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Afinal, quem faz o parto?

Acredito que essa é mais uma daquelas perguntas que enseja uma resposta fácil. Entretanto, toda pergunta complexa recebe dos incautos uma resposta imediata e simples… e invariavelmente errada.

Este é um tema que agitou as mentes de diversos “pensadores do parto”, uma casta de profissionais que investiram seu tempo no estudo da arqueologia do nascimento, as origens profundas de sua arquitetura. Se é verdade, como dizia um deles – Michel Odent – que “Parto faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, então a forma como os fenômenos relacionados ao parto operam devem ser semelhantes àqueles que agem sobre a sexualidade humana, em especial a feminina. Desta forma, sobre uma base instintual, que compartilhamos com todas as formas de vida sexuada desse planeta, é acrescida em nossa espécie uma fina camada de razão, um tênue verniz de massa cinzenta aplicado sobre as construções milenares do nosso cérebro. Entretanto, a despeito de sua singela espessura, ele foi capaz de nos oferecer o grande diferencial entre todas as criaturas que compartilham conosco desta biosfera.

A razão associada à carga instintual – agora chamada de pulsão – nos mostra fenômenos híbridos em sua manifestação. Tanto o sexo quanto o parto ocorrem de forma espontânea, mas seguros pelos finos cordéis da razão. Nem racional, pois que seria insípido, nem “natural” ou instintivo, pois que seria brutal. Os fenômenos sexuais, entre eles o parto, carregam desta forma elementos complexos e únicos, pois que demonstram de uma forma inequívoca a constituição última de nossa alma. Daí surge, no que diz respeito à “Humanização do Nascimento”, um ponto de tensão. Se aceitarmos a dualidade entre pulsão e razão na sua construção, devemos aceitar que o parto há muito deixou de ser “natural”, ou seja, afeito às leis da natureza e subordinado aos seus condicionantes. Portanto, “partos naturais” são vedados à nossa espécie, prisioneira que está da linguagem e dos elementos simbólicos que daí decorrem. Por outro lado, mesmo que tenham deixado sua naturalidade ao adentrar à linguagem, ainda são fortemente determinados pelas forças violentas que, em última análise, procuram de todas as formas perpetuar a vida. Pois, “mesmo o padre eterno, que nunca foi lá, olhando aquele inferno vai abençoar”.

Assim, o que observamos no parto é um espetáculo único, onde a disputa entre estes dois aspectos da alma humana digladiam para exercer seu domínio. De um, lado milhões de anos de construção de processos, reprodutivos automáticos e irracionais, que culminam com a expulsão da cria. Do outro lado, milhares de anos de trânsito na hominalidade nos oferecem pensamentos lógicos e racionais, experiências pregressas, memórias e traumas a condicionar nosso pensamento na busca por proteção contra o medo inexorável que nos acompanha nestes momentos. Essa disputa terrível, que ocorre na mente da mulher que está parindo, produz necessidades de ordem afetiva que se expressam em sua atitude e nas suas palavras.

Para ilustrar estas perspectivas prefiro contar duas histórias que me ocorreram. Na primeira delas, fomos atender uma paciente em sua casa, com uma gestação à termo, por causa das contrações desconfortáveis que ela relatava, mas logo ao chegarmos percebemos que elas não eram fortes e sequer muito frequentes. Todavia, quando examinei a paciente me assustei ao ver que ela já tinha alcançado 8 cm de dilatação. Teoricamente, pouco faltava para a expulsão. Por esta razão, ficamos várias horas na sua casa aguardando as contrações finais, mas percebemos que as contrações se mantiveram fracas e infrequentes. Foi nesse momento que tive uma espécie de insight: “As contrações não deviam ocorrer de acordo com as minhas expectativas, mas a partir de uma ordenação que não deve estar sob meu controle. Não é a minha presença ou o meu olhar que determina a força contrátil do útero.” Eu estava certo: com o tempo as contrações foram escasseando e resolvemos voltar para casa e aguardar que o processo ocorresse por sua própria determinação. Durante uma semana fizemos avaliações diárias de bem estar fetal e, finalmente, o bebê nasceu 8 dias depois em um trabalho de parto de alguns poucos minutos.

Diante disso passei a enxergar o fenômeno sob outra perspectiva. Não apenas a minha vontade (e a angústia que se produzia a partir dela) não ajudava as contrações como minha presença provavelmente tinha um efeito inibidor. “É forçoso reconhecer que, em muitas vezes, sou eu quem atrapalha o processo com minha presença”, pensei. Sempre que uma paciente procura oferecer seu parto e sua “eficiência” a um olhar alheio ela deixa de aceitar que ele se forma a partir de uma produção autógena e própria.

O segundo relato é também sobre os olhares alheios e o quanto eles modificam o evento que observam. Robbie Davis-Floyd, antropóloga do parto e reprodução, tem uma história bonita sobre o nascimento do seu segundo filho, que ocorreu em casa depois de uma experiência traumática de uma cesariana anterior. Quando foi ter seu segundo filho decidiu que o teria em casa, para fugir das rotinas insensatas que, segundo ela, levaram seu parto a se transformar em uma cesariana. Durante muitas horas do seu trabalho de parto ela esteve acompanhada por várias pessoas em seu quarto: uma fotógrafa, duas parteiras, seu marido, a melhor amiga e as entradas ocasionais de sua filha pequena. O trabalho de parto foi árduo e doloroso, e por várias vezes pensou em desistir. Pela cesariana prévia, havia também um temor silente que percorria a consciência das parteiras, mas que, apesar disso, se mantinham confiantes.

Num determinado momento foi sugerido que ela poderia estar com a bexiga cheia, e foi pedido que tentasse aliviar a pressão. Diante da sugestão das parteiras foi até o banheiro e ficou sentada no vaso, com a torneira aberta, esperando que surgisse o desejo de urinar. Antes mesmo que isso viesse a acontecer teve uma contração forte, talvez mais forte do que todas as anteriores. Gemeu silenciosamente durante sua dor, e nesse momento teve uma “revelação”.

“As contrações aconteciam mesmo quando eu estava sozinha. Descobri que elas independem da plateia que as assiste. Esse sempre foi um assunto só meu; não é algo que devo oferecer a eles; só eu posso dar conta desse parto”. Para ela esta foi a chave que a fez “destravar” o processo: a permissão para que o nascimento ocorresse no seu próprio tempo e labor, e não pelo impressão que causa nos outros, pela expectativa de quem o observa de fora. A partir daquele momento as contrações se modificaram, sua atitude se transformou e pouco tempo depois conseguiu parir seu bebê.

“Parto é algo que as mulheres fazem”, já dizia Michel Odent respondendo a pergunta inicial, mas o fazem por uma construção inconsciente, por um motor que tanto está em si quanto fora de sua vontade. “É a mulher quem o faz, mas este controle está para além dela, e se expressa através dela”. Esta é a magia inerente de cada nascimento: a submissão a uma ordenação superior, maior do que nossos próprios desejos de controle. Essa mistura entre as forças eróticas poderosas e a razão que nos aprisiona contém os segredos mais profundos do nascimento humano. Para nós que buscamos auxiliar, saber que somos pequenos diante desse espetáculo é peça fundamental para compreendê-lo, mesmo quando tal compreensão apenas arranha a superfície de seu mistério. Entender que nossa participação enquanto cuidadores deve ser silenciosa, atenta e respeitosa, é aceitar humildemente o que nos cabe no grande concerto da vida.

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Parto: passado, presente e futuro

O movimento de humanização do nascimento não se produz num vácuo conceitual mas, pelo contrário, surge no bojo das profundas transformações do pós guerra no que diz respeito à topografia dos gêneros no mercado de trabalho, nos costumes, nos direitos sobre o corpo e nas questões relativas à sexualidade – incluindo aí a contracepção e o ciclo gravídico-puerperal. Nos anos 70-80 pela primeira vez se tornou possível mensurar de uma forma metódica e abrangente o resultado da invasão tecnológica sobre o parto ao confrontarmos os resultados obtidos pela institucionalização do parto com sua versão artesanal e domiciliar que foi o modelo hegemônico por toda a história da humanidade. Por esta razão nesta época apareceram no nosso horizonte os primeiros contrapontos ao modelo vigente.

No que diz respeito ao terreno das ideias, a partir desse período podemos beber nas fontes de Grantly Dick-Read, que tratou da ambiência do parto e suas repercussões (em especial o ciclo medo-tensão-dor) e o parto como fato social, Fernand Lamaze e os domínios do consciente sobre o parto, Frederick Leboyer com a perspectiva do recém-nascido e o conceito de “imprint”, Michel Odent com seus estudos da etologia e os efeitos da ocitocina para o psiquismo materno e Robbie Davis-Floyd com sua perspectiva ritualística (mesmo quando inconsciente) aplicada à atenção do parto. Estes foram personagens e ideias que produziram o arcabouço ideológico que fomentou nossa perspectiva teleológica do processo de nascimento. O modelo humanista, surgido do caldo de ideias desses pensadores, ocorre em contraposição à crescente alienação das mulheres no ato de parir e o domínio da tecnologia sobre seus corpos.

Certamente que a tarefa de desconstrução sobre o modelo tecnocrático de atenção ao parto só poderia ocorrer de forma conflituosa, porque sobre o corpo das mulheres existem claras demarcações, zonas de domínio, que são a própria estruturação do modelo patriarcal. Desta forma, o movimento de humanização passou por etapas cujo reconhecimento é extremamente essencial para sua continuidade. Também é importante entender que, como todo fenômeno social, estas etapas não são estanques e são intercambiáveis no tempo e no espaço.

