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Memórias do Homem de Vidro

Orelha – Prefácio – Introdução

Orelha

Ricardo Jones, MD is a physician who is both knowledgeable in evidence based – best practices and honors the wisdom of this sacred and sensitive time in a woman’s, baby’s and family’s life.  It is with this blend of wisdom and knowledge that Dr. Jones is shining a light on our current path of technocratic darkness to a new way of caring for women at this very special time in their lives.

“Memórias do Homem de Vidro”  shows us a model of physicians working in collaboration with midwives, nurses and doulas, supporting women as they reclaim the power and majesty of birth.   His strong yet gentle presence allows babies to enter the world in peace and surrounded by an environment of love and nurturing. In order to create a peaceful world, we must start by how we care for women and their babies at this sensitive and sacred time of bringing a new life into our world.

Dr. Jones in sharing his journey from doctor to healer, will encourage you to begin your own journey.   (Book Title) will have you reflect on your practices and your beliefs surrounding childbearing and transcend what is outdated and develop a new model of caring, that promotes, protects and creates peaceful births and ultimately a more peaceful world.

Debra Pascali-Bonaro, B.Ed, LCCE, CD(DONA) PCD(DONA)

Childbirth Educator, Doula Training and member of the Leadership Council Coalition for Improving Maternity Services, and the Adjunct Faculty for Continuing Education, School of Nursing, State University of New York at Stony Brook, Stony Brook, NY.

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Prefácio

Ricardo Jones é um homem com uma história para contar – uma história que começa com transparência, passa por transformação e flui para integração. Nesse maravilhoso livro, ele conta essa trajetória através das diversas narrativas dos partos que ele assistiu, e das mulheres que o ensinaram a maioria das coisas verdadeiramente importantes sobre o nascimento.

Eu conheci “Ric” – como ele se tornou conhecido no universo cibernético – no Congresso Internacional de Humanização do Nascimento de 2000, em Fortaleza, onde nós – e todos os demais participantes – pudemos presenciar o nascimento de um movimento internacional de resgate do parto e nascimento. Os organizadores do Congresso esperavam ao redor de 600 congressistas, mas no fim do primeiro dia já havia 2000 inscritos. Médicos, enfermeiras-obstetras, enfermeiras, doulas, oficiais do governo, administradores de hospitais e dezenas de parteiras tradicionais se uniram em torno de uma profunda preocupação com as condições do nascimento e cuidado materno na América Latina. A alta taxa de cesarianas no Brasil foi o principal catalisador dessa conscientização geral pela necessidade de uma mudança. No congresso havia uma grande confusão sobre qual seria o real significado de “humanização do parto”. Alguns hospitais, através de seus diretores, se pronunciavam afirmando terem se “humanizado” porque agora permitiam a entrado do pai na sala do parto. Outros médicos, entretanto, insistiam que humanização deveria ser bem mais do que isso. Neste contexto, e na condição de antropóloga ligada à reprodução e ao nascimento, proferi uma palestra com a intenção de esclarecer o que a humanização do parto genuinamente é. Sabendo que a humanização só pode ser compreendida entendendo-se o que ela não é, apresentei três paradigmas internacionais do nascimento: o modelo tecnocrático, o humanístico e o holístico.

Sintetizando, o modelo tecnocrático enfatiza a separação entre corpo e mente, e estabelece a máquina como a mais adequada metáfora para o corpo humano. Esta metáfora privilegia a percepção do paciente como objeto, a alienação do médico de seu cliente e o uso intensivo de intervenções tecnológicas durante o parto. Objetiva melhorar o funcionamento ou corrigir as assim interpretadas disfunções do corpo/máquina da mulher que está parindo. No outro extremo deste espectro de conceitos, o modelo holístico define o corpo como um “campo energético” em constante interação com outros campos de energia, e insiste que intervenções no nível energético e emocional podem ser mais efetivas e muito menos danosas do que as intervenções tecnológicas. Os proponentes da Humanização do Nascimento encontram-se no terreno intermediário dessas duas correntes, definindo o corpo humano como um “organismo” e enfatizando a importância do paciente como sujeito relacional. Estes profissionais supervalorizam a conexão e o afeto entre médico e paciente como elementos essenciais de qualquer tipo de cuidado médico, incluindo-se aí o nascimento. Os Humanistas fazem, sim, intervenções tecnológicas, mas tentam minimizar seus efeitos potencialmente alienantes com amor, tato, carinho e compaixão, mantendo sempre uma atitude de respeito pela individualidade, desejos, vontades e escolhas de seus pacientes. (Para uma descrição e análise completas desses paradigmas ver: Davis-Floyd and St. John 1998; Davis-Floyd 2001).

OS MODELOS TECNOCRÁTICO, HOLÍSTICO E HUMANÍSTICO EM MEDICINA:

O Modelo Tecnocrático de Medicina

  1. Separação mente/corpo;
  2. O corpo é visto como uma máquina;
  3. O paciente como um objeto;
  4. Alienação entre médico e paciente;
  5. Diagnose e tratamento de fora para dentro (curando doenças, reparando disfunções);
  6. Organização hierárquica e padronização de atendimento;
  7. Autoridade e responsabilidade inerentes ao médico, não ao paciente;
  8. Supervalorização da ciência e da tecnologia;
  9. Intervenção agressiva com ênfase em resultado a curto-prazo;
  10. A morte é encarada como uma derrota;
  11. Um sistema dirigido pelo lucro;
  12. Intolerância com outras modalidades;

Princípio básico subjacente: separação;
Tipo de pensamento: unimodal, cerebral esquerdo, linear.

