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As Ilusões do Reformismo

Foi nos umbrais do século XXI, no Congresso Internacional de Humanização do Nascimento em Fortaleza-CE no ano 2000, que eu tive a minha primeira lição a respeito do significado último das lutas pela emancipação das mulheres. Por certo que a minha característica lentidão no que se refere aos processos de sedimentação de novas ideias não permitiu que esse fato fosse entendido em sua abrangência total à época em que ocorreu, e só muitos anos depois tomou corpo e forma. Na ocasião, num intervalo entre palestras, estava conversando sobre o tema dos princípios básicos do “modelo de parteria” com um querido colega, obstetra de um grande hospital no centro do país. Fomos interrompidos educadamente por um médico que se apresentou como professor de obstetrícia de uma universidade local. Ele queria nos perguntar sobre o tema, pois os alunos que ele estava acompanhando estavam inquietos com algumas informações recolhidas. Disse ele:

– Colegas, escutei a última palestrante e creio que sua explanação me deixou confuso, e aos meus alunos inconformados. Ela deixou nas entrelinhas que as enfermeiras obstétricas poderiam ter plena autonomia para o atendimento dos partos eutócicos, ou seja, partos de risco habitual. Expliquei aos meu alunos que isso não poderia ser verdade e que todo o parto é de responsabilidade do médico da unidade, e creio que os senhores hão de concordar comigo. Não?

Imediatamente olhei para o meu colega e, em quase uníssono, respondemos:

– Pelo contrário!! Concordamos plenamente e está claro que a afirmação dela é correta. O trabalho das parteiras profissionais (enfermeiras obstetras e obstetrizes) é autônomo para os atendimentos que estão dentro do seu escopo de ação. Essas profissionais não são subordinadas aos médicos.

Seu olhar foi de assombro. Em sua mente o desconforto com nossas palavras tomava voz: “Como poderiam dois médicos, colegas de profissão, entender que a ação médica nos partos poderia ser dispensável? Como permitir o “atraso” de aceitar partos atendidos por “meras” enfermeiras? Não há como aceitar esse retrocesso; meus alunos não deveriam estar aqui”.

E isso tudo acontecendo no estado que pariu Galba de Araújo.

Alguns anos depois mais uma vez eu estava em um congresso de Humanização do Nascimento, desta vez no Rio de Janeiro. O mesmo colega foi à tribuna para fazer uma manifestação. Citou, entre vários assuntos, o fato de que não existem trabalhos comprovando que a presença de um neonatologista na atenção imediata ao parto melhora os resultados perinatais, quando os partos são de risco habitual. Dizia com isso que as parteiras com treinamento básico de atenção ao recém nascido (ALSO) são absolutamente competentes para esta atenção, e as evidências deixavam isso bem claro. Bastou terminar de falar para que um pediatra furioso pedisse a palavra e subisse à tribuna. Suas palavras, conforme pude reter na memória, foram estas:

– Cruzei o Brasil para participar de um congresso de um tema que acho importante, como a humanização, mas não imaginava que a minha especialidade fosse tratada com tanto desprezo. Chamar os neonatologistas de “inúteis” (a palavra não havia sido usada, mas foi como ele se sentiu) é um desaforo. Eu acreditava que este congresso seria um congraçamento de ideais, lutas conjuntas, troca de experiências, fraternidade, laços afetivos etc. mas o que vejo é desunião e agressões despropositadas.

Sentou-se novamente em sua cadeira, abalado e inconformado. Meu colega calmamente voltou ao microfone e falou:

– Se as evidências científicas tanto lhe agridem deveria frequentar lugares onde elas não são aceitas ou respeitadas. O que eu disse pode ser lido em qualquer revisão das grandes instituições. Não atire nos mensageiros quando a mensagem lhe desagrada. Se houver algum documento provando o contrário, ficarei feliz em me retratar. Enquanto isso, respeitarei as provas que chegam a mim.

Ali deveria ter ficado bem claro para mim quais os limites do “reformismo obstétrico”. Entretanto, ainda acalentei durante décadas a ideia ingênua de que que existem estratégias de “boa convivência” entre sistemas de poder capazes de imprimir mudanças paradigmáticas. Entretanto, o acúmulo de evidências em contrário fez com que essa ilusão viesse ao chão, e os ecos dessa queda estrondosa consigo ouvi-los até hoje. Era muito claro que a humanização do nascimento para o colega de Fortaleza seria um modelo de suavização de práticas, o reconhecimento da autonomia parcial das pacientes para várias questões, uma proximidade maior com a enfermagem e o respeito às evidências….. desde que estas ações não interferissem na pirâmide de poderes que sustenta a atenção ao parto e nascimento. No momento em que se aventou a possibilidade de um parto ocorrer sem o “carimbo” do médico, retirando deste a autoridade final e suprema sobre o processo, o alerta vermelho foi acionado. “Sim, podemos debater as doulas, as parteiras, a pintura da sala, as Casas de Parto, a presença do marido…. mas não ousem retirar aquilo pelo que lutamos bravamente: o poder conquistado sobre os corpos das mulheres e de seus filhos”.