A primeira etapa é o que eu chamo de “Acolhimento“. O acolhimento vai ocorrer quando um sujeito, vítima real de uma situação ou contexto, procura a ajuda de pessoas que possam lhe escutar e entender suas feridas e traumas. Os primórdios da humanização do nascimento, desde o início das “list servers” sobre parto humanizado, eram recheados de histórias e relatos de partos onde a dignidade e a autonomia das mulheres e bebês foi claramente ofendida. Era tarefa dessa comunidade acolher as vítimas de um modelo de atenção que lhes parecia violento e insensível. O problema é que o ser humano tem mecanismos de satisfação que lhe permitem obter vantagens pela sua condição de vítima, seja por benefícios ou privilégios. Essa atitude é muito primitiva em nós, bastando para isso ver uma criança que chora copiosamente ao cair, sabendo que isso significará um ação acolhedora da mãe. Com o tempo esta atitude pode se tornar padrão de comportamento, criando uma criança manhosa, que percebe na sua condição real (ou fantasiosa) de vítima uma chance de receber o prêmio do carinho que deseja. Na atenção ao parto muitas mulheres se recolhem na condição de vítimas do sistema e o movimento de humanização às acolhe, gerando um circuito que oferece a elas um gozo pela sua condição.

É evidente que esta ação não pode perdurar porque uma regra básica das relações humanas é que a pessoa que se encontra na condição de vítima não pode ser protagonista, uma condição antagônica a esta posição. Desta forma o padrão maternal acolherá a criança ou o adulto vítima e lhe dará o cuidado necessário para sua proteção e recuperação, mas manterá o sujeito preso a um vínculo de dependência. Somente a posição paternal subsequente poderá livrar o sujeito dessa condição, obrigando-o a uma posição proativa. É importante notar que posições maternais e paternais se referem às funções e não aos personagens mãe e pai e muito menos às identidades de mulher e homem.

Essa condição de vítima é geradora de ressentimentos e o ressentimento vai produzir o segundo passo neste processo que é o “Punitivismo“. Esta foi uma tendência marcada nos primeiros anos do movimento de humanização. Se conhecíamos as vítimas de uma atenção inadequada por certo que haveria aqueles a quem culpar, em especial os que detém mais poder e conhecimento autoritativo. Nessa etapa muito se discutia sobre as punições devidas aos médicos e hospitais que utilizavam de forma exagerada e insensata os recursos tecnológicos. Da mesma forma como o enxergamos nos problemas sociais, o punitivismo na obstetrícia se baseia na crença que o aumento ou alargamento das punições sobre médicos e hospitais poderia garantir uma maior qualidade da atenção, pela simples eliminação da impunidade. Décadas de observação e inúmeras experiências nos mostram que esta é uma estratégia equivocada e de resultados pífios. Se punir quem vendia álcool na lei seca não diminuiu seu consumo, porque a punição aos médicos poderia trazer qualquer benefício, em especial quando sabemos que eles são igualmente reféns do “imperativo tecnológico” que os mantém prisioneiros de um modelo tecnocrático e intervencionista, mesmo quando têm pleno conhecimento de que não é o mais adequado.

A etapa seguinte eu chamo de “Idealismo”. Esta etapa ocorre quando vemos o florescimento de uma enorme quantidade de ideias e propostas relacionadas à atenção ao parto. Começamos a nortear nossas ações centrados nos trabalhos, pesquisas e estudos de ideólogos e pesquisadores que produziram um olhar desafiador sobre o parto. Assim, o “parto Leboyer” surgiu como uma prática – repleta de variantes – a partir das ideias do obstetra francês Frederick Leboyer. Alguns anos após, outro francês, Michel Odent, nos convidava a refletir sobre nossa ancestralidade e as reais necessidades de uma gestante em seu momento de parir. A partir deles, muitos outros vieram, entretanto, como pode ser facilmente observado, “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam”. O livro de Robbie “Birth as an American Rite of Passage” foi publicado há mais de 30 anos, e nessas três décadas o cenário do nascimento humano no mundo ocidental apenas piorou no que diz respeito à autonomia das mulheres, mesmo com grande acúmulo de perspectivas inovadoras e estudos que as embasam. As taxas de cesariana no Brasil chegaram a um platô que se situa entre 55 e 57% e não conseguem descer abaixo disso, inobstante algumas boas iniciativas de algumas instituições e poucos profissionais. Intervenções continuam em alta, apesar de inúmeras publicações demonstrando sua inutilidade e mesmo seu efeito deletério para o binômio mãe-bebê

Fica evidente que as ideias são incapazes – por si só – de promover mudanças. Por mais que os médicos saibam da inutilidade da episiotomia, da alta taxa de cesarianas, dos enemas e da posição de litotomia, o simples reconhecimento desses erros não os leva a mudanças significativas em suas atitudes. Esse tipo de pensamento idealista nos levou a fazer “caravanas” pela humanização do nascimento no início do século, baseados na ilusão de que a simples confrontação com a verdade das pesquisas seria capaz de imprimir novas condutas médicas. Ledo engano; não houve nenhuma mudança significativa; nenhum índice de intervenção se tornou melhor pela demonstração prática de sua inadequação. Mesmo o programa “Parto Adequado” que foi utilizado em hospitais privados – o ponto nevrálgico das intervenções desmedidas – teve um “sucesso” inicial de diminuir em 1% as intervenções de nascimentos cirúrgicos, mas os valores voltaram a crescer algum tempo depois. A “educação médica” não parece surtir efeito, pois partem de uma perspectiva que não reconhece a dinâmica de poder que permeia a atenção à saúde.

A próxima etapa é derivada do idealismo e se refere a um movimento que ainda é hegemônico entre os obstetras “liberais”, aqueles simpatizantes do parto normal (também conhecidos como “vaginalistas”) e entre muitos profissionais das correntes da humanização do nascimento. Ela se chama “Reformismo“, que consiste na ideia de que é possível transformar a atenção ao parto se houver uma educação ampla, reforma no ensino da medicina, contratação de médicos alinhados com os projetos de humanização e estímulo à contratação de enfermeiras obstetras pelos centros de atenção ao parto. Essa proposta acredita que é possível “moralizar” a atenção apostando no sujeito, nos “bons profissionais” (os “good guys”) na suavização de suas práticas, na eliminação de intervenções desnecessárias, na educação e na informação científica atualizada – mas não na mudança do sistema no qual estes profissionais estão inseridos.

Existem inúmeros hospitais de caráter reformista na atualidade, alguns por acreditarem nessa proposta, enquanto outros por entenderem que se trata de um modelo intermediário para uma verdadeira mudança que só ocorrerá num futuro distante. No último congresso internacional da ReHuNa houve um momento profundamente revelador dessa proposta: o convite para que o presidente da Febrasgo (Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia do Brasil) tivesse uma fala. Nesta ocasião ele se mostrou educado, afável e compreensivo com as reivindicações dos seus entrevistadores. Para muitos um ato de reconhecimento de nossa relevância. Todavia, deveria ter ficado evidente para todos os presentes em sua palestra que a sua concordância – ou não – com as nossas propostas é absolutamente irrelevante para uma real transformação. O mesmo acontece com uma mesa em que representantes israelenses se encontram com a população palestina para discutir o futuro da região. As posições jamais serão alcançadas através da simples concordância com as visões dispares de mundo, e qualquer solução só poderá brotar do atrito e do choque de poderes – mais ou menos violento. Para isso é preciso uma abordagem “materialista e dialética”.

O Materialismo dialético é uma concepção filosófica e uma metodologia científica que propões a visão de que o ambiente, o sujeito e os fenômenos materiais e físicos tanto modelam a sociedade e a cultura quanto são modelados por eles; ou seja, que a matéria está em uma relação dialética com o psicológico e o social. Por mais que seja evidente a correção da luta por autonomia das mulheres em relação ao parto e nascimento, estas ideias somente terão avanços quando o ambiente social se modificar e as próprias mulheres se colocarem à frente do processo de mudança. Precisamos tanto de melhores profissionais quanto melhores clientes para o parto. Médicos e gestantes estão sujeitos ao mesmo modelo, atuam dentro dele e ao mesmo tempo são afetados por ele, e precisam agir em consonância para que este seja transformado. No atual estado da arte, a Medicina e sua lógica da intervenção está em antagonismo com as reivindicações das gestantes que desejam um parto humanizado. Jamais conseguiremos uma modificação profunda no sistema através de reformas que não mudam em profundidade o sistema de poderes que governa o corpo das mulheres, sua sexualidade e reprodução.

Enquanto o parto for considerado “ato médico” e se mantiver nas mãos de cirurgiões nenhum avanço significativo será alcançado, pois que a perspectiva médica e a visão da parteria são antípodas no espectro da atenção. A lógica médica aplicada ao nascimento objetualiza as pacientes, transformando-as em objetos dóceis e inermes para a sua atuação e intervenção. Essa lógica é essencial para o tratamento de muitas doenças e em especial para a realização de cirurgias, mas não se aplica ao atendimento de um evento fisiológico como o parto sem excluir as mulheres e seus bebês da equação. A aventura da Medicina no percurso do nascimento humano levou inexoravelmente ao apagamento das mães de qualquer decisão, colocando nas mãos dos médicos toda a responsabilidade do que vai acontecer a elas. Não por outra razão em nossa cultura os médicos “fazem partos”.

O que resta como solução é deixar para trás as ilusões, entendendo a arena do nascimento como uma “luta de classes” que não vai chegar a qualquer consenso enquanto os médicos mantiverem o controle político e econômico sobre o processo de parir. Somente com a queda deste poder, e a ascensão das especialistas no parto – parteiras profissionais e tradicionais – haverá possibilidade de uma verdadeira “Revolução do Parto”, mas que só vai acontecer quando as massas, nutridas pela inescapável indignação, reivindicarem que a assistência volte ao controle das próprias mulheres e através do auxílio dos profissionais mais capacitados para este ofício. Cabe também resguardar aos médicos a nobre tarefa de agir nas circunstâncias em que a trilha da fisiologia se perdeu no emaranhado único de cada nascimento e adentrou na rota perigosa da patologia, para que eles sejam os heróis que tanto necessitamos.

