
O Grito da Glamour Girl
Meu velho carro driblava os obstáculos como um verdadeiro craque do asfalto, mas as circunstâncias do caminho me obrigaram a diminuir a marcha. Mulheres agoniadas aguardavam seus filhos fazendo fila tripla em frente à escola, enquanto escutavam música nos automóveis. O fluxo, que já era lento, aproximava-se da estagnação. Minha impaciência me fez contrair o cenho, mas percebi que a excitação do reencontro com os colegas era mais perturbadora do que as agruras de um trânsito caótico. Quinze anos já se haviam passado. Quanta vida, quantas histórias haveria para contar. Como estaria Nadine? Sabia, por amigos em comum, que ela trabalhava no mesmo hospital em que fizemos residência. Sabia também que estava só, em uma solteirice que poucos compreendiam. Maximilian acabara de formar sua filha mais velha, e na cerimônia de formatura é que havíamos nos encontrado pela última vez. Com Max, também tive poucos encontros nos últimos anos, mas é difícil para uma figura ímpar como ele passar despercebido. Quem não me falava dele por ele me perguntava.
O tráfego morosamente se refez próximo ao velho colégio marista. Os poucos agentes de trânsito não conseguiam dar conta da balbúrdia de carros, motocicletas e escolares movendo-se em todas as direções. Pisei no acelerador para vencer a inércia quando um espaço se abriu entre meu carro e o micro-ônibus que se encontrava à frente. Subitamente, quando a rotação do motor começava a aumentar, uma criança surgiu correndo, cruzando inadvertidamente à frente do meu carro. Reflexamente, tirei o pé do acelerador e pisei no pedal do freio, produzindo um guinchar de pneus e um baque, que projetou meu corpo à frente. Ao ver a imagem do menino passando perigosamente na minha frente, gritei: “Ei, moleque! Preste atenção! Olhe quando atravessa!” Ainda tive tempo de olhar a criança transpor a rua e alcançar a calçada oposta. De lá, na companhia dos colegas, lançou seu olhar para mim, entre assustado e envergonhado.
Meu grito irrefletido me trouxe à memória uma cena, que brotou das minhas lembranças da época logo após a formatura na faculdade de medicina. Aconteceu poucos meses antes do “incidente” na sala de emergência. Eu ainda era um residente tecnocrata, inseguro e imaturo, tentando imitar da melhor maneira possível as atitudes e posturas de meus professores. É uma história do tempo em que eu, Max e Nadine éramos colegas de residência no hospital-escola onde por alguns anos trabalhamos juntos. É também a história de um grito, tão irrefletido como o que eu acabara de dar, mas muito mais profundo e significativo, e que de alguma maneira modificou minha forma de entender o intrincado mecanismo de sentimentos e emoções que brotam quando trabalhamos na cumplicidade do nascimento humano.
Na nossa época de residência, havia um médico contratado do departamento de obstetrícia que era recém-descasado.
Rico, filho de uma família de médicos famosos, tinha sempre o carro da moda, as roupas da moda e — depois da separação — as meninas da moda. Era possuidor de uma postura tipicamente padronizada de atuar em medicina, o que não causava nenhuma estranheza. Era apaixonado pelas novas conquistas tecnológicas incorporadas à gestação e ao nascimento, em especial as ecografias e as analgesias de parto. Uma vez me disse que eu deveria aprender a manejar adequadamente o fórceps porque minha geração de obstetras usaria as peridurais de uma forma quase que obrigatória e, dessa forma, o fórceps de alívio seria um instrumento muito mais importante do que costumava ser. Dizia isso de uma maneira absolutamente honesta, sem perceber o que algum tempo depois eu descobriria ser a equação perversa da tecnocracia. “Criamos o veneno para depois vender o antídoto”, como sempre me repetia Max. Quis o destino zombeteiro que meu colega contratado viesse a falecer anos depois de uma complicação anestésica advinda de uma cirurgia plástica estética. Costumava levar suas “namoradas” ao plantão de obstetrícia do hospital para lhes mostrar os partos. Sendo ele um quase quarentão, adorava levar as namoradas de 20, 25 anos para mostrar “como nasciam os bebês”. A corja de invejosos do CO costumava dizer que depois disso ele saía do hospital e demonstrava como eles eram feitos. Pura maledicência.