Para o pediatra (lembro apenas que era da Paraíba) que se indignou com os dados oferecidos pelo meu colega, ficou claro que as evidências oferecidas pela Biblioteca Cochrane, ou as provas publicadas em periódicos do mundo todo só seriam aceitas caso tivessem a preocupação em manter intocada a autoridade dos médicos sobre mães e bebês, sendo inaceitável que outros atores no cenário do nascimento tivessem esta prerrogativa – mesmo diante de qualquer prova científica que lhes garantisse esse lugar.

Por isso, hoje em dia a maturidade (velhice) não me permite mais aceitar estas ilusões: o debate idealista sobre o parto, a perspectiva reformista e o “bom mocismo” do ativismo devem ser jogados fora. Não existe possibilidade de mudança na atenção ao parto que ofereça autonomia às mulheres, garantindo a escolha do local e dos profissionais responsáveis sem revolucionar o “modelo obstétrico” etiocêntrico (centrado na doença), iatrocêntrico (centrado no médico) e hospitalocêntrico (centrado no hospital, um local criado para atender doentes tão depauperados a ponto de não conseguirem caminhar, incapazes, assim, de frequentar “ambulatórios”).

O “Reformismo Obstétrico”, assim como o reformismo na política, parte de uma perspectiva idealista que imagina que o debate franco, a demonstração das evidências, o conflito de perspectivas e a lenta demonstração da verdade por fim produzirá mudanças significativas. Essa vertente de pensamento acredita que as ideias serão motores da transformação, solapando as mentiras através da confrontação. Ora, nada poderia estar mais longe da verdade. Não há contestação científica alguma sobre a superioridade do parto normal em relação à cesariana, e não é de hoje essa evidência. Não há dúvida quando à falta de utilidade e os danos causados pelas episiotomias, isso há 40 anos. Não há nenhum debate razoável sobre Kristeller, enemas, presença de doulas e mesmo local de parto, mas estes continuam sendo tabus na assistência cotidiana. O Brasil atingiu um platô de 57% de cesarianas, e não existe melhora destes números no horizonte. Por quê? Por qual razão estas ideias comprovadas há décadas não se transformam em rotinas? Qual a justificativa para a distância entre o que sabemos e o que fazemos?

A resposta inconveniente é que não se trata de um embate de ideias mas de poderes. Não existe luta de evidências; a luta é de poderes políticos na arena da saúde pública. Enquanto continuarmos acreditando que as evidências são capazes de mudar qualquer realidade vamos continuar chorando a opressão causada pelas categorias profissionais que detém o poder sobre os corpos grávidos pelo mundo afora. A luta nunca foi por evidências científicas e elas são absolutamente desprezíveis para se estabelecer protocolos no mundo todo; basta olhar como eles são feitos em hospitais, cidades e países. Para criar estas normas basta força e autoridade. Por isso que a única forma de transformar a realidade obstétrica é através da luta das mulheres ao lado das enfermeiras e obstetrizes para ocupar espaços de poder. Continuar investindo em pesquisa é importante, mas acreditar que elas podem transformar a realidade é uma ingenuidade idealista que já não tem mais cabimento. De nada adiantam os congressos, os seminários, os periódicos ou as publicações internacionais se não houver uma luta contra os poderes instituídos e pela plena autonomia dos corpos. É fácil constatar que aqueles que detém o poder – seja de uma nação ou sobre pessoas – jamais o entregarão sem luta, mesmo que existam provas de que estes poderes são usados de forma abusiva, inadequada ou até criminosa. Portanto, é necessário inaugurar uma nova fase, de lutas concretas pela ocupação de espaços, sem pedir licença, sem aceitar concessões menores, mas para que seja garantido às mulheres a plenitude de seus direitos em nome das escolhas que ela fizer no nascimento dos seus filhos.

O tempo da ilusão e da “pax obstétrica” deve chegar ao fim. É preciso exigir que o nascimento humano seja regido pela ciência, de forma multidisciplinar e através das evidências científicas, mas isso só vai ser possível através do combate pela boa causa, a causa da liberdade.

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Afinal, quem faz o parto?

Acredito que essa é mais uma daquelas perguntas que enseja uma resposta fácil. Entretanto, toda pergunta complexa recebe dos incautos uma resposta imediata e simples… e invariavelmente errada.

Este é um tema que agitou as mentes de diversos “pensadores do parto”, uma casta de profissionais que investiram seu tempo no estudo da arqueologia do nascimento, as origens profundas de sua arquitetura. Se é verdade, como dizia um deles – Michel Odent – que “Parto faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, então a forma como os fenômenos relacionados ao parto operam devem ser semelhantes àqueles que agem sobre a sexualidade humana, em especial a feminina. Desta forma, sobre uma base instintual, que compartilhamos com todas as formas de vida sexuada desse planeta, é acrescida em nossa espécie uma fina camada de razão, um tênue verniz de massa cinzenta aplicado sobre as construções milenares do nosso cérebro. Entretanto, a despeito de sua singela espessura, ele foi capaz de nos oferecer o grande diferencial entre todas as criaturas que compartilham conosco desta biosfera.