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Our bodies, our selves

A ideia muito disseminada em anos passados que tratava o “corpo como embalagem do cérebro” foi uma tese contestada pelo movimento feminista nascente, através de um grupo de mulheres americanas dos arredores de Boston que escreveu um livreto chamado “Women and their bodies”, no ano de 1969. Já em 1970 esta pequena publicação se transformou em um livro que é considerado a Bíblia do moderno feminismo americano, chamado “Our bodies, our selves” – “Nossos corpos, nós mesmas” – que no ano 2020 completou 50 anos da primeira edição e vendeu mais de 4 milhões de exemplares em suas inúmeras edições posteriores.

A principal reivindicação dessa publicação é a conquista da autonomia dos corpos femininos, o direito à beleza e ao prazer e o reconhecimento dos direitos reprodutivos e sexuais femininos. Entre as primeiras editoras estava a jornalista e autora feminista Gloria Steinem. A tese do corpo como mera “embalagem” do espirito sempre foi por elas firmemente contestada. Ou seja, sua visão era “nossos corpos somos nós mesmas”…

Lembrei disso hoje porque minha amiga Robbie participou como articulista em uma dessas edições e porque a falecida atriz Carrie Fisher (Star Wars), quando lhe comentavam que ela havia envelhecido, respondia dizendo que seu corpo era uma “mera embalagem do seu cérebro”

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Parto humanizado e mídias sociais

Eu as vezes sou convidado a assistir palestras sobre obstetrícia que tratam de temas que há muitos anos debatemos no movimento de Humanização do Parto e Nascimento. Nesta semana assisti mais uma vez o mestre Michel Odent – pensador e escritor francês de 91 anos – falar de suas teses centrais, como o “imprint” e a importância de oferecer à mulher um entorno de proteção, intimidade e privacidade para que a “entrega” seja a mais tranquila possível. Ter sido contemporâneo de Michel é um grande privilégio para qualquer pessoa que um dia trilhou pelos caminhos da humanização. Posso estar cometendo um sacrilégio mas, na minha perspectiva, os trabalhos de Odent e Robbie Davis-Floyd no campo da compreensão dos significados últimos e inconscientes do processo de nascer adquirem uma importância ainda maior do que aqueles conceitos sobre o “nascimento sem violência” oferecidos a nós um pouco antes por Frederick Leboyer, outro baluarte da grande revolução do parto.

Escutei também o comediante Rafinha Bastos falando sobre partos e doulas, na entrevista que fez com sua irmã – que é doula e professora de Yoga – e achei que sua visão superficial, preconceituosa, jocosa e até debochada do processo de nascimento é uma amostra razoavelmente adequada do pensamento médio dos homens brasileiros. Sua ignorância a respeito de elementos mínimos da proposta de humanização, sua repulsa com tudo o que existe de selvagem e essencialmente humano no parto – além da sua exaltação da “praticidade e limpeza” das cesarianas – são muito demonstrativas da visão majoritária que ainda é prevalente entre os homens. Acho lamentável sua percepção sobre um tema tão delicado, mas saber que ele se dispôs a escutar é algo que devemos saudar como positivo. Quando trocamos ideias com os companheiros das mulheres que nos procuram pela expectativa de um parto humanizado é importante ter em conta que estes sujeitos representam uma fatia francamente minoritária nesta sociedade.

Um pouco depois escutei a aula de uma enfermeira obstetra que falou sobre o tema da violência obstétrica para alunos universitários, um tema que a cada dia assume uma importância maior nos debates de gênero na Internet. Na minha perspectiva ela falou de uma forma bastante superficial, talvez um pouco mais do que o necessário, mas entendo que ela imaginava se dirigir a uma plateia ainda muito desinformada sobre o tema e, portanto, preferiu uma abordagem mais geral e simplificada.

Em verdade eu prefiro as perspectivas sobre o parto que são mais complexas, mais obscuras e menos debatidas e sobre as quais pouco se fala, em especial no que diz respeito à atenção ao parto como evento da sexualidade. Entretanto, tocar nesse ponto é arriscado e perigoso. Vivemos em uma sociedade de cancelamentos onde as ideias sucumbem à interpretação que se pode fazer delas, e onde a verdade é menos importante do que a aceitação e o reconhecimento das nossas “personas sociais”. Fugir de certos maniqueísmos é tarefa complexa, e seria um risco muito grande tratar desse tema para um grupo tão heterogêneo.

Nas perguntas que se seguiram à sua exposição chamou minha atenção algo que vi repetidas vezes quando tratei publicamente deste tema. Percebi que, o que muitas mulheres chamam de “violência obstétrica” é, na verdade, tão somente a ponta de um imenso iceberg, uma fração menor do que seja a violência que ocorre no parto. A maioria das mulheres (e também seus parceiros) aponta como violência apenas aquilo se que tornou visível e palpável, a parte que ultrapassa a linha das ondas e emerge do oceano como barbárie. Da mesma forma, a violência do encarceramento obsceno das sociedades capitalistas aparece sob a forma de desumanidade, tortura e morte, para só então ser condenada. Parece que a nós somente quando a brutalidade estrutural e ideológica submersa se torna evidente pelo exagero de um processo – que já é violento por natureza – temos a possibilidade de denunciar sua existência.

Ainda espero das jovens ativistas uma definição mais clara, concisa e firme do que seja “parto humanizado”. Parece faltar uma percepção mais elaborada, que fuja da ideia de “parto gentil”, “parto delicado”, “parto adequado”, “obediência às evidências científicas”, que são elementos importantes deste processo, mas que não contemplam o cerne da definição, o qual está visceralmente ligado à ideia de “garantia de protagonismo” às mulheres. Precisamos falar mais sobre a história desse movimento social, debater seus pilares de sustentação e entender que esta proposta surgiu muito recentemente como uma contraposição ao modelo tecnocrático hegemônico, que despersonaliza e objetualiza as gestantes, uma condição que se fortaleceu pela dominação do paradigma biomédico estabelecido de forma marcante a partir do século XX.

Na palestra da jovem professora ela elogiou as Casas de Parto e deixou claro para todos a importância das enfermeiras como cuidadoras primordiais do parto, o que é muito bom. Para além disso, eu me surpreendi com as perguntas feitas pelos estudantes a ela, o que sugeriu que ela poderia ter ido mais fundo nas definições, contradições e dificuldades no combate à violência obstétrica. Talvez ela tenha subestimado mais do que devia a capacidade de crítica dos alunos presentes à sua palestra.

Saber que esse tema toma a Internet hoje em dia me oferece a esperança de que estivemos fazendo certo em denunciar um modelo anacrônico de atenção ao parto e de mostrar que há perspectivas mais humanas e dignas de trazer as pessoas ao mundo.

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Kits e cesarianas

Como o meu filho bem observou, a diretriz da prescrição dos “kit covid” é a proteção …. DO MÉDICO, e não necessariamente do paciente. Ele me alertou também para o fato de que a lógica utilizada pelo CFM é igual àquela que leva ao abuso das cesariana: na dúvida OPERE, para se proteger enquanto profissional.

Mesmo sem o saber, o representante da corporação médica defende o “imperativo tecnológico” do qual Robbie Davis-Floyd se ocupa, que diz que “se há tecnologia disponível ela deve ser usada, inobstante o fato de causar dano”. Muito mais do que evidências científicas, a profissão é levada a agir por defesa, aumentando gravemente os riscos para os pacientes – mesmo que os diminua para os médicos.

Assim, se algo ocorrer de grave pelo uso do kit covid – e o mesmo se pode dizer das cesarianas – sempre haverá a desculpa de que “fizemos tudo que estava ao nosso alcance”, e isso servirá como salvo conduto diante dos seus pares, pois quem julga os médicos nos conselhos de classe se beneficia do (ab)uso tecnológico em que a Medicina se sustenta e está envolta. Mas, é claro que falta também um judiciário que aprenda a julgar casos médicos desviando dos atalhos fáceis do “senso comum”.

Médicos acovardados e judiciário pusilânime levam ao abuso de intervenções, medicalização da vida cotidiana, custos aumentados e morbimortalidade crescente. Prevenir iatrogenia é função medica.

Veja aqui a matéria do Intercept sobre a posição do vice-presidente do CFM no que diz respeito à proteção dos médicos diante da Covid 19.

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Teias

“Cuida como vives; talvez sejas o único evangelho que teu irmão lê”.

Consigo enxergar essa frase escrita com a inconfundível letra desenhada de minha mãe. Seu sentido era dar a devida importância ao exemplo de vida, atos e palavras cotidianas, que têm o enorme poder de influenciar os nossos semelhantes.

Lembro de uma curta caminhada com meu pai pelo centro da cidade aos 5 anos de idade quando lhe perguntei porque não comprava vários bilhetes coloridos de loteria. “Podia a gente acertar o número e ficar rico”, disse-lhe eu na sintaxe infantil, pensando nas riquezas possíveis para um garoto daquela época – carrinhos, gibis e balas. Sem diminuir o passo ele respondeu: “Nenhuma riqueza pode vir se não for pelo trabalho”. Ele não notou – e por certo não lembra – mas ali fazia brotar a semente de um pequeno coração comunista.

De minhas brevíssimas conversas com Michel Odent, Marsden Wagner, Moysés Paciornik, John Kennell e Robbie Davis-Floyd (esta última não tão breves) retirei fragmentos que a eles não passaram de palavras, as quais sequer se detiveram a reter na memória, mas para mim significaram enormes setas de luz a indicar o caminho por onde seguir. Por esses pedaços de frases devo nada menos que a minha eterna devoção.