O Modelo Humanístico (Biopsicosocial) de Medicina

  1. Mente e corpo como uma unidade;
  2. O corpo como organismo;
  3. O paciente como sujeito relacional;
  4. Conexão e afetividade entre profissional e paciente;
  5. Diagnóstico e tratamento de fora para dentro e de dentro para fora;
  6. Equilíbrio entre as necessidades da instituição e as do indivíduo;
  7. Informação, tomada de decisões e responsabilidade compartilhadas entre profissional e cliente;
  8. Ciência e tecnologia contrabalançadas com humanismo;
  9. Focalização na prevenção das doenças;
  10. Morte como um resultado aceitável;
  11. Cuidado compassivo;
  12. Mente aberta diante de paradigmas alternativos de tratamento.

Princípio Básico Subjacente: Equilíbrio e Conexão
Tipo de pensamento: Bimodal

O Modelo Holístico de Medicina

  1. Corpo, mente e espírito como uma unidade;
  2. O corpo é um sistema de energia ligado com outros sistemas de energia;
  3. Cura a pessoa “inteira”, no contexto de sua vida como um todo;
  4. Médico e paciente como uma unidade essencial;
  5. Diagnose e cura de dentro pra fora;
  6. Estrutura organizacional em rede, que facilita a individualização do atendimento;
  7. Autoridade e responsabilidade inerentes a cada indivíduo;
  8. A ciência e a tecnologia são colocadas a serviço do indivíduo;
  9. Uma focalização que objetiva criar e manter a saúde a longo-prazo;
  10. A morte é encarada como uma etapa de um processo;
  11. A cura é o foco principal;
  12. Admite várias modalidades da cura;

Princípio básico subjacente: conexão e integração

Tipo de pensamento: multimodal, cerebral-direito e fluído.

 O Espectro Médico

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Modelo tecnocrático >>>><<<< Modelo humanizado >>>><<<< Modelo Holístico

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Essa tabela foi retirada do livro “From Doctor to Healer: The transformative Journey” de Robbie Davis-Floyd e Gloria St.Jonh. New Brunswick NJ: Rutgers University Press, 1998.

Ao me virar para sair do pódio, quando do término de minha palestra no Congresso de Fortaleza, dei de frente com um grupo de jovens e entusiasmados obstetras que desejavam me conhecer. Diziam eles serem médicos de muitas cidades do Brasil, esforçando-se, à sua maneira, para realizar um trabalho verdadeiramente humanizado, ou até mesmo holístico. Grande parte deles sofria pelo fato de serem os únicos profissionais tentando trabalhar de uma forma diferenciada em suas comunidades. Isolados e escassos, foram aos poucos se encontrando uns aos outros e criaram uma rede nacional – a Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – que eles abreviaram como REHUNA. Eles pretendiam que essa rede e sua organização se tornassem parte integrante de um grande movimento de humanização da assistência à saúde no país.

Ric era um membro entusiasta desse pequeno grupo.

Em Fortaleza nosso encontro foi breve mas, 10 meses depois, em uma conferência no Rio de Janeiro, ele me ajudou como tradutor e como “professor” sobre a realidade do nascimento no Brasil. Lá, e em outras conferências que se seguiram, tive a oportunidade de ouvir suas palestras e conhecê-lo melhor. Acabei desenvolvendo uma profunda admiração pela sua jornada transformativa, afastando-se da obstetrícia intervencionista e tecnocrática e se aproximando cada vez mais de uma abordagem verdadeiramente holística. Eu fiquei surpresa ao saber que ele atendia em um consultório de ginecologia e obstetrícia, prestava assistência como voluntário em uma clínica homeopática para a população pobre de sua cidade e realizava partos em hospitais e nas casas das suas pacientes, utilizando uma abordagem multidisciplinar e atuando em equipe.  Sua equipe consiste de um obstetra (o próprio Ric), uma enfermeira obstetra (Zeza, que é a sua esposa) e uma doula (Cristina). Muito simples e muito eficaz. Juntos eles assistem partos nas casas das pacientes e, se uma transferência para o hospital se mostra indispensável, Ric como médico fará qualquer tipo de intervenção necessária. Eu pude perceber que esse modelo simples utilizado pela equipe de Ric agregava um valor que as parteiras do meu país, os Estados Unidos, emprestam muita importância, e que denominam de “continuidade de cuidado”. Percebi na arquitetura simplificada e eficiente que adota no atendimento às gestantes de sua cidade um exemplo claro de “modelo que funciona”, e o convidei a participar do meu novo projeto de livro que se chamará “Models That Work”, que congregará experiências transculturais de sucesso na abordagem ao nascimento no mundo inteiro.

Eu fiquei igualmente impressionada pela percepção que Ric tem de seu papel na assistência aos partos. Ele considera o trabalho de parto e o parto como sendo um processo por essência da mulher. Desta forma, ele tende a ficar “fora do caminho” para permitir que a doula e a enfermeira obstetra trabalhem para apoiar a mãe enquanto o processo se desenrola. Ele está lá para auxiliar com sua experiência e conhecimento, caso se faça necessário. Entretanto, gosta de brincar dizendo que sua principal função durante o trabalho de parto é como fotógrafo. Se a mãe escolhe ter um parto hospitalar ele estará lá para dar suporte junto com a enfermeira obstetra e a doula, intervindo, se necessário, com suas habilidades técnicas; o mesmo ocorrerá se a preferência for um parto domiciliar, desde que cumpridas as rígidas regras para assistência ao parto fora do hospital. A principal diferença entre obstetras como Ric e os mais tradicionais e tecnocráticos não é relacionada às habilidades, mas sim às ideologias que determinam sua prática e que estabelecem um atendimento mais baseado em evidências científicas atualizadas. Por seu profundo estudo destas evidências Ric sabe quando as intervenções são verdadeiramente indispensáveis para salvar vidas e quando essas mesmas intervenções vão apenas interferir negativamente no processo do parto e criar complicações. Suas pacientes que utilizaram ocitocina, fórceps, ou mesmo uma cesariana podem ter certeza que essas intervenções foram necessárias e apropriadas. Muitos médicos têm medo do que pode acontecer se apenas deixarem o parto fluir naturalmente, e são treinados para intervir a todo o momento para prevenir um possível desastre. Quando eles intervêem desnecessariamente essas intervenções freqüentemente causam problemas, que acabarão sendo resolvidos, ou não, com mais intervenções. Ao invés de passar por todo esse processo muitos obstetras brasileiros decidem por uma cesariana como primeira escolha, sem maiores reflexões. Poupam desta forma tempo, energia e dinheiro, livrando-se do compromisso mais rapidamente para poder retornar aos seus consultórios e atender seus pacientes privados. Ric teve o mesmo treinamento que eles médicos tiveram, mas durante o seu período de residência teve uma epifania transformadora, a qual ele relata nesse livro. Essa experiência, e as outras que se seguiram, lhe mostrou que o que estava fazendo, como um obstetra tecnocrata, era essencialmente tirar a habilidade e o poder feminino de dar a luz.