A razão associada à carga instintual – agora chamada de pulsão – nos mostra fenômenos híbridos em sua manifestação. Tanto o sexo quanto o parto ocorrem de forma espontânea, mas seguros pelos finos cordéis da razão. Nem racional, pois que seria insípido, nem “natural” ou instintivo, pois que seria brutal. Os fenômenos sexuais, entre eles o parto, carregam desta forma elementos complexos e únicos, pois que demonstram de uma forma inequívoca a constituição última de nossa alma. Daí surge, no que diz respeito à “Humanização do Nascimento”, um ponto de tensão. Se aceitarmos a dualidade entre pulsão e razão na sua construção, devemos aceitar que o parto há muito deixou de ser “natural”, ou seja, afeito às leis da natureza e subordinado aos seus condicionantes. Portanto, “partos naturais” são vedados à nossa espécie, prisioneira que está da linguagem e dos elementos simbólicos que daí decorrem. Por outro lado, mesmo que tenham deixado sua naturalidade ao adentrar à linguagem, ainda são fortemente determinados pelas forças violentas que, em última análise, procuram de todas as formas perpetuar a vida. Pois, “mesmo o padre eterno, que nunca foi lá, olhando aquele inferno vai abençoar”.

Assim, o que observamos no parto é um espetáculo único, onde a disputa entre estes dois aspectos da alma humana digladiam para exercer seu domínio. De um, lado milhões de anos de construção de processos, reprodutivos automáticos e irracionais, que culminam com a expulsão da cria. Do outro lado, milhares de anos de trânsito na hominalidade nos oferecem pensamentos lógicos e racionais, experiências pregressas, memórias e traumas a condicionar nosso pensamento na busca por proteção contra o medo inexorável que nos acompanha nestes momentos. Essa disputa terrível, que ocorre na mente da mulher que está parindo, produz necessidades de ordem afetiva que se expressam em sua atitude e nas suas palavras.

Para ilustrar estas perspectivas prefiro contar duas histórias que me ocorreram. Na primeira delas, fomos atender uma paciente em sua casa, com uma gestação à termo, por causa das contrações desconfortáveis que ela relatava, mas logo ao chegarmos percebemos que elas não eram fortes e sequer muito frequentes. Todavia, quando examinei a paciente me assustei ao ver que ela já tinha alcançado 8 cm de dilatação. Teoricamente, pouco faltava para a expulsão. Por esta razão, ficamos várias horas na sua casa aguardando as contrações finais, mas percebemos que as contrações se mantiveram fracas e infrequentes. Foi nesse momento que tive uma espécie de insight: “As contrações não deviam ocorrer de acordo com as minhas expectativas, mas a partir de uma ordenação que não deve estar sob meu controle. Não é a minha presença ou o meu olhar que determina a força contrátil do útero.” Eu estava certo: com o tempo as contrações foram escasseando e resolvemos voltar para casa e aguardar que o processo ocorresse por sua própria determinação. Durante uma semana fizemos avaliações diárias de bem estar fetal e, finalmente, o bebê nasceu 8 dias depois em um trabalho de parto de alguns poucos minutos.

Diante disso passei a enxergar o fenômeno sob outra perspectiva. Não apenas a minha vontade (e a angústia que se produzia a partir dela) não ajudava as contrações como minha presença provavelmente tinha um efeito inibidor. “É forçoso reconhecer que, em muitas vezes, sou eu quem atrapalha o processo com minha presença”, pensei. Sempre que uma paciente procura oferecer seu parto e sua “eficiência” a um olhar alheio ela deixa de aceitar que ele se forma a partir de uma produção autógena e própria.

O segundo relato é também sobre os olhares alheios e o quanto eles modificam o evento que observam. Robbie Davis-Floyd, antropóloga do parto e reprodução, tem uma história bonita sobre o nascimento do seu segundo filho, que ocorreu em casa depois de uma experiência traumática de uma cesariana anterior. Quando foi ter seu segundo filho decidiu que o teria em casa, para fugir das rotinas insensatas que, segundo ela, levaram seu parto a se transformar em uma cesariana. Durante muitas horas do seu trabalho de parto ela esteve acompanhada por várias pessoas em seu quarto: uma fotógrafa, duas parteiras, seu marido, a melhor amiga e as entradas ocasionais de sua filha pequena. O trabalho de parto foi árduo e doloroso, e por várias vezes pensou em desistir. Pela cesariana prévia, havia também um temor silente que percorria a consciência das parteiras, mas que, apesar disso, se mantinham confiantes.

Num determinado momento foi sugerido que ela poderia estar com a bexiga cheia, e foi pedido que tentasse aliviar a pressão. Diante da sugestão das parteiras foi até o banheiro e ficou sentada no vaso, com a torneira aberta, esperando que surgisse o desejo de urinar. Antes mesmo que isso viesse a acontecer teve uma contração forte, talvez mais forte do que todas as anteriores. Gemeu silenciosamente durante sua dor, e nesse momento teve uma “revelação”.

“As contrações aconteciam mesmo quando eu estava sozinha. Descobri que elas independem da plateia que as assiste. Esse sempre foi um assunto só meu; não é algo que devo oferecer a eles; só eu posso dar conta desse parto”. Para ela esta foi a chave que a fez “destravar” o processo: a permissão para que o nascimento ocorresse no seu próprio tempo e labor, e não pelo impressão que causa nos outros, pela expectativa de quem o observa de fora. A partir daquele momento as contrações se modificaram, sua atitude se transformou e pouco tempo depois conseguiu parir seu bebê.