Digo isso porque ontem à noite uma moça me escreveu contando sua história de transformação através dos partos. Não me conhecia pessoalmente, mas leu muito o que postei nos últimos 20 anos e criou coragem (“o vinho ajudou”, disse ela) de escrever diretamente. Partindo de uma cesariana mal indicada chegou ao seu parto vaginal como “turning point” e ganhou ainda de bônus a bênção de ajudar uma vizinha a parir antes da chegada do SAMU. Agradeceu a mim por tê-la inspirado.

A frase que minha mãe escreveu e colocou na parede continua hoje plena de sentido. Hoje podemos influenciar pessoas do outro lado do mundo e de forma instantânea, sendo nossa experiência o evangelho que elas consultam diante dos seus dilemas. Nossos atos – e o que escrevemos – são adubo para o solo fértil de quem deseja aprender. O mundo de agora nos oportuniza encontros que jamais seriam possíveis há poucas décadas, o que só aumenta a responsabilidade que todos carregamos.

Olhados de cima, esses encontros são como linhas de luz a tecer a teia luminosa da vida por onde circulamos. As pontes luminescentes que são lançadas – para o bem e para o mal – acabam nos alcançando e sendo amplificadas. Que sejamos fiéis portadores do brilho que recebemos graciosamente da vida.

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Entre las Orejas

I – Presentación

Mi nombre es Ricardo Jones y soy un activista del parto humanizado por más de 30 años. Hace tres décadas atrás el parto se realizaba de forma tradicional, como estábamos acostumbrados a ver en cine y televisión: mujeres abajo, médicos arriba. Maridos afuera esperando información. Mujeres haciendo sus pujos con la guía de un obstetra, acostadas y en posición ginecológica; también episiotomías, pujos dirigidos y maniobra de Kristeller. Sin embargo, habiendo pasado muy temprano por la traumática experiencia como padre, me di cuenta de que la forma en que atendíamos el parto era violenta e irrespetuosa, no solo con la mujer y su fisiología, sino también con sus compañeros, familia y naturaleza. Por esta razón, antes del comienzo de los años 90 del siglo pasado tomé una decisión dramática que impactaría la forma de atención de los partos.

 En los últimos 20 años he viajado por todo el mundo hablando de mis experiencias con la humanización del nacimiento en mi ciudad. Hablé en prácticamente todas las capitales de mi país, pero también en lugares tan diferentes como México, Estados Unidos, Uruguay, Argentina en América, así como también Portugal, Reino Unido y Bulgaria en Europa, y China continental en Asia.

Luego de más de 30 años de persecuciones por parte de la corporación médica de mi país, interrumpí mis citas y me dedico a escribir, dar conferencias y dar cursos sobre humanización del parto, educación perinatal, formación de doulas y homeopatía para profesionales del parto. Hoy vivo en una comunidad en el sur de Brasil, cerca de la naturaleza y mis nietos. Se llama “Terramã”, que significa “Madre Tierra”.

Para tener una idea de las dimensiones, mi estado “Rio Grande do Sul” es del tamaño de Uruguay y tiene una población de 11 millones de habitantes. Aquí podemos ver mi ciudad, el estadio de Grêmio, mi equipo de fútbol (el mayor del mundo) y ​​el lago Guaíba.

Brasil es un país multiétnico, un crisol de razas, pero marcado por la esclavitud, muy similar a la experiencia de los Estados Unidos. Sin embargo, a diferencia de los norteamericanos, nuestro mestizaje fue mucho más intenso y la entrada de la cultura negra se extendió de una manera mucho más amplia. Somos un país en el que el 51% de la población no es blanca, a diferencia de los estadounidenses, donde la comunidad negra no es más del 12% de la población. También existe la comunidad japonesa, la más grande fuera de Japón, sin embargo, todavía tenemos mucho racismo estructural en Brasil contra la población negra e indígena en particular.

Mi historia con la humanización del nacimiento comenzó hace casi 35 años, aún durante mi residencia. Fue allí donde me di cuenta que las mujeres eran consideradas objetos de manipulación por la orden médica, sin voz y sin derechos, y que el nacimiento de sus hijos estaba determinado por instancias de poder ajenas a ellas. Fue en este momento que comencé con acciones que hoy se consideran sencillas, pero que significaron una agresión al sistema de poderes instituidos. Por eso, mis ideas sobre la humanización del nacimiento siempre han sido atacadas por el poder, al igual que tantos otros profesionales de la humanización en Brasil.

II – Atención al Parto en Brasil

Un dato importante a aclarar sobre la salud de Brasil es el hecho de que, tenemos un sistema de salud muy peculiar, formado por tres partes. El primero es el SUS – Sistema Único de Salud – creado en 1988 por la Constitución Federal de Brasil, que establece que es deber del Estado garantizar la salud de toda la población brasileña. El alcance de SUS es universal, como derecho básico e inalienable de la población. Además, tenemos la “Salud Complementaria”, formada por compañías de seguros de salud, como las que existen en Estados Unidos, como Kaiser, Humana, etc. Es cierto que en Uruguay hay servicios de seguro de salud como los arriba mencionado.

Además de los sistemas de prepago, existe el sistema privado, donde médicos y pacientes son contratados libremente para la atención, mediante negociación directa entre paciente, médico y hospital.

Es exactamente en los dos últimos sistemas – seguro de salud y libre negociación – donde reina el abuso de las cesáreas, demostrando que la disparidad entre los poderes del médico y el paciente en una relación directa, hace que las mujeres elijan una intervención que aporte beneficios a las pacientes, médicos y casi ninguno para mujeres embarazadas y sus hijos.

En el sistema de salud pública, la tasa de cesáreas alcanzó el 43% de los nacimientos, lo que ya estaría por encima de cualquier consideración médica y de salud pública. Sin embargo, en el sector de Medicina Complementaria (seguros de salud) y en pacientes privados existe un completo descontrol, haciendo de la cesárea la vía de parto de casi 9 de cada 10 pacientes de clase media, ya que la prevalencia de esta cirugía en este segmento poblacional es 88%.

Este fenómeno de abuso de la cesárea ciertamente no ocurre en un vacío social. De hecho, es un modelo global y sistémico que llega a todas las poblaciones y latitudes. Es muy intenso en los países subdesarrollados, pero también afecta a países plenamente desarrollados, como en Europa y Estados Unidos tanto como México, Brasil y Argentina en América del Sur y Corea del Sur en Asia, que son ejemplos de países que tienen alrededor del 50% de cesáreas y este es un grave problema de salud pública.

Este hecho no se refiere simplemente a países que poseen carencias en la atención primaria de salud, sino a una cuestión sociológica mucho más profunda, que se refiere a la comprensión del papel de la mujer en la cultura y la comprensión de la tecnología como una entidad sobrehumana de superación de las fragilidades de la especie.

En Brasil, por ejemplo, tenemos un 98,5% de pacientes que reciben cobertura prenatal, y esto teniendo en cuenta el tamaño de la selva amazónica y todos sus desafíos para ofrecer cobertura médica en una región salvaje. También es un hecho que el 56,5% de las mujeres comienzan su atención prenatal antes de las 12 semanas y el 75% de ellas son atendidas por el sector público. A pesar de este alcance, la violencia obstétrica – que es una variante de la violencia de género – sigue siendo una realidad en Brasil. En 2011, cuando tuvimos una tasa de cesáreas del 52%, es gravísimo el hecho de que la gran mayoría de estos partos vaginales ocurrieron bajo intervenciones médicas, y solo el 5% de todos los partos en el país tuvieron lugar sin ninguna intervención, los únicos que podrían llamarse “nacimientos fisiológicos”.

III – La Domesticación del Parto por la Cultura

Así, el nacimiento humano a partir de principios del siglo XX se convirtió en un evento cada vez más artificial, controlado por la corporación médica, tratado como una enfermedad y alejado del lugar de seguridad que las mujeres tuvieron durante miles de años. La imagen del parto en el imaginario social se transformó paulatinamente de la calidez y presencia de la familia a hospitales, ropas quirúrgicas y dispositivos tecnológicos, alejándose de nuestro origen y fisiología humana.

En 1992, durante una visita a la capital argentina, Buenos Aires, me avaló ver, por primera vez, la imagen de la página 138 del libro “Nacimiento Renacido”, de Michel Odent. Ante el golpe estético que experimenté al verla me sentí obligado a desvelar sus significados: fue esta conexión física, emocional, intensa y profundamente femenina la que le dio a las mujeres la oportunidad de navegar por los oscuros laberintos de su ser femenino con más confianza. En la imagen que tanto me impactó, una partera abrazaba el cuerpo desnudo de una embarazada en el piso de la sala de partos y esa era la parte que me faltaba y que las doulas podrían ayudar, sumando feminidad y contacto amoroso al trabajo técnico de médicos y parteras. A partir de entonces, dedicaría mi vida a criticar el modelo obstétrico contemporáneo, tratando de desvelar el universo afectivo, sexual y femenino del nacimiento, escondido bajo las pesadas capas de la tecnocracia.

Sabemos que el objetivo más deseado por un profesional de la atención de partos es el trayecto sin problemas desde el diagnóstico del embarazo hasta la lactancia prolongada, pero para que esto suceda, debemos estar atentos a todos los elementos que obstaculizan esta transición. Los protocolos rígidos y despersonalizados, la insensibilidad de los profesionales ante los múltiples aspectos del embarazo, los innumerables mitos que rodean este evento tan especial y las relaciones de poder – donde la gestante es la parte más frágil – hacen que este camino esté lleno de obstáculos difíciles de superar o transponer. Es tarea de los cuidadores orientar y evitar estos trastornos, ofreciendo confianza y orientación de calidad para que la embarazada y su familia se sientan acogidas y puedan tomar sus propias decisiones a través de un sistema de elecciones y rechazos informados. Solo así podremos hacer esta travesía desde el inicio de la gestación hasta el destete lo más suave posible, reparando el puente que une todas las partes de esta gran aventura humana.