Em uma dessas visitas, entrou no plantão obstétrico uma dessas “namoradinhas”. Era uma linda jovem, de pouco mais de 20 anos. Tinha olhos verde-água (era tudo o que eu podia ver por detrás da máscara e do gorro). Tinha a pele clara, o que é muito comum por essas bandas de colonização alemã e italiana. O corpo era um elogio à perfeição das formas, e só depois fiquei sabendo que se tratava da Glamour Girl recentemente eleita. O decote da roupa cirúrgica era bem generoso de forma que… bem, estou fugindo do assunto.
Naquele dia, eu é que estava incumbido dos nascimentos que chegavam na zona restrita, onde ficavam as salas de parto, e estava atendendo uma gestante nos seus puxos finais. Deitada de costas, amarrada na mesa, olhava para o teto e tentava fazer suas forças da melhor maneira possível. Na sala repleta de estudantes e enfermeiras, tratava-se de apenas mais um parto. A mulher suava, ofegava. As enfermeiras punham-se atrás dela e gritavam coisas como “força mãezinha”, “força comprida”, “assim não, você está fazendo tudo errado”. Banalidades do atendimento institucional. Eu evidentemente em nada ajudava, e o melhor que fazia era não engrossar o coro de gritos da sala. Lá pelo terceiro ou quarto puxo, percebi que um belo exemplar feminino adentrava a sala e postava-se no canto da mesma. Era a convidada de olhos verdes. Voltei-me para ela e disse um “boa noite” seco. Já havia sido comunicado pelo meu superior que ela queria assistir a um parto, e que eu procurasse ser gentil com ela. Ok,pensei, gentileza é comigo mesmo.
Lá estava ela. Olhava para os demais presentes na sala com um misto de excitação e apreensão. Juntou as mãos ao peito, como que a rezar, e silenciosamente ficou a observar. Tinha o olhar fixo no períneo sangrante da paciente (sim, havia uma episiotomia aberta) e seus belos olhinhos verdes se comprimiram diante da visão do sangue escorrendo. Mas não disse nada, talvez porque tivesse sido avisada para não atrapalhar.
Minha paciente continuava seus esforços para expulsar o bebê. Deitada com as pernas presas nas perneiras da mesa ginecológica, sua dificuldade era redobrada, mas eu era ainda um pobre obstetra iniciante. Tinha fé nos postulados que me guiavam; acreditava ser o parto um evento médico, controlado por especialistas, que dominavam a técnica de forma apurada, com o objetivo de salvar as mulheres de uma natureza cruel. “A natureza é uma má obstetra”, já dizia um antigo adágio obstétrico, e assim eu fui doutrinado na escola médica. Por essa razão, minhas pacientes deveriam ficar na posição que mais me facilitava a intervenção, a manipulação e, em última análise, o auxílio que eu lhes poderia oferecer. “Mulheres parindo são como equilibristas em uma corda bamba no 40o andar… e você é a rede”, disse-me uma vez um professor de obstetrícia, incorporando nessa frase a violência do conceito de “inevitabilidade do desastre”, tão admirada pelos estudantes de medicina. Essa era a base ideológica do ensino obstétrico: “Mulheres não são dignas de confiança”. Santo Agostinho realmente deixou seguidores em todas as áreas da cultura.
Max olhava para meus partos iniciais com a delicadeza silenciosa dos sábios. Preferia não me aborrecer com algo que eu ainda era incapaz de compreender. Entretanto, seu silêncio me inquietava. Parecia querer dizer algo com sua mudez, e eu me irritava cada vez que ele via uma cena como esta e apenas sorria para mim. Um, dois, três… estava quase nascendo. O cabelo negro do nenê contrastava com o rubro sangue que brotava do períneo de sua mãe. Ele parecia esforçar-se, mexendo sua cabecinha para frente.
— Agora, mãezinha… é sua chance. Ele vai nascer agora. Força, coragem! — gritei.
Mais uma força e…. pronto. Nasceu uma… menina! Antes que a paciente pudesse expressar uma palavra qualquer, de alegria ou alívio, escutei algo que por muitos anos ainda ecoa nos meus ouvidos.
Um grito.
Um grito lancinante. Um grito do fundo, das entranhas, dos porões dos nossos sentimentos. Um berro incontido, impulsivo. Um som profundo, do âmago, da escuridão das nossas emoções inconfessas. Olho para trás, entre assustado e iniciando a ficar contrariado.