“Parto é algo que as mulheres fazem”, já dizia Michel Odent respondendo a pergunta inicial, mas o fazem por uma construção inconsciente, por um motor que tanto está em si quanto fora de sua vontade. “É a mulher quem o faz, mas este controle está para além dela, e se expressa através dela”. Esta é a magia inerente de cada nascimento: a submissão a uma ordenação superior, maior do que nossos próprios desejos de controle. Essa mistura entre as forças eróticas poderosas e a razão que nos aprisiona contém os segredos mais profundos do nascimento humano. Para nós que buscamos auxiliar, saber que somos pequenos diante desse espetáculo é peça fundamental para compreendê-lo, mesmo quando tal compreensão apenas arranha a superfície de seu mistério. Entender que nossa participação enquanto cuidadores deve ser silenciosa, atenta e respeitosa, é aceitar humildemente o que nos cabe no grande concerto da vida.

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O Ocaso do Parto Normal

Foto de Amanda Vargas para Bebê Abril

Vejo, com certo desânimo, que se fortaleceu o discurso que suaviza as cesarianas, tratando-as como cirurgias que podem ser “humanizadas”. Essas coisas já me incomodaram muito no passado; hoje só me entristecem. Durante anos sustentei a tese de que a humanização só pode existir aliada ao protagonismo. Todavia, na cesariana o protagonismo é entregue ao médico e, portanto, não há como “humanizar” aquilo sobre o qual não temos controle, somente exigir que seja feita de forma respeitosa e suave. “Humanização do nascimento é a garantia do protagonismo à mulher; o resto é sofisticação de tutela”.

Eu às vezes acredito que a “cultura do parto normal” é um projeto falido, algo como tentar evitar que as crianças usem o celular em excesso. Existe uma conexão violenta com estas tecnologias em ambos os casos, e as tentativas de “discipliná-las” fracassa diante do desejo incontrolável que leva ao seu uso. Lutamos contra condicionantes culturais extremamente poderosos, em especial porque o próprio parto normal atua contra os princípios fundamentais do capitalismo e nos faz pensar nos limites da tecnologia. “Os tempos do parto agridem a roda do capital”.

A ideia de que a forma de nascer é constituinte da formação do sujeito que está nascendo, tanto quanto da mulher que surge de seus escombros, é tão sofisticada e sutil que as pessoas comuns simplesmente não conseguem captar essa proposta. “Ora, para que sofrer horas à fio se posso resolver esse drama em 20 minutos? Riscos? No jornal e nos tribunais só aparecem casos desastrosos de parto, jamais de cesarianas. Por que deveria eu me submeter a um modelo de nascimento fracassado, antigo, cruel, sacrificial e ultrapassado?”

Como convencer mulheres do contrário? Um dos sinais desse fracasso é exatamente a proposta sutil de “humanizar” a cesariana, tirando dela sua aura de “intervenção” ou “alienação”. Para isso usamos a palavra “humanizada” para qualificá-la descrevendo o cuidado, a atenção, o carinho e o afeto que podem ser usados nesta cirurgia – apesar de que, por esse critério, até uma apendicectomia pode ser “humanizada”. Esse movimento – a troca de termos – sugere uma lenta e gradual capitulação. “Já que é impossível convencer que os sacrifícios (sacro ofício) de um parto normal produzem benefícios que se multiplicam para toda a vida, vamos pintar de dourado sua alternativa, mostrando a cesariana como algo igualmente belo e empoderador, “humanizando” a abertura de sete camadas de tecidos e transformando a extração fetal em um gesto de amor”. A frase que segue é sempre “não sinta vergonha por suas decisões”.

Pois não há vergonha alguma em admitir que talvez a luta pela humanização do nascimento venha a fracassar. Talvez mesmo as mulheres não queiram mais passar por este processo, mesmo com décadas de pesquisa científica mostrando a superioridade do parto normal, em todos os níveis, sobre a cirurgia para a retirada de bebês. É necessário ser maduro o suficiente para aceitar a possibilidade de que o futuro do nascimento humano será totalmente artificial, sem qualquer participação ativa das próprias mulheres, a quem – ainda – será reservada a nutrição e o desenvolvimento dos bebês em seus corpos. Com o tempo até este peso será retirado delas, e os novos integrantes da sociedade serão nutridos e criados em chocadeiras humanas. Um alívio, uma libertação, uma evolução – dirão muitos.

Não estou sendo irônico. Quando vejo obstetras usando a expressão “cesariana humanizada” eu percebo o início da estrada cujo destino final é a lenta extinção de um capacidade fisiológica. A atrofia sistemática das capacidades de parir, acrescida do extermínio lento e gradual de profissionais que cuidam do parto normal – habilidades desenvolvidas por milhões de anos em nosso gênero – me obrigam a uma visão pessimista do futuro do parto. O resgate do parto é a busca por nossa essência, entretanto a suprema alienação das mulheres desse processo e a expropriação definitiva do nascimento pela tecnologia são realidades que não surgirão por decreto, mas por passos quase imperceptíveis, os quais só podem ser captados por quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir.