Frente a la suprema artificialización del nacimiento por parte del modelo tecnocrático, todavía es necesario preguntarse qué significa “normal” cuando se habla de parto. Después de todo, ¿qué podemos llamar normal?

IV – Parto en Hospital Contemporáneo

En vista de la suprema artificialización del nacimiento por parte del modelo tecnocrático, aún es necesario preguntarse qué significa “normal” al dar a luz. Después de todo. ¿Qué podemos llamar normal?

  1. La paciente llega al hospital en silla de ruedas, junto con su esposo;
  2. Luego de ser separada de su esposo, se dirige a una habitación donde evaluará los latidos del corazón del feto, la presión arterial y la temperatura;
  3. Luego se le hará un enema intestinal, se tomará un baño y se realizará la tricotomía perineal; si es verdad que no es más rutina en Uruguay es también cierto que en muchas localidades estas prácticas aún son comunes
  4. Después de eso, se cambiará de ropa y se pondrá una bata de hospital;
  5. Se elegirá una cama que será suya hasta completar la expansión; hoy en día, la mayoría de las maternidades, publicas y privadas tienen salas de nacer, ingresan a ellas con 5/6 cm de dilatación, por eso se les pide que una vez tengan 3 contracciones en 10 minutos durante una hora sostenida, que esperen entre 2/3 horas y algunas 4 horas, para asegurarse que lleguen para ingresar a sala de nacer. Todavía, por muchos años la restricción al lecho fue la norma.
  6. Colocación de una vía parenteral (suero) con o sin oxitocina;
  7. Monitoreo fetal electrónico;
  8. Evaluación de la dilatación cervical para su colocación en el partograma;
  9. Tiempo para la dilatación, mantenida en cama, que conduce a un dolor incontrolado, debido a la posición, restricción a la cama, aislamiento y a menudo oxitocina;
  10. Analgesia epidural, que dificulta el movimiento y trae muchos otros cambios; peor es saber que en Uruguay esto es gratis en muy pocas maternidades, por tanto no siempre se dan, pues cuesta alrededor de 1000U$S
  11. Traslado a la sala de partos;
  12. Episiotomía lateral media;
  13. Parto en posición de litotomía; pero hoy en casi todas las camillas ya pueden estar sentadas, semireclinadas.
  14. Corte prematuro del cordón, inmediatamente después del nacimiento; aunque hoy esto ya no se realiza, sólo en caso de urgencia.
  15. Separación de la madre y el bebé para la evaluación del recién nacido y atención para la reparación de la episiotomía;
  16. Envío a la sala de recuperación, maternidad y alta hospitalaria.

Sin embargo, es necesario reconocer que solo la evaluación del bienestar materno y fetal (presión arterial, evaluación de la temperatura y latidos del corazón fetal) tiene evidencia científica segura y confiable. Todas las demás acciones están determinadas culturalmente y no tienen base en estudios y publicaciones actualizados que las respalden.  

El antropólogo Peter Reynolds, que escribió “Stealing Fire”, describe en este libro la secuencia de acciones sobre el parto contemporáneo a través de lo que llamó “Punch Theory”. Para él, el mito de la trascendencia tecnológica nos hace creer que la respuesta a los dilemas de la humanidad será a través de una mayor intervención tecnológica, en la famosa ecuación donde el primer impulso es nuestra acción destructiva sobre el mundo natural y los impulsos posteriores – hospitales, drogas, camas de UCI, cirugías, antisepsia, antisépticos, antibióticos y profesionales altamente capacitados en patología – trabajan para reparar el daño inicial, pero sin cuestionar su origen con la profundidad necesaria. Sin embargo, la experiencia nos demuestra que es el alejamiento mismo de la experiencia natural del parto (puñetazo 1) con el alejamiento sistemático e insidioso de la naturaleza del parto que produjo la mayoría de los trastornos que presenciamos hoy. De esta forma, nos convertimos en técnicos especializados con múltiples intervenciones (puñetazo 2) para solucionar los problemas creados por nuestra propia actuación inoportuna.

V – Mitos en la Atención al Parto

Sabemos por las enseñanzas de Robbie Davis-Floyd en su libro “Birth as an American Rite of Passage” que los protocolos y rutinas que se realizan en el hospital pueden considerarse rituales, ya que son repetitivos, estandarizados y simbólicos. Los rituales son acciones que sirven para mantener y reforzar los valores más profundos de una determinada sociedad. También está claro que pueden ejecutarse tanto de forma consciente como inconsciente. Mi experiencia personal es que, respecto a las acciones que se realizan en los hospitales con las gestantes, la gigantesca mayoría de profesionales no tiene idea de que perpetúan una intervención, cuya función principal es aliviar las tensiones inherentes a las incertidumbres del trabajo del parto. Pero elel resultado es siempre una cuestión abierta, por más cuidadosos que seamos. Así, todas las actitudes del equipo profesional en el ámbito del parto están marcadas por una parte visible y aparente – con o sin base científica – pero tienen un rostro oculto, formado por su conexión con valores inconscientes que forman la estructura de nuestra sociedad.

  1. Uniformización

Es evidente que todas las parturientas tendrán características marcadas en su trabajo de parto. La velocidad, la intensidad de las contracciones y la dilatación, la percepción del dolor, su calma o agitación y su estado de ánimo serán diferentes en cada mujer atendida, e incluso en la misma mujer en embarazos posteriores. Esto representa un desafío para quienes necesitan hacerse cargo de inúmeros procesos diferentes. Como la atención al parto se establece con una asimetría de poderes, con mujeres obedeciendo y profesionales controlando, es fácil entender por qué se intenta “estandarizar” a las pacientes, de modo que se controlen más fácilmente. Lo mismo ocurre en otras situaciones sociales donde la jerarquía de poderes es rígida, como en la cárcel, las escuelas, la iglesia o la policía. La uniformidad sirve para reducir a las mujeres a su función, eliminando la mayor parte posible de su subjetividad.

  • Tricotomia

En la misma línea de razonamiento para la uniformidad, la tricotomía sirve para hacer que las mujeres sean idénticas. Además, la tricotomía sirve como una poderosa señal del malestar que provoca la expresión de la sexualidad en el cuerpo de la embarazada. El vello púbico es la expresión física de la madurez sexual, su ausencia nos recuerda la infancia y la inocencia. El parto es pureza; el sexo es impuro. Así, eliminar el vello púbico de la mujer tiene una triple función: uniformidad, desexualización e infantilización. Estos elementos garantizan a la gestante una posición inferior en la jerarquía, capaz de ser complaciente y obedecer las determinaciones del equipo de atención.

  • Vía de acceso parenteral

Las mujeres embarazadas a menudo se colocan en un acceso venoso tan pronto como llegan al centro obstétrico. La razón de esto no se basa en la evidencia, sino en la cultura del miedo y el “imperativo tecnológico”. Como justificación se utiliza “pero, y si…” para utilizar el acceso venoso en caso de que ocurra algo grave, pero este tipo de procedimiento nunca ha resultado útil y eficaz. Además, envía un mensaje subliminal de que la paciente está conectada y apegada al sistema, como alguien que pierde su libertad para adaptar las reglas del lugar donde se encuentra.

  • Restricción al lecho

Mantener a las mujeres confinadas a la cama también las deja prendidas a un cierto espacio, lo que limita su movimiento que puede ser esencial para el curso del parto. Esto permite un mayor control del equipo de atención, pero lo convierte en un número de cama, no en una persona con una perspectiva absolutamente subjetiva sobre el curso de su parto. Mantener las mujeres en la cama también transmite a ellas la información de que están sometidas a las órdenes de sus superiores.

  • Enema

Los enemas se han realizado desde la antigüedad como terapias o como preparación para tratamientos y consejos de oráculo. Detrás de esta práctica que aún pervive en muchos hospitales está la idea de la depuración, que junto con el cambio de ropa y el baño de la embarazada busca crear un aura de pureza y limpieza para ingresar al centro obstétrico.

  • Posición de litotomia

La posición de la litotomía es uno de los cambios más claros en la estética del parto que se ha incrementado con la entrada de los médicos y la medicina en el escenario del parto. Su mantenimiento en la práctica médica, a pesar de todas las evidencias que demuestran su inadecuación e incluso el innegable daño a madres y bebés, se debe a que el parto en esta posición es un refuerzo psíquico subliminal que ayuda al poder médico a mantener su dominio sobre el cuerpo de la mujer. El parto acostado, posición clásica de litotomía, establece la asimetría de poderes que ayuda al profesional a sentirse a cargo y envía un mensaje de inferioridad a la mujer que está dando a luz. Por ello, y no por falta de información o evidencia científica, esta acción todavía se difunde en los hospitales docentes y se utiliza para atender a 9 de cada 10 mujeres que dan a luz en este país. Mucho más de lo que representa objetivamente, está lleno de un simbolismo patriarcal de dominación, y por eso resiste los vientos del tiempo y la verdad.

  • Episiotomia

Es el procedimiento más emblemático de la lucha de las mujeres por la autonomía corporal. Su ejecución, sin embargo, resiste la evidencia porque simboliza la supremacía de la tecnología – representada por el bisturí – sobre la naturaleza involucrada en el nacimiento fisiológico. La episiotomía es la gran cirugía ritualista y mutiladora de la Medicina Occidental.

  • Separación madre-bebé

Esta remoción expresa una actitud autoritaria por parte de los poderes delegados del Estado contra la autonomía de la mujer sobre sus hijos. El objetivo inconsciente de estos comportamientos y rutinas es despojar a la mujer del control sobre su hijo, estableciendo una tiranía de técnica y conocimiento sobre la recién establecida conexión madre-bebé. En este momento especial, se coloca la piedra angular para la construcción de un sujeto subordinado al Poder.