Diante desta dura constatação primeiramente ele se viu em choque. Percebeu que sua maneira de conduzir o parto estava equivocada, mas não conseguia encontrar uma alternativa de mudança. Foi então que começou a pesquisar a literatura internacional sobre humanização do parto e a estudar a enorme quantidade de evidências científicas que demonstram os efeitos negativos das intervenções mal aplicadas, assim como os efeitos positivos de uma abordagem não-intervencionista. A partir deste ponto criou o Protocolo de Atendimento Obstétrico Humanizado (PAOH) que estimula as gestantes a andar, manifestar as suas emoções, receber apoio físico e emocional de seus parceiros e da doula, ingerir líquidos durante o trabalho de parto e dar à luz em posições verticalizadas. Além disso, aboliu as intervenções rotineiras não justificadas cientificamente, como enemas, tricotomia, monitorizações eletrônicas, jejum forçado, etc. Ele acompanhou seu trabalho de mais de 15 anos através de estatísticas, realizando relatórios minuciosos de cada parto assistido, e pôde assim ver com clareza o enorme melhoramento nos resultados que essa nova abordagem humanizada estabelecia.

Não importa quão humanizado, quão competente e quão hábil seja, todo obstetra terá, em algum momento de sua carreira, de enfrentar uma morte. Esse momento veio para Ric quando sua cliente e companheira de lutas no terreno do feminino teve uma súbita embolia por líquido amniótico durante um trabalho de parto que até o momento transcorria de forma absolutamente tranqüila. Essa é uma situação que nenhum médico pode prever ou prevenir, e mesmo com todos os esforços de Ric, ambos, mãe e bebê, não resistiram. Sua paciente e amiga veio a falecer de uma infecção adquirida no hospital, quando já estava curada da embolia que a acometeu. Essa tragédia marcou a sua vida desde então, desafiando-o em todos os níveis. Eu também sei o que é ser eternamente marcado pela tragédia – três anos atrás minha filha Peyton morreu em um acidente de carro apenas quatro dias antes do seu 21º aniversário. Um dia Ric e eu estávamos discutindo a importância dessas tragédias gêmeas em nossas vidas, e percebemos que ambas ocorreram no mesmo dia, quase que no mesmo instante. Foi então que percebemos que de alguma forma estávamos ligados no esforço de transcender as tragédias que ameaçam nos destruir, para continuar no nosso esforço de melhorar o atendimento às mães e aos bebês.

Com o tempo, Ric se transformou para mim em um modelo do que pode acontecer com um médico que tem a coragem de pensar fora dos estreitos limites estabelecidos pelo seu treinamento médico e que baseia sua atitude profissional na medicina baseada em evidências científicas e no ato de ouvir e de dar poder às mães durante o parto. Eu já havia escrito um livro sobre o mesmo tipo de transformações que ocorreram nas mentes e nas práticas dos médicos americanos que tiveram a mesma coragem de abrir suas mentes e seus corações. O livro se chama “From Doctor to Healer: The Transformative Journey”.

Esse livro mágico que você está segurando em suas mãos lhe contará as histórias da jornada transformadora de Ric e de seus maravilhosos partos. Aqui você vai poder sentir os resultados magníficos que suas pacientes puderam alcançar por ele estar lá não para controlar, mas para dar apoio e poder a elas. Foi escrito com paixão e amor, e é com paixão e amor que as mulheres que ele atende podem dar à luz no lugar e da maneira de sua preferência. Se todo o obstetra oferecesse às parturientes o mesmo tipo de atendimento que Ric lhes dá não haveria mais necessidade de melhoramentos no atendimento aos nascimentos, ou mesmo de movimentos sociais para criá-los. Mas ainda não é assim que as coisas ocorrem. É minha esperança que este livro ilumine o caminho de muitos outros, para que o sonho de um nascimento essencialmente humanizado e centrado na mulher, que eu e Ric sonhamos, possa se tornar realidade.

Robbie Davis-Floyd

Pesquisadora Sênior, Departamento de Antropologia, Universidade do Texas, Austin.
Professora Associada Adjunta, Case Western Reserve University, Cleveland, Ohio.
Cleveland, Ohio, Fevereiro 2004.

Bio: Robbie Davis-Floyd PhD é uma antropóloga médica especializada na antropologia da reprodução. Como palestrante internacional, ela é autora de mais de 70 artigos e do livro Birth as an American Rite of Passage (1992); co-autora do livro From Doctor to Healer: The Transformative Journey (1998), e de The Anatomy of Ritual (ainda por ser lançado); e co-editora de oito coleções, Techno-Tots (1998); Daughters of Time: The Shifting Identities of Contemporary Midwives (um exemplar triplo especial of Medical Anthropology 20:2-3/4, 2001), and Mainstreaming Midwives: The Politics of Change (ainda por ser lançado). Sua Pesquisa em tendências globais e transformações no cuidado médico, parto, obstetrícia e no trabalho das parteiras é contínuo. Seus projetos atuais abordam mudanças em parteiras e obstetras americanos, mexicanos e brasileiros.