Por certo que não se trata de um destino já determinado. Cabe às mulheres decidir sobre algo que, em última análise, é o grande diferencial em sua função planetária. Entretanto, quando nenhuma criança mais surgir através do esforço e da dedicação de uma mulher, quando o grito primal for substituído pelos ruídos metálicos da mesa cirúrgica e quando a voz embargada do pai der lugar aos gracejos dos médicos no campo operatório, a estrutura psíquica que nos constitui estará radicalmente alterada e a sociedade como a conhecemos será radicalmente outra.

Se existe amor, este é o amor de uma mãe pelo seu filho, sendo todos os outros amores dele derivados. A maior função de uma mãe é ensinar seu filho a amar. O que será da humanidade quando for suprimida do cotidiano de todos os seus habitantes nossa primeira e majestosa lição?


Veo, con cierta consternación, que se ha fortalecido el discurso que suaviza las cesáreas, tratándolas como cirugías que se pueden “humanizar”. Estas cosas me han molestado mucho en el pasado; hoy solo me entristecen. Durante años sostuve la tesis de que la humanización sólo puede existir en conjunción con el protagonismo. Sin embargo, en la cesárea, el papel principal lo tiene el médico y, por lo tanto, no hay forma de “humanizar” lo que no tenemos control, solo para exigir que se haga de manera respetuosa y gentil. “La humanización del nacimiento es la garantía del protagonismo de la mujer; el resto es sofisticación de la tutela”.

A veces creo que la “cultura del nacimiento normal” es un proyecto fallido, algo así como tratar de evitar que los niños usen en exceso sus teléfonos celulares. Hay una conexión violenta con estas tecnologías en ambos casos, y los intentos de “disciplinarlas” fracasan ante el deseo incontrolable que impulsa su uso. Luchamos contra restricciones culturales extremadamente poderosas, especialmente porque el nacimiento normal en sí mismo actúa en contra de los principios fundamentales del capitalismo y nos hace pensar en los límites de la tecnología. “Los tiempos del parto atacan la rueda del capital”.

La idea de que la forma de nacer es un constitutivo de la formación del sujeto que nace, así como de la mujer que emerge de sus escombros, es tan sofisticada y sutil que la gente común simplemente no puede captar esta propuesta. “Bueno, ¿para qué sufrir horas y horas si puedo resolver este drama en 20 minutos? ¿Riesgos? En el periódico y en los tribunales solo aparecen casos desastrosos de parto, nunca cesáreas. nacimiento, cruel, sacrificial y anticuado?”

¿Cómo convencer a las mujeres de lo contrario? Uno de los signos de este fracaso es precisamente la sutil propuesta de “humanizar” la cesárea, quitándole su aura de “intervención” o “alienación”. Por eso, usamos la palabra “humanizado” para calificarlo describiendo el cuidado, la atención y el afecto que se pueden usar en esta cirugía, aunque, según este criterio, incluso una apendicectomía puede ser “humanizada”. Este movimiento -el intercambio de términos- sugiere una capitulación lenta y gradual. “Como es imposible convencer que los sacrificios (oficio sagrado) de un parto normal producen beneficios que se multiplican de por vida, pintemos de oro su alternativa, mostrando la cesárea como algo igualmente hermoso y empoderador, “humanizando” la apertura de siete capas de tejido y convirtiendo la extracción fetal en un gesto de amor”. La frase que sigue es siempre “no te avergüences de tus decisiones”.

No hay vergüenza en admitir que tal vez fracase la lucha por la humanización del nacimiento. Quizás incluso las mujeres ya no quieran pasar por este proceso, incluso con décadas de investigación científica que muestran la superioridad del parto normal, en todos los niveles, sobre la cirugía para dar a luz. Es necesario ser lo suficientemente maduro para aceptar la posibilidad de que el futuro del nacimiento humano sea completamente artificial, sin ninguna participación activa de las propias mujeres, a quienes – aún – les estará reservada la nutrición y el desarrollo de los bebés en sus cuerpos. Con el tiempo, incluso se les quitará este peso de encima, y ​​los nuevos miembros de la sociedad serán nutridos y criados en incubadoras humanas. Un alivio, una liberación, una evolución – dirán muchos.

No estoy siendo irónico. Cuando veo a los obstetras utilizar la expresión “cesárea humanizada” percibo el inicio de un camino cuyo destino final es la lenta extinción de una capacidad fisiológica. La atrofia sistemática de la capacidad de dar a luz, sumada al lento y paulatino exterminio de los profesionales que atienden el parto normal – habilidades desarrolladas durante millones de años en nuestro género – me obligan a tener una visión pesimista del futuro del parto. El rescate del parto es la búsqueda de nuestra esencia, sin embargo la alienación suprema de la mujer de este proceso y la expropiación definitiva del nacimiento por parte de la tecnología son realidades que no emergerán por decreto, sino por pasos casi imperceptibles, que sólo podrán ser captados por aquellos que tienen ojos para ver y oídos para oír.

Ciertamente, este no es un destino predeterminado. Corresponde a las mujeres decidir sobre algo que, en definitiva, es el gran diferencial en su rol planetario. Sin embargo, cuando ya no surgen más hijos gracias al esfuerzo y dedicación de una mujer, cuando el “grito primal” es reemplazado por los ruidos metálicos de la mesa de operaciones y cuando la voz quebrada del padre da paso a las bromas de los médicos en el campo de operaciones, la estructura psíquica que nos constituye será radicalmente alterada y la sociedad tal como la conocemos será radicalmente diferente.