VI – História de la Humanización

  • Los Hermanos Chamberlen y el uso de fórceps.

Creado por los hermanos Chamberlen en Inglaterra, se mantuvo oculto a miradas indiscretas, ya que es una herramienta tan importante que es el objetivo de la codicia de los competidores. La entrada de esta herramienta en la historia de los nacimientos marca un hito en obstetricia. Nada más volvería a ser como antes. Desde entonces la obstetricia se ha vuelto de manera más tecnológica e invasiva. Los hombres, antes espectadores asombrados y asustados, se convirtieron gradualmente en impulsores del proceso. Las mujeres pasaron de protagonistas a asistentes pasivas, ya sea como asistentes de médicos o pasivas en la piel de las propias parturientas.

  • Grantly Dick-Read y las influencias del entorno en la psique con sus consiguientes influencias sobre el parto y el recién nacido.

Publicó su primer libro “Parto natural” en 1933, acuñando el término “parto natural”. Definió el término como la ausencia de cualquier intervención que pudiera interrumpir la secuencia normal del parto. Su segundo libro, “Revelación del parto” (que luego pasó a llamarse “Parto sin Miedo”), se publicó en 1942 y se dirigió al público en general. Se convirtió en un éxito de ventas internacional y todavía se usa ampliamente como referencia en la actualidad. A partir de esta publicación, Dick-Read fue invitado a dar conferencias en todo el mundo.

  • Fernand Lamaze y el control consciente y activo del parto.

Lamaze visitó la Unión Soviética en 1951, donde se enteró por primera vez de un nacimiento en el que se utilizó la “psicoprofilaxis”, un método de atención del parto que había sido desarrollado por psicoterapeutas soviéticos, como Velvovskii de Krakov – Ucrania, basándose en la teoría de los reflejos condicionados de Ivan Pavlov, La psicoprofilaxis tiene como objetivo eliminar el dolor del parto mediante la activación neocortical (¡¡despertar y alerta !!), por la educación sobre el proceso fisiológico del parto, por la respuesta de relajación condicionada a las contracciones uterinas y estimulando la respiración estandarizada diseñada para incrementar la oxigenación e interferir con la transmisión de impulsos dolorosos desde el útero hasta la corteza cerebral.  Lamaze quedó tan impresionado con lo que testificó que, después de regresar a Francia, dedicó el resto de su vida a promover el “Método Psicoprofiláctico de Atención al Parto”, que se conoció popularmente como “Parto sin dolor”. Es importante mencionar que, como Dick-Read, algunas declaraciones de Lamaze hoy serían consideradas profundamente machistas y atrasadas, tanto en su concepción de la mujer como en relación a su rol en el mundo. Como siempre, es importante comprender a los pensadores dentro de su tiempo y contexto.

  • Frederick Leboyer y el parto em la perspectiva del recién-nascido;

Es mejor conocido por su libro de 1974, “Nacimiento sin violencia” en Brasil llamado “Nascer Sorrindo”, en que el popularizó las técnicas de parto suave, especialmente la práctica de bañar a los bebés recién nacidos en una pequeña bañera con agua tibia para facilitar la transición de la mundo intrauterino al exterior. Leboyer también defendió “prácticas de protección sensorial para el bebé”, como el uso de poca iluminación, silencio y una habitación climatizada para evitar el shock del parto. También estimuló el contacto piel con piel, donde el recién nacido se colocó sobre el abdomen de su madre, permitiendo así un contacto prolongado entre la madre y el bebé.

  • Michel Odent y el parto en la naturaleza de los mamíferos.

Odent desarrolló un interés especial en los factores ambientales que influyen en el proceso de nacimiento, siguiendo los pasos de Dick-Read. A partir de sus experiencias con la maternidad de Pithiviers en Francia, introdujo los conceptos de “salas de partos salvajes”, piscinas de partos y un estilo prenatal muy particular, donde se incentivaban las sesiones de canto para embarazadas. Luego se involucró con el parto en casa, con la relación entre humanos y mamíferos con respecto al parto, fundó el Primal Health Research Center en Londres y diseñó una base de datos para compilar estudios epidemiológicos explorando las correlaciones entre lo que sucede durante el “Período Primordial” y la salud posterior del sujeto  

  • Robbie Davis-Floyd y el nacimiento como proceso simbólico y ritualizado.

Las principales contribuciones teóricas de Robbie incluyen su análisis de los procedimientos obstétricos estandarizados para el parto como rituales, cuya función principal es exteriorizar los valores fundamentales en los que se basa la cultura. Además, establece una comparación entre tres modelos de nacimiento y atención de la salud en cuanto al uso de la tecnología, mostrando que existen en todas las sociedades y varían según las condiciones del entorno. Son los modelos “tecnocrático”, “humanista” y “holístico”. 

  • El lecho de Procustes, y la concepción del parto como fenómeno subjetivo.

En el mito griego, Procustes era hijo de Poseidón y vivía en el monte Korydallos, en el camino sagrado entre Atenas y Eleusis. En su casa tenía una cama en la que invitaba a dormir a todos los transeúntes. En caso de que el desafortunado huésped fuera demasiado bajo, utilizó sus herramientas para estirarlo, haciéndolo aumentar de tamaño hasta que encajara exactamente en su cama. Por otro lado, si el huésped fuera demasiado alto, Procustes amputaría el excedente; nadie se ha adaptado nunca exactamente a la cama. Procustes continuó su reinado de terror hasta que fue capturado por Teseo, cuando viajó a Atenas por el camino sagrado.

Desde la comprensión del parto como un hecho único e irreproducible, que se fundamenta en las características más personales de cada mujer, se hace cada vez más difícil aceptar la uniformidad y estandarización a la que están sometidas las mujeres ante los servicios de atención al parto diseminados por todo el mundo. ¿Cómo se puede tratar un hecho tan personal como si cada mujer tuviera un papel tan íntimo y vinculado a su sexualidad como el resto?

El parto, en una cultura tan diferente a la mía, recibe el mismo trato solo porque tenemos la ingenua creencia de que los aspectos psicológicos, afectivos, emocionales, culturales, sociales y espirituales no influyen tanto en el curso del proceso como las hormonas, el objeto, el camino y la anatomía. Sin embargo, “El parto es algo que ocurre entre las orejas”, repitiendo el viejo adagio de las parteras. No la busque en los pliegues de los tejidos uterinos, protuberancias óseas, contracciones o variaciones de hormonas. Está encerrado en los pequeños granos de arena de nuestros sueños, en la bruma de palabras esparcidas de un pasado lejano. Se refugia en los susurros de una niña, en la curiosidad infinita que lleva y en su mirada insaciable. El parto y sus misterios se ocultan a la mirada superficial, al análisis tímido y al investigador asustado. Para comprender lo que le manda, es necesario penetrar en las profundidades oscuras del alma de una mujer, donde se cobijan sus sueños y dolores. Cuanto más nos sumerjamos, más nebuloso será nuestro viaje. Sin embargo, solo entonces podremos encontrar esa semilla. Quizás, solo una suposición, la clave de este tema esté incluso ligada a esta aberrante fisura en el orden natural, que llamamos “amor”. Y quizás, otra mera suposición, para entender lo que pasa entre las orejas de una mujer, solo a través de esta clave.

VII – Parto y salsa de espaguetti

Finalmente, quería hablar sobre las perspectivas para el futuro. ¿Cómo podemos imaginar la asistencia para el parto en el siglo XXI? ¿Tendremos una intervención tecnológica más profunda en el parto? ¿Habrá un aumento de las cesáreas, relegando el parto fisiológico y vaginal para los raros casos en los que no hay tiempo para prepararse para la cirugía? ¿Asistiremos al reforzamiento del modelo tecnocrático biomédico, centrado en la figura de los médicos y las intervenciones, o veremos el crecimiento de alternativas como la atención ofrecida por parteras, parteras y en diferentes lugares del hospital?

¿Es el futuro de la humanidad un camino lineal hacia la total artificialización de la vida? ¿Es la humanidad del futuro un híbrido entre hombre y máquina, produciendo la cyborgización completa de nuestro organismo? ¿O tendremos un cambio conceptual a partir de este nuevo milenio, haciendo un nuevo camino que nos lleve a la ecología, el respeto a la naturaleza, la cooperación y la fraternidad? ¿Y el respeto por la ecología será definido por la naturaleza exterior a nosotros, o también por la naturaleza de nuestros ciclos vitales como nacer y morir?

Siempre que me enfrento a estas preguntas recuerdo una vieja conferencia, un gran éxito para TED, de un periodista estadounidense llamado “Malcolm Gladwell”, cuyo extraño nombre es “Elección, felicidad y salsa para espaguetis”. Hace muchos años mi hijo vio el video en YouTube y me llamó a altas horas de la noche diciendo: “Papá, escucha la conferencia de salsa para espaguetis. Créame, tiene que ver con sus ideas sobre la humanización del parto”. En esta presentación, Malcolm Gladwell demuestra la importancia de la diversidad no solo para mejorar el servicio al cliente, sino para la percepción subjetiva de la calidad. Su charla se basaba en la historia de un investigador de alimentos estadounidense llamado Howard Moskowitz y su importante descubrimiento a mediados de la década de 1980.

Howard fue invitado por Pepsi para descubrir la concentración adecuada de edulcorante artificial, aspartamo, que se debe agregar a Pepsi para producir el sabor perfecto. Se sabía que la concentración debía estar entre el 8 y el 12%, pero contrataron a Howard para averiguar la cantidad exacta. Luego de una búsqueda exhaustiva, no se encontró un número satisfactorio y se decidió que se elegiría el 10% – quizás por ser equidistante. Sin embargo, Howard estaba profundamente frustrado porque su investigación no pudo demostrar el valor más justo para agregar edulcorante a la soda.