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Prefácio à 3a Edição

Nos últimos anos, a partir do lançamento deste livro, muitos acontecimentos mar­caram a trajetória dos movimentos de humanização do nascimento no Bra­sil e no mundo. Como poderia ser facilmente previsto, os índices de cesariana no nosso País alcançaram o ponto que Maximilian chama de “flipping point”: o momento em que a chance de realizar uma cesariana em um determinado local é a mesma que acertar a face de uma moeda que ficará para cima quando arremessada ao solo. No ano de 2012 as taxas de cesariana atingiram 52% dos nascimentos. Desde que nos erguemos sobre nos­sos membros traseiros para vislumbrar um mundo de possibilidades infi­nitas, o mecanismo complexo do parto foi a nossa mais elabo­rada estratégia. Entretanto, hoje em dia, nascer através de uma grande cirurgia abdominal é mais co­mum do que ter um filho através de um mecanismo fisioló­gico, mecânico, hor­monal e psicológico com mais de cinco milhões de anos de experimentação.

Estaremos, nesse afastamento insidioso de nossa essência humana, caminhando celeremente para uma rota de fracasso, assim como ocorreu em nossa história sempre que desmerecemos as lições que a natureza nos ofereceu?

As transformações no imaginário sempre se processam primeiramente na pa­lavra. É ela quem vai ditar a marcha dos acontecimentos. Assim como ocorreu por oca­sião do surgimento da obstetrícia contem­porânea – onde foi necessária a desvalo­riza­ção sistemática da capacidade feminina de gestar e parir com segurança – o parto imerso na cultura precisava ser depreciado para que sua concor­rente – a ce­sariana – pudesse ser tratada como a “opção prioritária” para o nascimento. As pala­vras acabam desempenhando o papel de arautos de uma nova com­preensão e tradução da realidade. O comportamento tosco das “celebridades” contemporâ­neas apenas desnuda a forma de entender o nas­cimento no mundo atual. Onde antes vicejava a hi­pocrisia – se tudo se mantiver adequado tentaremos o parto normal – e todos sabíamos que a  história terminaria em uma mesa cirúr­gica, hoje existe o cinismo das cesarianas mar­cadas sem qualquer explicação ou justi­ficativa clínica. Mais ainda, produzindo uma reversão completa de valores, tornamos o parto normal uma eventualidade a ser evitada.  Inobstante a imensa quantidade de estudos com­provando os benefícios do parto normal quando comparados à cesa­riana, o parto fisiológico passou a ser entendido como um acidente de per­curso, que pode desviar perigosamente o rumo de um acerto previamente arranjado na forma de gravi­dez→cirurgia→recuperação. Um “acesso de parto” súbito e impre­visível é uma moléstia que pode colocar em risco o percurso “natural” de uma gra­videz, impe­dindo a realiza­ção de uma cesariana que agora se instala na “lógica cyborg”. Neste mundo ciborguificado – fanta­sia ciberné­tica alucinógena de Donna Haraway em “Cyborg Manifesto”- a cesa­riana se impõe como a prótese do parto natu­ral. Mesmo que através de falácias facilmente desmontadas, as cesari­anas são vendidas como a via mais segura, mais simples, mais rápida, mais controlá­vel, me­nos dolorosa, mais ba­rata (no tempo em que se utiliza um leito para parto hos­pitalar se reali­zam cinco ou mais cesarianas) e mais eficiente. Parece ser mesmo o modelo do século XXI. O mecanismo protético que superou o processo natural; ciência superando a natureza.

Resta saber até quando as mulheres se deixarão enganar por um modelo que as mantém afastadas de qualquer decisão, alienadas e dependentes de um poder que as desconsidera. Para além das questões relacionadas à autonomia e à li­ber­dade, esse modelo contemporâneo é responsável por conservar inalteradas as taxas de mortalidade perinatal en­quanto deixa a mortalidade materna acima de qual­quer limite decente ou tole­rável. No dia em que as mulheres perceberem que nessa histó­ria elas são apenas marionetes falantes, manipuladas por interesses outros, e não pelo com­promisso de segurança e qualidade no processo de nasci­mento, talvez te­nhamos uma nova era para o nascimento.

Por outro lado, os anos que nos separam da primeira edição desse livro também foram im­portantes para a solidificação de um movimento internacional de resgate do nas­cimento como evento feminino e fisiológico. Testemunhei o surgimento de inúme­ras organizações nos últimos anos, como a Parto do Princípio (Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa), a ANDO (Associação Nacional de Doulas), os GAPPs (Grupos Apoiados pela Parto do Princípio), a HumPar (Associação Portu­guesa pela Humanização do Parto), o IPU (Instituto Perinatal del Uru­guay) e o IMBCI (International Motherbaby Childbirth Initiative), além da conso­lidação da ReHuNa como a grande organi­zação nacional em prol da humani­zação do nasci­mento. O Núcleo de Parteria Urbana da ReHuNa é um dos novos integrantes dessa rede de organizações que lutam pelo resgate do feminino e pela restituição do protagonismo do nascimento à mulher.

Outro evento especial, a criação da Casa de Parto do Realengo-RJ, foi um marco no estabelecimento de um novo paradigma na assistência ao nasci­mento neste país. Os esforços para a sua manutenção dentro dos moldes de atenção humani­zada são um capítulo fabuloso da mobilização de organizações e profissionais humanistas do Brasil. As agressões sistemáticas contra colegas que apoiam esta iniciativa, por conta de corporações que se sentem ameaça­das, surtiram o efeito contrário: produziram a coesão de profissionais de todo o Brasil (e também do exterior) no auxílio a esta iniciativa, gerando uma avalan­che de apoios, manifesta­ções de adesão e ajuda, tanto explícitas quanto públi­cas. A partir desse episódio fortaleceram-se os grupos de profissionais huma­nistas, criando-se instrumentos de proteção profissional, para garantir amparo àqueles que desejam trabalhar com respeito à fisiologia do parto, restituindo o protagonismo à mulher. O resultado dessa luta foi o incentivo a uma visão integrativa do nascimento e às condutas respaldadas pela medicina base­ada em evidências.