Era a bela menina de olhos verdes. Trazia as mãos a segurar a cabeça, que pendia para frente. Seu corpo se curvara, e apoiava as nádegas na parede atrás. Os joelhos se dobraram. O gorro estava levemente deslocado, mostrando uma bela madeixa de cabelos dourados a lhe cair no rosto. As lindas esmeraldas que trazia nos olhos estavam umedecidas pelas lágrimas que escorriam pela face e molhavam a máscara cirúrgica. Já não chorava mais; soluçava. Uma enfermeira ajudou-a se erguer, e abraçada a ela continuou a chorar, baixinho. No centro da sala, a mãe, alheia ao que estava acontecendo, já afagava seu filho nos braços. Gritava junto com seu bebê, dizendo “É uma menina, uma menina”. Não havia pai naquele cenário. Certamente eu era o único homem a presenciar aquela cena. Chamei a auxiliar ao meu lado e lhe disse em voz baixa, mas com indisfarçável irritação:
— Por que ainda não tiraram essa menina da sala? Não perceberam que ela não tem preparo emocional para participar de um parto?
A auxiliar então levou a menina, ainda chorosa, para fora da sala de parto. Apalpei o útero para sentir-lhe a firmeza depois da saída da placenta. Parecia firme o suficiente para promover a parada de sangue que brotava da ferida placentária. O bebê já estava no berçário, junto aos neonatologistas, e a mãe mantinha o olhar preso no teto, talvez imaginando como estaria seu filho e revivendo na memória os momentos que cercaram o evento que acabara de ocorrer.
Resolvi trocar minhas luvas antes de iniciar a sutura da episiotomia. Ainda lembro a ritualística para isso, mas não tenho nenhuma saudade desse tempo de obscuridão na minha prática. A episiotomia era uma das rotinas irrefletidas, automáticas e sem embasamento que realizávamos cotidianamente, sem que tivéssemos uma discussão sequer sobre a racionalidade do seu uso. Minha conduta era realmente robótica, mas eu era um habitante da Matrix que sequer tinha noção das forças que controlavam minha atitude e minhas condutas. Antes de colocar o novo par de luvas esterilizadas, saí da sala para ver o que estava acontecendo com a garota. Ela já estava recomposta, mas ainda tinha seu rosto vermelho. O contraste do verde dos seus olhos com o vermelho do seu pranto fazia uma combinação de inesquecível beleza. Suspeito que muitas vezes fiz minha mulher chorar apenas para desfrutar desse deleite estético. A bela Glamour Girl olhou-me e, entre soluços, disse:
— Obrigado, doutor, por me deixar participar do parto. Desculpe minha reação. Desculpe o meu grito e as minhas lágrimas. É que… sabe… é que…
— Pode falar… — falei, lançando-lhe um sorriso de pseudobenevolência.
— É que é tão lindo! Uma criança nasceu. É tão maravilhoso; tão fantástico. Um ser humano nasceu. Que coisa linda, linda! É incrível…
Estava sorrindo. Um sorriso infantil. Seus olhinhos verdes brilharam, e pude ver a criança por trás da sensualidade de uma bela mulher.
— Ok, entendi — disse eu. — Fique calma. Não se preocupe, quase ninguém notou.
Dei-lhe um abraço, e percebi que ela voltava a chorar. Amadores, pensei eu. Quando veem isso, perdem a compostura. Gritam, se escabelam, choram…
Entretanto, as lágrimas e o grito da bela menina haviam produzido uma modificação que eu ainda não havia avaliado por completo. Eu estava atordoado pela impressão sonora, mas muito mais pelo seu significado profundo. Queria saber porque alguém se deixava impressionar dessa forma por um evento que para mim aparecia tão banal e corriqueiro. O que havia de “especial” e “maravilhoso” que me escapara? O que havia escondido por trás do grito da Glamour Girl?
Voltei para a sala para terminar a minha cirurgia ainda sem entender as razões da minha inquietude. Ainda havia uma episiotomia a ser costurada. Despedi-me da bela loirinha de olhos verdes sem nunca ter podido ver seu rosto, que se manteve sempre escondido atrás da máscara. Dirigi-me para a sala de parto, sem imaginar que algo de muito grave estava acontecendo. Porém, quando novamente entrei na sala, para minha surpresa e atordoamento, havia outra mulher deitada sobre a maca. Não era a mesma que eu havia ajudado a dar à luz. Era outra. Por alguma estranha razão, eu olhava agora para outra pessoa. O grito da Glamour Girl ainda ecoava nos azulejos da sala, entrando nos meus ouvidos como uma sirene de alerta. Eu parecia ter acordado para algo através daquele som, e a transformação me aparecia agora diante dos olhos.
Eu havia visto um milagre, um assombro da existência humana, e só agora tinha me apercebido. Como por encanto pude enxergar o que a bela menina dos olhos de esmeralda havia me descrito. A paciente que eu havia atendido dera lugar ao que eu agora estava vendo: um prodígio da vida. Anos de dessensibilização não tinham conseguido apagar completamente a chama que existe em cada um de nós. Ainda restava algo para recuperar.