Algún tiempo después, su gran momento llegó cuando una poderosa empresa de alimentos, “Campbell’s Soup” (recuerde a Andy Warhol), un productor de una salsa para espaguetis llamada Prego, lo invitó a estudiar su producto. Fue cuando recibió la propuesta de crear una fórmula ideal para la salsa Spaghetti Prego que se dio cuenta de que la pregunta sobre Pepsi estaba equivocada. Su respuesta a la compañía de salsa espagueti fue: “No existe la Pepsi perfecta; hay las Pepsis perfectas. Por tanto, tampoco existe una salsa de espagueti perfecta, sino muchas formas de disfrutarla”.

Después de producir 45 combinaciones diferentes de salsas de tomate, combinando sus principales características por dulzor, por nivel de ajo, por acidez, por sabor a tomate y por sólidos visibles visitó las grandes ciudades de Estados Unidos llevando sus múltiples variedades para hacer experimentaciones con voluntarios.

Cuando observó los resultados no trató de encontrar el sabor favorito entre las puntuaciones que dieron los voluntarios para cada variedad. No, ya no creía en un modelo que satisficiera todos los gustos. Lo que hizo fue agrupar los resultados en grupos de preferencias. Entonces, descubrió que la mayoría de las personas caen en uno de tres grupos: hay personas a las que les gusta la salsa de espagueti simple, hay personas a las que les gusta la salsa de espaguetis picante y hay personas a las que les gusta el extra-chunky, la salsa con sólidos de tomates visibles.

De estos resultados, el último, el extra-chunky, fue el más significativo, precisamente porque a mediados de los años 80 no existía una salsa para espaguetis que tuviera esta característica. Entonces los directores de Campbell respondió a Howard: “¿Nos está diciendo que un tercio de los estadounidenses anhelan la salsa de espagueti extra-chunky y, sin embargo, nadie satisface sus necesidades?”

La respuesta fue “sí”, e inmediatamente Campbell creó una nueva línea de salsas y dominó el mercado por completo, y en los diez años siguientes recaudó $ 600 millones de su línea de salsas extra-chunky. Hoy en día existen al menos 36 tipos diferentes de salsas para espaguetis de la marca Prego, y con su competidor Ragu lo mismo. Pero lo más importante de este cambio fue la posibilidad de verlo como un hito para la cultura y los deseos humanos.

Hasta mediados de la década de 1980, estábamos obsesionados con la universalidad para encontrar el modelo perfecto para todo. La Pepsi perfecta, el café perfecto, el reproductor perfecto e incluso la salsa de espagueti perfecta. Lo que estos experimentos nos enseñan es que no existe un modelo “perfecto” simplemente porque somos seres humanos diferentes, con gustos, visiones, historias personales, perspectivas de vida y culturas diferentes donde estamos involucrados. ¿Por qué personas tan diferentes deberían tener los mismos gustos?

Aquí es donde me permito vincularme con la historia del parto en nuestra cultura occidental. “El parto es parte de la vida sexual normal de una mujer”, como dijo Odent. El parto es un aspecto de tu sexualidad, pero si podemos entender que las mujeres no gimen, lloran, aman, pelean y tienen sexo de manera uniforme, ¿por qué seguimos pensando que deberían dar a luz de modo igual? Por qué insistimos en el error del “parto perfecto”, cuando en verdad lo que conviene a uno puede resultar un desastre para el otro.

Podemos analizar cualquier elemento para este tema. La presencia de un compañero o familiar parece adecuada para la mayoría de las mujeres, pero hay muchas que prefieren que esta tarea se realice en el más absoluto aislamiento de las personas de la familia. El lugar de nacimiento es bastante obvio: muchos todavía prefieren el hospital por su promesa – y la gigantesca propaganda – de seguridad que tienen estos lugares. Sin embargo, un número creciente y constante de mujeres prefiere dar a luz en Casas de Parto y en sus propias casas, porque se sienten más seguras allí.

¿Están equivocados aquellos que toman decisiones diferentes a la mayoría? Según investigaciones y estudios no. Simplemente adaptan sus características de personalidad a sus elecciones de vida. El gran salto de la ciencia contemporánea es el concepto de variabilidad, y esto se aplica incluso al tema de la sexualidad. Aquellos más viejos pueden ver fácilmente la diferencia en el trato en asuntos relacionados con la orientación sexual y la identidad sexual. ¿Están equivocadas las personas que eligen orientaciones diferentes a las de la mayoría? ¿Es un error tener una identidad sexual diferente a su biología al nacer?

La respuesta es no. Hoy estamos aprendiendo a valorar la diversidad y la variabilidad. Nos estamos dando cuenta de que los seres humanos son diferentes y pueden tomar decisiones sin restricciones. Este tipo de visión terminará inevitablemente impregnando la medicina y las opciones sobre temas reproductivos y sexuales. La forma de dar a luz es parte de nuestras elecciones más íntimas, y ya no hay espacio para imposiciones homogeneizadoras.

Existe un experimento muy sencillo para comprender la importancia de la libertad de elección, y eso se hace con el café. Si a un grupo de personas se le asigna la tarea de evaluar un café servido, ¿cuál es el puntaje promedio que recibiría un café? Bueno, los estudios indican que esta nota sería un 60% de aprobación.

Sin embargo, ¿qué pasaría si, en lugar de presentar un solo tipo de café para probar, pudiéramos presentar tres tipos distintos: fuerte, medio y débil? Si la posibilidad de elegir estuviera presente en solo 3 modalidades – sin incluir otras innumerables, como temperatura, origen del café, etc. – el resultado sería 78%. Ésta es la diferencia entre no tener opción y poder elegir mínimamente.

Para el nacimiento humano podemos admitir que la existencia de opciones, tantas cuantas sean posibles, aumentará significativamente el sentimiento de bien estar ante este evento tan importante como el nacimiento. No solo en relación con las participantes – médicos, enfermeras, parteras, familia, niños – sino también con el lugar de nacimiento, el medio ambiente, el uso o no de los medicamentos (cuando es posible elegir), la posición de dar a luz, la iluminación, el silencio, etc.

Ciertamente creo que el nacimiento en el siglo XXI nos ofrecerá una explosión de diversidad porque las personas se darán cuenta de que su perspectiva particular del mundo debe ser respetada y necesariamente se expresará en el parto. El parto “estándar” irá desapareciendo poco a poco como un traje viejo que ya no nos sirve.

Los valores fundamentales que se pueden extrapolar a la atención del parto a partir de los hallazgos de Howard Moskowitz se pueden agrupar en 4 puntos:

  • No sabemos lo que queremos hasta que tenemos la oportunidad de afrontar nuestras experiencias y elegir sabiamente.

Si no conocemos las alternativas, no tenemos opciones. Así como los estadounidenses no conocían la “salsa de espagueti extra-chunky”, muchas mujeres no saben que pueden tener una pareja a su lado, dar a luz o en cuclillas o incluso planificar su parto fuera del hospital con profesionales calificados.

  • Segmentación es horizontal y no vertical

Es decir: no existe jerarquía entre los modelos de asistencia al parto. Tener un parto en casa no es mejor que tener un parto en el hospital.  Una cesárea puede ser más riesgosa que un parto normal, pero no es inferior a esto desde una perspectiva subjetiva y personal. Son elecciones que se toman en la intimidad de cada mujer y no pueden juzgarse como inferiores.

  • Afrontar la noción del “nacimiento platónico”.

Es necesario combatir la idea de un parto “platónico”, que es el parto perfecto que será adecuado para todas las mujeres. Se trata de una concepción anticuada y anacrónica, que no puede persistir en un mundo que reconoce la diversidad y variabilidad. No existe el nacimiento perfecto; hay partos perfectos adaptados a cada mujer y para cada parto.

  • Perseguir el “parto perfecto” y los modelos universales en el parto no es solo un error; es un deservicio para las mujeres y los bebés.

Mantener la idea de “un parto que se adapta a todos” no es solo un error, sino un flaco favor brutal para todas las mujeres y sus bebés. Creer que hay una forma única de atender los partos es una agresión contra las diferencias humanas y una falta de respeto por la propia sexualidad de las mujeres. Mantener ese poder únicamente en manos de médicos y hospitales es algo que ya no podemos aceptar.

El parto desde la perspectiva del sujeto es el último elemento de la lista de grandes saltos cualitativos en la atención al parto y nacimiento. Creo que este nuevo milenio que se inicia será asumido por esta nueva línea de pensamiento, sobre todo porque está ligada a nuestra búsqueda milenaria de autonomía y libertad de elección. Las mujeres, que durante siglos de patriarcado se vieron obligadas a someterse a las determinaciones de los demás, asumirán ahora una nueva posición de protagonismo y plena responsabilidad.

Estamos en los albores de una nueva era para el nacimiento humano. Que sea bienvenido.

Gracias.

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Obstetrícia e Ciência

CURSO DE HUMANIZAÇÃO DO NASCIMENTO

Ric Jones

(Baseado no artigo “Bad Habits” de Masden Wagner, MD)

I. Introdução

Segundo a concepção de vários escritores e pensadores da atualidade, a ciência contemporânea ocupa o espaço deixado vago pelas religiões no imaginário social, oferecendo as mesmas promessas de redenção e elevação que historicamente foram sustentadas pelas organizações religiosas. No ocidente, imagens de progresso permeiam a mídia relacionadas à tecnologia aplicada à saúde, criando uma atmosfera de ufanismo em relação ao combate às doenças e muitas vezes abafando o necessário senso crítico. Estimula-se uma ideia de transcendência e salvação, uma trilha de bem-aventurança pelo caminho da sofisticação tecnológica, que enfim vai nos redimir das limitações humanas. O progresso, entretanto, pode ser enganoso. Muitos chamam esta vinculação mítica com o progresso tecnológico simplesmente como “modernidade”, apesar de que talvez seja mais bem interpretado como escatologia.