A criação do programa “Rede Cegonha” pelo governo federal, e a participação de pessoas com perfil humanista na elaboração de projetos em nível federal para a saúde da mulher é outro fato que só pode nos encher de esperanças. As teses, outrora “radicais” ou “irreais” propagadas por profissionais ligados à ReHuNa agora são modelos admirados e perseguidos pelos gestores da saúde feminina do Brasil. Aos poucos, o que antes era o so­nho de poucos apaixona­dos tornou-se política oficial do Ministério da Saúde. Mesmo sentindo tristeza diante do descala­bro da assistência fria, autoritária e por ve­zes violenta a que são submetidas mu­lheres no Brasil no momento sublime de trazer vida à luz, é gratificante lembrar-se dos inúmeros obstetras, enfermeiras obstetras, parteiras tradicionais, obstetrizes, doulas, epidemiologistas, pediatras, psicólo­gas, nutricionistas, fisioterapeutas e tantos outros profissionais que dedicam sua vida a oferecer qualidade, afeto e se­gurança no seu trabalho cotidiano com a humanização do parto. Não há como de­sanimar; o trabalho árduo de res­gatar a porção de humanidade que se esvai pela coisificação do nascimento precisa de profissionais apaixonados e firmes.

A verdade é que ainda muito há que fazer. Uma recente pesquisa da FIOCRUZ demonstrou que mais de 27% das parturientes deste país atendidas pelo sistema público, e 17% das mulheres do sistema privado, relatam terem sido submeti­das a algum tipo de violência durante sua estada no hospital. As práticas insti­tucionais violentas são de todos os tipos: verbais, morais e até as físicas. Esta investigação apenas deixa claro que o evento do nascimento ainda carrega os preconceitos, violências e arbitrariedades construídas pelos séculos de visão sexista e diminu­tiva da mulher. Melhorar estas condições para transformar o nascimento num evento positivo é nossa tarefa.

Existem inúmeras formas de estimular a mudança de modelo de assistência ao nascimento através de estratégias complementares e não-excludentes.  Aqui es­tão as minhas sugestões, conforme publiquei no capítulo “Team Work” do livro “Birth Models that Work”, de Robbie Davis-Floyd:

  1. Atuação Governamental: Os governos centrais devem ser os grandes esti­muladores de mudanças sistêmicas e abrangentes. Para isso é fun­da­mental que existam critérios bem definidos para a implementação de polí­ti­cas de humanização. O objetivo dessa proposta é de que não se confunda “humanização do nasci­mento” com uma proposta de cesarianas profiláti­cas, anestesia peri­dural para todas ou outras ações que não favoreçam a resti­tuição do protagonismo do nascimento à mulher. O encaminhamento por parte do governo poderia iniciar com um processo lento e gradual de des­centrali­zação das unidades obstétricas, com o estímulo à criação de Casas de Parto desmedicalizadas, um reconhecimento do parto domiciliar assis­tido e com sistemas de referência ágeis, campanhas nacionais de su­porte ao parto normal e apoio aos médicos e enfermeiras que atuam em concor­dância com os protoco­los de assistência baseados em evidências. Além disso, a humanização do cuidado à saúde de forma global deve ser esti­mulada e financiada, através de modificações arquitetônicas nos centros obstétricos dos hos­pitais (a inclusão de piscinas de parto seria um grande passo) e pelo es­tímulo constante na educação continuada dos profissionais da saúde que atendem nos hospitais públicos.
  1. Atuação do Aparelho Formador: A modificação lenta e gradual de um pa­radigma iatrocêntrico (centrado no médico), etiocêntrico (centrado na patologia) e hospitalocêntrico (centrado no hospital) por um modelo mais moderno e de melhores resultados, como o modelo de parteiras, é uma das ações que pode ser realizada em longo prazo. Não é possível mais admitir que profissionais alta­mente treinados e qualificados para atender as patolo­gias sejam desviados para a atenção ao parto normal, que é um evento fi­siológico. O modelo das parteiras tem uma relação custo/benefício melhor, além de produzir resultados superiores, o que se pode comprovar pela dife­rença entre índices de morbi-mortali­dade de países desenvolvidos da Amé­rica e Europa. Cabe às universi­dades discutir essa realidade e investir na formação de parteiras profis­sionais, afim de lentamente mudarmos para um modelo mais racional e coerente. É igualmente importante criar um currí­culo humanista nas fa­culdades de medicina, enfermagem ou obstetrícia, enfatizando os aspectos relacionais e emocionais do processo terapêutico. Por fim é fundamental uma vinculação vigorosa com a Medicina Baseada em Evidências, exa­ta­mente porque ela é capaz de colocar freios às muitas mitologias in­consis­tentes que vicejam na obstetrícia contemporânea. Os ri­tuais de em­podera­mento de profissionais e instituições que percebemos na atenção à parturi­ente frequentemente servem como potentes desempode­radores das mulhe­res e seus bebês, não oferecendo a proteção que apre­goam, além de acrescentar riscos ao processo.
  1. Atuação do Terceiro Setor (ONGs): Para que estas iniciativas te­nham su­cesso é importante que haja interlocutores eficientes desta nova men­sa­gem. Para isso será necessário fortalecer as organizações não gover­na­mentais que trabalham pela humanização do nascimento, para que sirvam de ponte de ligação entre os desejos das mulheres e as diretrizes gover­namentais. Sem esses “pontos de intensificação” os sinais isolados tornam-se frágeis e débeis, impedindo que as demandas cheguem ao seu ende­reço. O fortalecimento e a unificação destas instituições são vitais para a construção de um novo modelo centrado na mulher. A unificação dos pro­fissionais humanistas do Brasil em torno da ReHuNa é um exemplo mundi­almente reconhecido de organização em prol dos ideais de renovação do modelo obstétrico.
  1. Atuação Educativa: Esse é o capítulo mais fundamental e mais com­plexo. Não existe modificação social profunda que não passe pela alte­ração das pessoas; não ocorrerá humanização do nascimento se não for através das mulheres. As mudanças de cima para baixo têm caráter autoritário, e desta forma os resultados obtidos só poderão ser fugazes e inconstantes. As verdadeiras e profundas alterações vêm na esteira de uma nova consci­ência, e por essa razão são lentas e graduais. Não se alteram valores e mi­tos (como o mito da transcendência tecnológica) através de decretos; eles só podem ser substituído quando uma nova vi­são social estiver apta para completar as lacunas do nosso imaginário. As mulheres são as grandes responsáveis pela alteração do paradigma, e por esta razão o diálogo com os grupos feministas, de mães, de con­sumidoras, etc., assume um caráter vital para o sucesso das iniciativas.
  1. Atuação Individual: No início dos anos 90 eu trabalhava em um pe­queno hospital militar no qual atuavam três obstetras. Eu e meu colega M. éramos vivamente interessados em realizar um trabalho diferenciado, ba­seado nas evidências médicas atualizadas, no apoio ao parto normal e res­peitando o protagonismo das mulheres. O terceiro colega era um interven­cionista con­victo que não aceitava os pressupostos da humani­zação, pois acreditava firmemente na inferioridade biológica da mulher. Um dia eu ob­servei ao meu colega M. que nós dois compúnhamos 66% de todos os atendimentos do centro obstétrico e que uma modificação nos resultados obstétricos da­quele hospital dependia apenas da nossa iniciativa. Na época nossa pe­quena maternidade ostentava a vergo­nhosa cifra de 45% de cesa­rianas. Não podíamos convencer o nosso colega a trabalhar do nosso modo, pois que ele não acreditava nos valo­res que defendíamos. Decidi­mos, então, que nós dois criaríamos um protocolo de trabalho simplificado para diminuir a incidência de cesaria­nas. Ele consistia de quatro pontos:
  1. Toda indicação de cesariana precisava ser discutida com o colega,
  2. Os partos seriam preferencialmente verticais,
  3. As pacientes teriam o direito a um acompanhante de livre escolha,
  4. As condutas seriam baseadas nas evidências científicas atualizadas.