Si hay amor, es el amor de una madre por su hijo, todos los demás amores se derivan de él, y la mayor función de una madre es enseñar a su hijo a amar. ¿Qué será de la humanidad cuando nuestra primera y majestuosa lección sea suprimida de la vida cotidiana de todos sus habitantes?

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Contradições

Por muitos anos fui atormentado por esta contradição: o movimento de humanização do nascimento se adapta – e é mais bem acolhido – entre conservadores. Durante décadas eu vi parteiras americanas conectadas com grupos cristãos de caráter extremamente conservador e achava bizarro que assim o fosse. Em minha cabeça comunista eu pensava: como pode ser possível que um ideário que me parece libertador e conectado aos direitos humanos mais básicos pudesse ter ressonância com mulheres à direita no espectro político?

A resposta que pude elaborar – ainda que parcial e incompleta – se encontra no fato de que a humanização do nascimento sempre colocou uma enorme importância na maternidade e na amamentação, funções especificamente femininas que os movimentos feministas sempre trataram com reserva – para não dizer, contrariedade. Para estes grupos a emancipação da mulher passa pela liberdade econômica, a competitividade em campos outrora dominados pelos homens e o poder social conquistado na arena das disputas profissionais. Mulheres queriam o dinheiro e o poder para comprar sua “alforria”, sua independência, para serem donas do seu destino. Por certo, não há como criticar seu desejo legítimo.

Todavia, parto, nascimento, puerpério e amamentação jogam as mulheres no universo de sua biologia, nos compromissos ancestrais com a espécie, no corpo, na sobrevivência, na “dívida” que as mulheres tem com sua raça. Impossível não entender o quanto esse mergulho na essência feminina mais bruta e primitiva significa um anteparo às suas legítimas aspirações de autonomia.

Desta forma, qualquer movimento que tente debater, esclarecer, problematizar e questionar a suprema invasão tecnológica do nascimento contemporâneo “desnaturado”, ou seja, retirado da natureza e da integralidade destes processos, estará funcionando como um anteparo à utopia libertária da mulher, pois estará enxergando seu corpo através de um prisma mais ligado à sua natureza e sua essência.

Levei anos tentando entender e lidar da melhor maneira possível com estas contradições, mas creio que a compreensão histórica dessas lutas é sempre uma ferramenta fundamental para o seu entendimento.

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Essências

Eu confesso que torci pelo Biden na última eleição presidencial americana. Sei que a vitória de Trump poderia significar um estreitamento da relação entre o genocida daqui e o idiota de lá, então atirei no Trump para acertar no Bolsonaro. Entretanto, nada mais elucidativo do funcionamento do Imperialismo do que a vitória de Biden. Para quem, como nós, observa de fora, é impossível perceber qualquer diferença significativa entre a administração destes dois presidentes, mas se houver alguma, será no sentido de desmerecer o atual governante.

O anúncio das tensões crescentes na Ucrânia nos demonstra que qualquer presidente americano terá como objetivo principal o incremento do poder imperialista sobre o planeta, tanto quanto qualquer um dos seus antecessores – igualmente violentos. Não importa a quantidade de cadáveres de gente de língua estranha e de pele mais escura; o importante é manter a hegemonia, esta mesma que determina o “american way of life”. Não é possível notar diferença significativa na política externa, nas guerras e golpes, inobstante o vencedor das eleições americanas ser qualquer uma das sublegendas do imperialismo, a “direita A” ou a “direita B“. O mesmo ocorre há 70 anos em Israel: não importa quem vença as eleições por lá, a política de massacre e limpeza étnica dos palestinos será igual; o sionismo não é projeto de governo, mas uma política de Estado.

Existem coisas que fazem parte da essência do país, como o imperialismo e o sionismo. Da mesma forma, não faz diferença onde o capitalismo se instale; sua essência é o empobrecimento da população, a concentração de renda, a destruição do meio ambiente e a tendência à formação de grandes oligopólios e monopólios. Depois disso, uma máquina absurda de propaganda e a instalação de um Estado policial de brutalidade crescente será institucionalizada, para desta forma manter a classe operária comportada e satisfeita com as migalhas recebidas.

Assim como a paz mundial não será decidida pelas eleições americanas e o futuro da Palestina não estará nas cadeiras conquistadas no Knesset, o desenvolvimento das potencialidades humanas, a divisão equânime das riquezas e a solidariedade entre os povos deste planeta jamais chegará através do modelo capitalista, pois que o caráter predatório do capitalismo está entranhado inexoravelmente em sua essência mais profunda. Não será fazendo concessões à classe burguesa que conquistaremos a justiça e o equilíbrio.

E lembrando: também não haverá humanização do nascimento e respeito à fisiologia das mulheres enquanto o parto for controlado por cirurgiões. Afinal, intervir sobre os corpos está na essência destes profissionais. Como seria possível que agissem contra suas mais profundas inclinações? Uma política de “reformismo” e a manutenção do sistema de poderes nos levou a situação de agora. Desta forma, por que deveríamos continuar numa rota que jamais nos levou a mudanças consistentes?

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Sol e Lua

No que se refere ao parto as mulheres são o sol, enquanto seus cuidadores são a lua. Aquelas produzem a energia e a luz feérica do nascimento, enquanto estes refletem com humildade e respeito o brilho que capturam do momento. Qualquer inversão destes papéis significa uma perversão significativa na essência desse evento, um eclipse que desfaz o brilho de um às custas da intromissão do outro.

