. O filme é muito respeitoso com a cultura mexicana, passando por “Lucha Libre” (sou apaixonado), Frida Kahlo, os Mariachis, Diego Rivera, seus grandes músicos, artistas, cidades, arquitetura e até a turma do Chaves em alguns cameos que aparecem rapidamente.

Como todo grande país, as metrópoles mexicanas acabam se amalgamando à estética das grandes cidades mundiais. Eu achei o “DF” parecido em gigantismo com São Paulo, apesar das óbvias diferenças. Porém, é nas cidades menores, conversando na rua – no meu caso com parteiras tradicionais – que podemos perceber a riqueza cultural deste país, suas idiossincrasias, seus dramas, assim como os problemas estruturais daquela sociedade, que são em vários aspectos semelhantes aos problemas que enfrentamos no Brasil. Minha amiga Robbie, que fez o trajeto Austin – Laredo – Nuevo Laredo, atravessando de carro a fronteira entre Estados Unidos e México dezenas de vezes (inclusive comigo), sempre dizia que entrar no México pela fronteira texana é uma gigantesca experiência cultural. Dizia ela (que é gringa raiz): “De um lado tudo é limpo, organizado e visceralmente feio; você cruza a fronteira e tudo passa a ser desorganizado, sujo e lindo”. Nesse aspecto, o México é mesmo um país irmão do Brasil – tán lejos de Dios y tán cerca de los gringos – mas eles ainda carregam a cruz dessa fronteira física. Nós, pelo menos, estamos geograficamente mais distantes.

Há poucos dias eu falava para os meus netos mais velhos (de 11 e 8 anos) da nossa viagem ao México em 2019, quando eles ainda eram bem pequenos. Queria que eles nunca esquecessem essa experiência para poderem voltar um dia e reviver aquelas experiências. Oliver, o mais velho, lembra bem de Chichén itzá, de Koba, de San Miguel de Allende, de Tepoztlán (e do Tepozteco) e da Cidade do México. O menor lembra apenas dos cenotes e Isla Mujeres. Mas eu sei que o México, mesmo que ainda não o percebam, tocou suas almas. Acho que, apesar dos aspectos instigantes da teleologia espiritualista do filme, essa é a principal razão por eu gostar tanto de “Coco” da Pixar: o filme foi muito feliz em mostrar a vastidão da cultura mexicana. Quando somos obrigados a escutar um demagogo idiota como Trump desmerecer os imigrantes do México isso me dá uma profunda tristeza, em especial por perceber a decadência gritante do Império americano e sua cultura consumista e a ignorância constrangedora que esse tipo de desprezo demanda.

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