Apenas nós dois utilizamos aquele modelo, enquanto nosso colega con­ti­nuou com seu modelo pessoal de atenção ao parto. Pois com aproxi­mada­mente dois terços dos atendimentos sendo realizados neste proto­colo sim­ples, em dois meses nosso índice de cesarianas pulou de 45% para 22%. Certamente aquela pequena unidade médica militar foi, por poucos meses, a de menor incidência de cesarianas do nosso estado. A que valor chegarí­amos se tivéssemos os três médicos atuando em conjunto? Esta singela iniciativa mostrou o poder das deci­sões individuais (no caso, de uma dupla de médicos) para produzir mo­dificações significativas, mesmo que em pe­quena escala. Infelizmente como esse modelo dependia da iniciativa pes­soal (e não institucional) ela voltou à estaca zero depois da minha saída do hospital. Entretanto, os resultados animadores dessa proposta mostram que iniciativas em pequeno nível são capazes de produzir resultados. Ja­mais podemos negligenciar o poder da iniciativa pessoal, principalmente quando esta é movida pela paixão transformadora. As palavras de Marga­reth Mead continuam sendo um estímulo para aqueles que lutam contra poderes estabelecidos e estruturas monolíticas de poder: “Nunca duvide da capacidade de um pequeno grupo de dedicados cidadãos para mudar os rumos do planeta. Na verdade, eles são a única esperança de que isso possa ocorrer”.

Para finalizar, espero que os anos que se aproximam fortaleçam os movimen­tos de resgate do feminino, aproximando de uma forma definitiva os ativistas que la­butam nas áreas do parto humanizado e da amamentação. O “continuum da hu­manização” deve ser cada vez mais valorizado e respeitado, pois que a própria continuidade da nossa espécie depende da forma como entendemos o processo de reprodução. Desmerecer a complexidade e a delicadeza das forças adaptativas que criaram a estrutura física e psicológica desse ser único e revolucionário cha­mado “homem” pode ser o nosso derradeiro equívoco.

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Introdução

O sol entrava pelo vidro duplo da janela do sótão, fazendo estranhos desenhos geométricos no carpete. No quarto acanhado, distribuí meus poucos pertences sobre a cama. Livros, roupas para o frio, minha câmera fotográfica e meu indefec­tível laptop. Na rua, a neve descoloria a paisagem, enchendo de branca monoto­nia os jardins das casas. Esquilos brincavam subindo e descendo a árvore, cujos galhos espiavam minha janela. As residências sem grades me causavam o incô­modo contraponto visual com as ruas da minha própria cidade, onde vivemos en­clausurados, envoltos em barras e muros, prisioneiros de nossa desigualdade so­cial.

Apesar da tristeza pela passagem por São Paulo, onde tive uma lição de desespe­rança absolutamente desnecessária, acordei aquela manhã em Cleveland com uma maravilhosa sensação de realização. Na noite anterior, telefonei para casa, avisando de minha chegada aos Estados Unidos, e Zeza imediatamente me falou do parto de “nossa” paciente.

— Nasceu o bebê de Pramuda. Foi tudo muito bem.

Não pude conter um suspiro de alívio. Depois abri os braços, em pleno restau­rante, e gritei: “Maravilha!”. Pramuda esperava seu segundo bebê e estava com 40 semanas e cinco dias. Seu primeiro nasceu em casa, já passados cinco anos. Na­quela ocasião, estávamos eu e Zeza tomando conta do trabalho de parto. Havia sido a primeira vez em que Zeza acompanhara um parto domiciliar, e depois do nascimento do pequeno Luis ela me confessou que ficara totalmente encantada. “Nascer em casa é uma outra história”, me dizia ela.