Por certo que precisamos de propostas para a melhoria da atenção ao parto e a todos os fenômenos relacionados aos ciclos femininos, mas é necessário fugir do idealismo que, tal qual uma sereia sedutora, nos leva a crer em soluções parciais para problemas estruturais. É importante reconhecer que as ideias por si só são estéreis, incapazes de produzir as mudanças que pretendemos. Um exemplo clássico é das episiotomias – cortes vaginais usados para alargar a saída e (pretensamente) para proteger o períneo. Há decadas sabemos o quanto são inúteis e prejudiciais, um fato comprovado por dezenas de estudos, e mesmo assim ela continua sendo usada indiscriminadamente em nosso meio. No Brasil, a episiotomia ainda é a única cirurgia realizada no corpo de uma mulher saudável sem o seu consentimento prévio. Atualmente ela ocorre em cerca de 53,5% nas parturientes brasileiras que fazem parto normal, exatamente porque a mudança nestas atitudes sedimentadas pela cultura médica não se dá pelas ideias – por mais fundamentadas que sejam – mas pela confrontação e pela luta na arena dos poderes instituídos. Precisamos, portanto, de uma perspectiva materialista para o nascimento.

O mesmo ocorre com a ideia – bem estabelecida por estudos multicêntricos ocorridos há várias décadas – de que é essencial para a saúde coletiva interromper o abuso de cesarianas, assim como as centenas de outras intervenções indevidas que ocorrem no ambiente hospitalar do parto, reconhecidamente inúteis e perigosas para o binômio mãe-bebê. Portanto, a agenda – além de positiva – precisa ser propositiva, centrada nas lutas que garantam o protagonismo e que estabeleçam uma relação centrada na liberdade ampla e irrestrita de escolhas, respeitando amplamente os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e suas famílias. Mais importante ainda é entender que essa luta será conduzida pelas mulheres, legítimas condutoras do processo, contando com a valiosa ajuda dos profissionais de vanguarda da obstetrícia e da parteria profissional.

Fora dessa perspectiva resta apenas o que se pode chamar de “reformismo obstétrico”, uma plataforma de propostas que se baseia na perspectiva da solução para os dilemas obstétricos através da simples proliferação de obstetras humanistas – profissionais mutantes e bizarros, centrados na perspectiva de respeito às evidências – que não passam de meia dúzia de ilhotas minúsculas em um oceano gigantesco de profissionais adaptados à obstetrícia contemporânea, que apenas replicam o modelo anacrônico, personalista, intervencionista, misógino e centrado nos valores do capitalismo que caracteriza a assistência ao parto nos grandes centros do ocidente. Imaginar que a reforma estrutural da obstetrícia se dará sobre as mesmas diretrizes intervencionistas de hoje – mantendo os mesmos atores no comando – é uma ilusão que não podemos nos permitir. Como bem dizia Giordano Bruno, “Quanta ingenuidade pedir a quem detém o poder que o mude”.

A ruptura com o reformismo obstétrico – que pretende mudar a fachada para não transformar a estrutura – será a grande tarefa da nova geração de ativistas e cuidadores do nascimento humano.

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Chuva

A mesma lógica que diz que o capitalismo tem cura bastando para isso ser “civilizado” e bem controlado – cobrando impostos dos ricos e punindo corruptos – é a que diz que o parto vai ser mais humanizado educando médicos cesaristas e punindo abusos. Esses sonhadores ficaram trancados em casa no último século quando choveram evidências mostrando a ingenuidade que sustenta estas ilusões.

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Corpos

Se o “parto realmente faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, então controlar a reprodução – do exercício da sexualidade à maternagem – será uma tarefa primordial do sistema de poderes que nos controla. Não existe sociedade livre com sexualidade encarcerada, e a luta por liberdade passa por romper as amarras da sexualidade que brota de um corpo que se contorce em gozo no momento de parir. Não é sobre o conteúdo; é sobre o continente. Não é sobre estes bebês, mas sobre os corpos que os produzem, carregam e nutrem. É sobre o direito de (não) parir – em paz e com autonomia.

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O Ocaso do Parto

* Fragmento da minha conversa com Edson Souza, após o encontro da Lillie Excellence em Delhi…*

Quando eu era estudante de medicina a realização de uma cesariana sem indicação era considerada “tarefa de preguiçoso” ou de quem não conhecia as “técnicas”. Durante a residência um professor (que hoje dá chilique quando houve o termo “violência obstétrica”) disse durante um encontro com os alunos que “um médico que faz uma cesariana nunca sai da sala com a cabeça baixa, mas o mesmo não se pode dizer de quem atende um parto normal”. Eu percebi nessa frase a ideia de que a “posição da cabeça” estava se tornando mais importante do que a arte e o cuidado na atenção ao parto. Os médicos estavam se tornando, de forma crescente, cada vez mais amedrontados com o nascimento, e as ações que eles conduziam eram moduladas por este sentimento, que assumia uma posição de destaque diante das decisões a tomar.