O ritual de passagem promovido pela escola médica coloca os jovens estudantes dentro de uma escolha complexa e difícil, porém inconsciente. Como todo rito, o ritual de formação dos médicos pressupõe uma passagem, um percurso. Nessa viagem, precisamos primeiramente nos despojar de nossas crenças antigas, assim como de nossos valores. É fundamental que assim seja, porque o novo status que conquistaremos no final do processo dispensa a condição antiga. Os estudantes iniciantes de medicina, assim como quaisquer indivíduos, não diferenciam o corpo “erotizado” que possuímos do corpo “real” que é seu novo objeto de estudo. Continuamos a ver a alma, a história, a dor e o fim quando avaliamos um corpo outrora habitado por vida. Uma das tarefas mais importantes do processo iniciático da medicina é retirar a alma dos corpos, para que, assim destituídos, possam ser mais facilmente entendidos pelos alunos. Essa é uma das mais complexas tarefas, porque pressupõe a perda da capacidade de sentir o que o outro sente. Algum nível de isolamento afetivo é quase que obrigatório como mecanismo de proteção do ego, porém o que se vê é a tentativa de isolar o profissional de toda a dimensão que não seja técnica. Esse processo leva o aluno/iniciado a incapacitar-se para a leitura das emoções e das dificuldades afetivas, levando-o a se enclausurar em um mundo biológico e asséptico. O que infelizmente encontramos depois da formatura é um grupo de novos médicos absolutamente aderidos ao modelo que lhes foi passado, negando, até mesmo em si próprios, os aspectos espirituais e transcendentais de suas existências.
Em contrapartida, como fechar os olhos aos eventos plenos de espiritualidade e afeto existentes no nascimento humano? Como lhes negar a essência sexual, viva e pulsante? Como impedir que um evento que conjuga vida, morte e erotismo não altere nossa percepção da vida? “O nascimento humano é uma bofetada no niilismo”, me diria Max.
Voltei a olhar para a mulher deitada à minha frente e que mantinha os olhos fixos em algum ponto reconfortante da parede de sua memória. Por alguns minutos, fiquei atônito, pensando no que havia de significado em tudo aquilo. Cheguei bem perto e olhei para ela, quase idêntica à outra, mas muito mais viva e muito mais bela. Ali estava a “impostora”, que algumas mulheres me desvendariam a existência. Era também a “mulher destruída” que Débora me mostrara logo após o nascimento de seu primeiro filho. Uma mulher modificada, forjada na chama de suas dores, esculpida pelo cinzel do seu cansaço, que tateia no breu de seus medos os limites a que pretende atingir. Aquela que veio tomar o lugar da “outra”, que morre metaforicamente no parto para deixar nascer uma nova mulher. Que loucura!, pensei eu ainda atordoado.
A bela menina de olhos verde-água tinha razão. A vida se perpetuando, se refazendo, se recriando. E eu estava aqui quando tudo aconteceu. Eu estivera no epicentro do acontecimento mais marcante na vida de várias pessoas, e não havia percebido até então a amplitude daquele instante mágico. Saí de novo da sala, para ver se podia encontrar a garota. Ela já havia partido, e provavelmente já estava contando para alguém o que vira há pouco. Que pena. Eu queria lhe dizer que ela possuía algo que eu estava prestes a perder, mas que algo dentro de mim se recusava a entregar. Eu queria dizer que o seu grito também existia dentro de mim, mas preso, silencioso e calado. Queria lhe dizer que esse silêncio machucava, doía, mas que eu fora ensinado a não chorar, não me emocionar, não gritar. Queria dizer que o seu grito me ajudou muito, e que ela jamais vai poder entender o quanto.
Prometi para mim mesmo que jamais permitiria me petrificar, me anestesiar. Se quisesse poderia gritar, me escabelar, rir, chorar. Não iria me insensibilizar com a beleza da vida ou com o amargor da morte. O grito da bela menina me ensinou que o que de mais humano nós temos não pode ser jogado fora como se fôssemos máquinas previsíveis. O belo da vida, assim como os seus mais escuros espectros, merecem de nós o sorriso e a lágrima de veneração.
Segui meu caminho em direção ao hospital ainda com a tonalidade dos belos olhos da Glamour Girl a impregnar minhas lembranças. A saudade de Max e Nadine me fez mais uma vez pisar no acelerador, mas dessa vez com cuidado redobrado. Faltava pouco para o nosso reencontro.