Daquela vez, ela e Cristina deram conta do recado. Ainda emocionada, ela me contou os detalhes principais do parto. Falou do medo, da preocupação, dos cui­dados, da sensação de impotência, das orações, da fé e da paciência. Falou tam­bém dos instantes de emoção incontrolável logo após o nascimento do pequenino.

— Foi o meu rito de passagem — disse ela ao telefone.

Eu tive uma imensa sensação de orgulho e júbilo. Zeza havia cruzado sua fron­teira pessoal e havia também crescido, junto com quem auxiliara. O nascimento humano é realmente uma ferramenta das mais poderosas para o processo de transformação.

Olhei para Robbie e os amigos em torno da mesa e lhes contei a história toda. Acabei me entusiasmando e falei das dificuldades da prática obstétrica humani­zada. A conversa acabou recaindo sobre todos aqueles que, diante de uma grande descoberta, sofreram a dor de carregarem um grande fardo. Estes eram os verdadeiros “super-heróis”, que levavam seu saber através de uma longa jornada e sentiam na própria carne o sofrimento que ele produzia. Outros personagens da história da medicina mereceram nossos comentários, até que chegamos ao meu preferido: o Grande Inácio, de Budapeste.

— Como poderia ser ele culpado de algo? — perguntei eu. — Ele foi um exemplo de mártir pela causa das mulheres. Qual seu erro, se sempre perseguiu os ideais de uma medicina mais humana e mais científica?

— Ele também teve a sua culpa, Ric. Faltou-lhe a temperança, além da necessária serenidade. Acabou vítima de sua própria descoberta. Não a descreveu da melhor forma. Guardou para si a sua indignação e fez do rancor a principal causa para a perda de sua sanidade. Ele deveria ter escrito suas conclusões, desde o princípio. Deveria ter apresentado aos colegas seus documentos, suas provas e estatísticas, mesmo que estes não os considerassem. Bateu de frente contra os poderosos, mas, em vez de seduzi-los lentamente com suas ideias, optou por combatê-los. Pecou pelo silêncio ou pelo modo atabalhoado e agressivo com que expunha seus conceitos.

Robbie foi firme e dura ao me dizer isso. Queria me mostrar que mesmo os gran­des homens podem falhar, se não souberem agir ou não tiverem generosidade suficiente para transmitir seu saber. Estávamos falando de Ignaz Phillip Semmel­weiss, médico húngaro que descobriu a origem contagiosa da febre puerperal no Hospital Geral de Viena, em meados do século XIX. Nunca conseguiu saborear o sucesso de sua descoberta porque, afastado do hospital e tratado como indigno para a função de médico obstetra, voltou para a Hungria, onde morreu vítima de septicemia, a mesma enfermidade que ele tanto tentou combater em suas paci­entes. Em seus últimos anos, estava insano, triste e amargurado, talvez maltra­tado pela culpa de não ter podido auxiliar as mulheres a quem atendeu. Durante décadas, carregou solitariamente, a chave para a salvação de muitas mães re­centes que morriam nos hospitais vítimas de infecções pós-parto. Muitos anos ainda se passariam para que suas conclusões fossem respeitadas e entendidas. Os paralelos com a iatrogenia hospitalar contemporânea sempre me impressiona­ram, assim como o pesado fardo que o levou primeiramente ao ostracismo, depois ao sofrimento e à loucura. É, sem dúvida, meu maior ídolo na obstetrícia, mas Robbie me apontava as falhas humanas que até os gênios carregam.

Flashback

Vejo-me deitado no divã da pequena sala no consultório de minha analista Eliana. Minha análise se iniciou quando da minha opção aberta pela homeopatia e pelas práticas alternativas no parto. Era preciso um suporte, um amparo, uma ajuda para poder atravessar esse caminho árduo que é a troca de um paradigma mé­dico. Sem essa ajuda, minha travessia seria muito mais dolorosa. Sem essa “doula”, é provável que minha caminhada pela medicina fosse muito mais dolo­rosa.

Com os olhos pregados no teto, choro a dor da incompreensão. A agonia maior é a da solidão, a falta de interlocução; a penúria de ouvidos compreensíveis. Falo da minha indignação diante de um modelo absolutamente apartado das verdades científicas e das necessidades das mulheres, movido por uma ideologia essenci­almente misógina. Não conseguia entender porque quase ninguém entendia o que eu tinha para dizer. Eliana sorri para mim e pergunta:

— E o que você escreveu a este respeito? Acha mesmo que ficar gritando aqui essas ideias é suficiente para modificar a realidade? Acha que é correto apontar desvios sem mostrar caminhos?

Fico em silêncio e me obrigo a concordar com sua observação.

Outro flashback

Minhas pálpebras cansadas recebem o brilho ofuscante e colorido da tela do com­putador. Já são mais de 11 horas da noite, e ainda estou no meu consultório, es­crevendo mensagens para as listas de discussão de parto natural. Através das linhas cibernéticas, conto para os meus amigos de longe uma história que me co­moveu muito e que me auxiliou a entender a dinâmica espiritual, afetiva e social do nascimento. Eu me encontrava em Recife, em 2001, como consultor em huma­nização do nascimento para os médicos do CISAM, hospital situado na divisa de Recife com Olinda, que atende um dos principais bolsões de pobreza daquela ca­pital brasileira. No centro obstétrico (CO), acanhado e apinhado de pacientes, foi criada a determinação de permitir a entrada de acompanhantes junto às grávidas, porque se percebia nessa iniciativa mais do que uma maneira de tranquilizá-las: entendia-se como um direito humano inquestionável. Assim, fui levado para lá exatamente porque a direção do hospital era simpática às ideias de humanização no atendimento às gestantes.