Hoje em dia são os parteiros remanescentes que precisam se explicar por suas escolhas, pois a opção pelo parto normal se tornou uma escolha esdrúxula. digo isso porque, sim, eu acredito na possibilidade de que o parto vaginal venha a ser exterminado e proscrito da experiência humana. Penso que poderá ocorrer que a cesariana, cada vez mais segura, passe a ser o mecanismo de escolha para todos os nascimentos. Não pensar nessa possibilidade é ignorar que não seria a primeira de nossas escolhas desastrosas na historia da medicina – até porque garantir à Medicina o controle sobre o parto normal foi, ao meu ver, a mais escandalosa de todas elas.

A questão é que o modelo de atenção ao parto no ocidente – isto é, nos países satélites da medicina tecnocrática do Império – é o mais insensato possível. Regido pelo signo do medo, através do paradigma tecnocrático e do imperativo tecnológico, ele é mantido na esperança de que os partos normais sejam paulatinamente desencorajados, abolindo a alternativa normal ou fisiológica, que ficaria restrita somente àqueles nascimentos acidentais, situações onde não haveria tempo suficiente para submeter as pacientes à intervenções e técnicas da medicina.

Hoje as pessoas que atendem o parto no Brasil são em sua maioria médicos, sujeitos treinados na lógica da intervenção, na utilização de ferramentas – drogas ou cirurgias – para atuar em processos desviantes e patológicos. Como poderíamos imaginar que, profissionais que recebem esse tipo de treinamento e incentivo econômico, pudessem se interessar pela atenção fisiológica e natural do parto? Por que deveriam os médicos se interessar por algo inscrito na memória celular das mulheres como parte de seu arsenal de respostas sexuais, se sua propensão é sempre usar sua arte para intervir, mudar rotas e transformar?

A ideia de oferecer a assistência ao parto normal e de risco habitual para cirurgiões é provavelmente a mais desastrosa escolha da história do cuidado à saúde. Todas as pesquisas apontam que as parteiras profissionais têm os melhores resultados quando a atenção às pacientes de baixo risco (risco habitual) é avaliada. Entregamos aos médicos uma tarefa que eles não gostam, não entendem, não são treinados suficientemente e cujas abordagens – psicológica, emocional, cultural, social, e espiritual – são historicamente negligenciadas pelas escolas médicas, que se preocupam na resolução de problemas e no tratamento de patologias, urgências e emergências.

Ao invés de oferecer à Medicina a patologia, ofertamos o poder de controlar todo o campo de atenção ao parto, obrigado estes profissionais a tratar a normalidade do nascimento, algo que lhes causa enfado ou rejeição. Não deveria surpreender a facilidade com que a atenção contemporânea ao parto transforma a maioria dos nascimento em eventos cirúrgicos, com acréscimo de intervenções, drogas, procedimentos em cascata e riscos aumentados.

A recente reafirmação do parto como “evento médico” e a liberdade cada vez maior por parte das mulheres para livremente escolher a via de parto – mas não o local de parto – sinaliza que a autonomia oferecida a elas só aumentará a aumentar quando estes desejos estiverem alinhados com os interesses dos médicos. O resultado inevitável é o aumento de cesarianas, cada vez menos partos vaginais atendidos, menor experiência dos jovens médicos (o que já se vê com partos gemelares e pélvicos), mais medo, mais insegurança e maior pressão para escolher o nascimento cirúrgico. Na medida em que os partos normais desaparecem, também a capacitação para a atenção ao parto se torna uma habilidade cada vez mais rara, relegada a poucos sonhadores e profissionais dedicados.

Talvez ocorra um tempo em que o parto não será mais do que a pálida lembrança de um tempo selvagem, que tomamos conhecimento através das gravuras estranhas em páginas da história da Medicina. Esse foi um tempo onde as crianças nasciam através das dores de suas mães, o parto ocorria pelo esforço delas e pela suplantação de suas dificuldades, medos e barreiras. Nessa época o entorno psíquico e emocional produzia o solo adequado para o florescimento da maternagem e dos processos de vinculação mãebebê. Talvez sejamos as últimas gerações nas quais o parto normal ainda é uma opção legítima. Se hoje a corporação médica persegue de forma odiosa as opções de onde nascer, talvez em breve médicos e parteiras sejam perseguidos por escolherem a via normal, então tornada criminosa e ilegal.

Que civilização desconectada com sua essência se tornará essa que estamos lentamente criando?

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Os amores

Mas… quem poderia imaginar que sexo, entre humanos, seja algo “natural”? Precisa ser ingênuo para pensar que existe algo de natural em nós. Lacan já dizia há mais de 50 anos que “a palavra matou o real”.

Somos construções das palavras, não mais de moléculas e átomos. Desde que levantamos para comer a fruta da razão o sexo não seguiu mais as regras da biologia e da reprodução, mas da teia intrincada surgida da ruptura bizarra da ordem cósmica a qual chamamos amor.

Este só surgiu do despejo abrupto do feto distópico, incompetente massa amorfa, rodeado de espaço sufocante e carente de afago. Foi ali, no desamparo, na perda angustiosa do idílio perfeito, que a treva se produziu pelo brilho intenso das duas estrelas que, piscando, lhe dizem “meu filho querido”.

E dessa conexão se fez o amor, pois que se ele existe foi aí semeado, e de tanto amor todos os outros amores são desse princípio derivados.

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