Em uma tarde de plantão no hospital, escutei uma cantoria vinda de um dos bo­xes, onde se encontrava uma grávida acompanhada de sua mãe. Voltei minha atenção imediatamente para lá, tentando entender do que se tratava. Era um cân­tico religioso, desses que são cantados em igrejas evangélicas. Imantado pelo som, abro a cortina de plástico que separa o box do corredor e vejo uma mãe con­centrada e de olhos fechados, cantando enquanto segura a mão de sua filha. Esta contrai o rosto a cada contração, imaginando diminuir suas dores de parir. Ao me ver adentrando a intimidade do pequeno espaço, a mãe imediatamente interrompe seu canto. Envergonhada, leva a mão à boca e diz:

— Desculpe doutor. Não queria incomodar. Essa canção é um louvor a Deus e um pedido de proteção para a minha filha. Desculpe atrapalhar; apenas tentava auxi­liar minha pequena, que está sofrendo para ter seu primeiro bebê.

Olho para a menina que está deitada ao lado. Não tinha mais do que 15 anos. Sua face exprimia dor e cansaço, mas parecia colada à mão de sua mãe. Fazia com ela uma união de corpos e almas, resgatando inconscientemente uma das mais antigas tradições da humanidade, qual seja, uma mulher sendo auxiliada por sua própria mãe a parir, e assim manter a humanidade, tarefa da qual todas as mulhe­res são devedoras. A candura e a profunda beleza da cena ficaram impregnadas na minha memória. Constrangido, quase nada pude dizer.

— Desculpe, minha senhora. Por favor, continue a cantar. Eu adoraria acompa­nhá-la, mas não conheço essa música. Sua presença aqui é muito importante para a sua filha. Não interrompa seu canto por minha causa.

Fechei a cortina e saí de perto, esperando que a mãe continuasse seu cantar, e nunca mais esqueci a voz daquela mulher simples e de seu canto melodioso, nem a intimidade verdadeiramente feminina dos dedos entrelaçados de mãe e filha.

Escrevi essa mensagem na lista de discussão com lágrimas nos olhos, porque percebia que pequenas atitudes muitas vezes são fundamentais para auxiliar uma mulher que está passando pelo mais fantástico ritual de passagem que um ser humano pode atravessar. Por outro lado, quantas pessoas estariam habilitadas a compreender o significado transcendental desta cena? Recebo como resposta na lista de discussão a frase:

— Ric. Você tem algumas histórias tão bonitas. Por que não escrever um livro so­bre elas?

Mais um flashback

Estou em um estúdio de televisão de minha cidade. Fui convidado a trazer minha opinião, como ginecologista, sobre o mau humor. Queriam que eu falasse das modificações hormonais da pré-menstruação e as consequentes alterações com­portamentais e psíquicas que as mulheres experimentam nesse período. Ao meu lado e em frente às câmeras, estão escritores, diretores de cinema, psicólogos e publicitários. A conversa acaba se concentrando na dor e sua potencial capaci­dade construtiva. Resolvo extrapolar os limites impostos à minha fala como gine­cólogo e decido discorrer sobre o sofrimento através de outro viés. Trato do mau humor como a “dor da inconformidade”. Tento mostrar que as transformações do pré-mênstruo possuem valor metafórico e simbólico, e que devemos sempre estar atentos a essas mensagens. Continuo minha fala observando que a dor é a mãe de toda a genialidade. Digo que Proust, Nietsche, Dostoievski, Virginia Woolf, en­tre tantos literatos (como Roger Jones, meu irmão e notório ranzinza), eram mal humorados e que a literatura era uma forma de “exorcismo”, capaz de aliviar suas dores. Terminei dizendo que a dor é a professora mais gabaritada do nosso pla­neta e que suas lições devem ser apreendidas em um sentido construtivo, para que através de seus ensinamentos possamos dignificar nossa expiação.

Mal sabia eu quão proféticas eram essas palavras.

*   *   *

A morte trágica de V. por uma infecção causada por varicela zoster em um hospi­tal da minha cidade e os tristes fatos que se sucederam foram o estopim para a minha determinação em escrever. Era fundamental que eu deixasse minhas pala­vras a respeito do nascimento humano e suas consequências médicas, sociais, psicológicas e humanas. Não poderia me permitir incorrer no mesmo erro dos que se calaram em função da dor, da indignação, da tristeza e da injustiça.

Pensei muito nos meus filhos ao escrever este livro porque queria que eles enten­dessem que, mesmo sofrendo, ainda existem suficientes razões para continuar na caminhada e lutar pelos ideais. Eles foram minha mais constante motivação. A eles eu dedico minhas histórias, porque sei que eles serão os que continuarão a construção de uma nova humanidade depois que eu me for.

As histórias deste livro são crônicas escritas nos momentos de tristeza e solidão que passei nos últimos três anos. Fazia uso da palavra escrita como o melhor analgésico para a minha dor. Os piores momentos de desesperança e tristeza os passei grudado a uma tela de computador, trocando mensagens e ideias com os amigos do mundo inteiro. Eles foram o esteio e a mão amiga nas piores horas. Muitas das histórias aqui relatadas foram originalmente escritas em madrugadas solitárias nas listas de discussão das “amigasdoparto”, do “partonatural”, do “par­tonosso” e das “maesempoderadas”.

As crônicas e os textos aqui apresentados não obedecem necessariamente a uma ordem cronológica, e assim podem ser lidos sem uma preocupação rigorosa com continuidade. São basicamente histórias de nascimento. Trazem a visão de um obstetra humanista na sua caminhada transformativa. São também uma ótica masculina sobre um evento visceralmente feminino. Os nomes das pessoas que compõe as histórias relatadas neste livro foram trocados, em sua maioria, para resguardar a intimidade que deve sempre cercar um evento tão significativo e pessoal quanto o parto. Minha sincera intenção ao contar minha história pessoal através dessas narrativas foi traduzir uma ínfima parte do encantamento que o nascimento humano é capaz de produzir no coração de quem se permite sentir.

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