Na teologia cristã a escatologia é aquilo no que depositamos esperança, o que preenche o futuro, os objetivos da história sendo materializados no Reino dos Céus ou na vida eterna (Janice Raymond). Em função desta visão mitológica relacionada ao uso da tecnologia, no caso especial da assistência ao parto, as discrepâncias entre a prática médica obstétrica cotidiana e as recomendações baseadas nas evidências são chamativas e desconcertantes. O debate relativo ao uso apropriado da ferramenta tecnológica para o parto não vem de longa data, sendo recentes as primeiras tentativas de estabelecer um consenso. Hoje em dia, em função dos custos crescentes na atenção à saúde, e a ideia de que este modelo tecnocrático é uma “bolha” prestes a explodir, é clara a necessidade de que se construa um espaço de diálogo entre as evidências científicas e a ação médica cotidiana.

Ao observar a inexistência de embasamento em inúmeras práticas rotineiras durante a gestação e o parto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) criou, no ano de 1979, o Grupo Europeu de Estudos Perinatais (European Perinatal Study Group), convidando múltiplos atores sociais para um debate sobre as práticas relacionadas ao parto e nascimento. Dentre os representantes encontrávamos obstetras, neonatologistas, parteiras, enfermeiras, epidemiologistas perinatais, administradores da saúde, economistas, psicólogos, sociólogos e usuários. A ideia central destes encontros, financiados e promovidos pela OMS, não era como lidar com gestações de alto risco, mas, pelo contrário, seus objetivos precípuos eram como trabalhar com a vasta maioria de mulheres saudáveis que se encontravam diante dos desafios de uma gravidez normal.

No início das discussões, nos primórdios da década de 80, o termo “medicina baseada em evidências”, ainda era pouco utilizado, e não tinha a importância que tem nos dias de hoje como a principal ferramenta clínica para a prática médica (vide módulo IV – Obstetrícia e Medicina Baseada em Evidências – deste mesmo curso). Assim, o Grupo Europeu de Estudos Perinatais questionou as práticas vigentes em inúmeros serviços de atenção ao parto, utilizando as evidências científicas como critério para determinar quais as que deveriam fazer parte da prática rotineira e quais as que deveriam ser abandonadas por uma falta de consistência científica.

Este grupo pioneiro realizou um estudo da literatura mundial sobre práticas obstétricas e perinatais que demonstrou que apenas 10% das intervenções médicas tinham uma base satisfatória em evidências (Fraser, 1983).

Tal grupo conduziu pesquisas demonstrando grandes variações nas práticas obstétricas, com pequena ou nenhuma diferença nos resultados perinatais (Bergsjo et al, 1983). Estas variações ocorriam entre países, dentro dos países, entre distritos e mesmo entre hospitais, comprovando que muito da prática obstétrica e perinatal não é necessariamente baseada nas melhores evidências científicas, mas nas opiniões e crenças dos médicos locais, especialmente na figura do “chefe de serviço”.

A realização das práticas obstétricas passa por uma construção essencialmente mitológica e totêmica. Aqueles em posição de autoridade possuem o poder de estabelecer rotinas e protocolos, sem a necessidade de que suas condutas recebam um tratamento científico e apurado; as “eminências” se tornam mais importantes do que as “evidências”. Apesar da aparência científica e racional, nossa organização médica obedece aos mesmos modelos de autoridade das sociedades simples e primitivas de milhares de anos passados.

As questões que surgem desta situação, que é comum em todo o mundo ocidental, são variadas e complexas. Se não são as evidências científicas as principais norteadoras das condutas dos profissionais que assistem aos nascimentos no ocidente, quais são as suas reais motivações?  Porque um evento essencialmente feminino como o parto é conduzido por pressupostos filosóficos tão marcadamente masculinos? Porque a distância entre as recomendações da OMS, Ministério da Saúde, OPAS, Biblioteca Cochrane e outras instituições renomadas e a prática diária nas maternidades do ocidente? Porque a ponte entre ciência e assistência está quebrada?

II. Razões para as Diferenças

Os profissionais que assistem ao nascimento humano são normalmente guiados por “padrões de assistência”, ou protocolos. A origem destes protocolos é multifatorial. Alguns deles são verdadeiramente baseados em evidências científicas, mas isso está longe, como veremos, de ser uma regra. Se as evidências revelam que uma prática em particular é extremamente arriscada (como Talidomida, Dietilestilbestrol, Raios X, etc…) é provável que esta conduta seja descartada dos protocolos. Se as evidências oferecem suporte para uma prática que favorece os médicos (monitorização fetal deve ser usada quando existe indução hormonal e bloqueio peridural) era será padronizada. Se uma prática é incontroversa e benéfica, mas não é favorável ao médico (postura verticalizada para o parto) a probabilidade de ela ser padronizada em um serviço é muito pequena, e é por esta razão que temos uma distância muito grande entre as evidências científicas e as práticas cotidianas nos centros obstétricos. Os critérios, no modelo contemporâneo de assistência, não são centrados na paciente; deslocaram-se para a figura do médico, atual detentor do conhecimento autoritativo relacionado ao evento. Assim percebemos que movimentos como a Humanização do Nascimento se baseiam na reversão de um padrão médico que deslocou mães e bebês do centro da atenção para colocar neste lugar as necessidades de médicos, instituições e os lucros do mercado da saúde.

Dentre as razões para a assimetria observada entre as evidências científicas e o que realmente observamos nos centros obstétricos, podemos enumerar as que se seguem:

a) Hábito – Os protocolos de assistência são questões importantes porque na sua elaboração concorrem vários fatores não médicos. Mesmo quando os clínicos oferecem a “experiência pessoal” como justificativa para a adoção de uma determinada prática a razão mais provável deve ser o “hábito” – a maneira como sempre foi feito. Por outro lado, é interessante notar, como nos ensinou Robbie Davis-Floyd, que o hábito não ocorre aleatoriamente nas sociedades, desde as primitivas às mais complexas. Em verdade, seria mais adequado chamar este fenômeno de “ritualística”. Mas porque deveríamos acreditar que os protocolos ou rotinas hospitalares são na verdade “rituais”, controlados por forças não racionais (ou pré racionais) poderosas e ligadas aos valores profundos de nossa cultura? Para entender melhor essa proposta faz-se necessário entender o conceito de ritual que Robbie Davis-Floyd utiliza:

“Um ritual pode ser definido como um ato repetitivo, padronizado e simbólico, de uma crença cultural ou um valor. Estas atitudes podem ser simultaneamente ritualísticas ou técnico racionais”.

Desta forma, a repetição padronizada de condutas dentro do centro obstétrico poderia caber perfeitamente no conceito de ritual, desde que essas mesmas condutas sejam representantes simbólicas de crenças e valores culturais. Ainda como nos diz Robbie,

“O Sistema de Crenças de uma cultura é encenado através de rituais, e uma análise destes rituais pode mesmo nos levar diretamente à compreensão deste sistema de crenças”.

Os enemas (lavagens), as roupas brancas e indiscretas, a separação da família, a tricotomia (corte dos pelos), o soro endovenoso, a episiotomia (corte vaginal para a saída do bebê) são rituais modernos que podem nos levar à compreensão de valores culturais profundos, principalmente no que diz respeito, ao feminino, à mulher e à própria posição que esta ocupa na cultura. O momento do nascimento é de profunda abertura sensorial, e o melhor período para que se determine o específico lugar que a mulher deve ocupar na sociedade. Com o surgimento do patriarcado, há dez mil anos, o evento da gravidez e do parto tornou-se um momento propício para um reforço da submissão feminina à nova ordem social. Muitos rituais encenados durante o nascimento são carregados desta simbologia. As limpezas, os cortes, as ligações com a instituição (soro), e a separação do recém-nascido cumprem essa função subliminar, e por esta razão são tão uniformemente distribuídas entre as culturas.

“Às vezes, as crenças e valores existentes são explicitados enquanto são representados, mas muitas vezes os valores profundos que um ritual expressa são da ordem do inconsciente, ao invés de conscientemente determinados”.(Robbie Davis-Floyd, 1992).

Os “hábitos médicos”, como vimos, são muitas vezes rituais que o sistema tecnocrático de assistência utiliza para ressaltar os valores dos quais os médicos são reprodutores e guardiões. Evidentemente que, em sua imensa maioria, estas atitudes são inconscientes. Entretanto, daí é que vem toda a força dos rituais obstétricos, pois a racionalidade não atinge as origens primitivas destes comportamentos, que se escondem no mundo obscuro dos desejos e motivações irracionais. Mesmo que existam explicações (e não justificativas) para a utilização de um grande número de rotinas hospitalares, a simples discussão racional de sua conveniência ou risco se mostra incapaz, em curto prazo, de desfazer a sua utilização em larga escala. Mostrar racionalmente a inadequação, por exemplo, da posição de litotomia, enemas, tricotomias ou da utilização irrestrita de episiotomias não se mostrou eficaz para erradicar rotinas evidentemente inadequadas e arriscadas para as mulheres e seus bebês, e as razões para essas discrepâncias estão nas raízes inconscientes para a sua utilização.

b) Conveniência – É evidente que em um mundo controlado pelo tempo o parto desempenha um desafio ao modelo contemporâneo de praticidade. Um nascimento pode ocorrer em 10, 12, 24 ou mais horas, requisitando a presença de um profissional que ofereça suporte, segurança e apoio para a paciente em trabalho de parto durante todo este tempo. Nos moldes atuais um obstetra (principal responsável pela assistência ao parto nas culturas das Américas) tem dificuldade em conciliar suas tarefas, empregos, férias, lazer e consultório privado com a eventualidade de um nascimento. A tentativa de controlar o início de um parto pode ser vista na incidência alarmante de induções de parto (uso de hormônios para o estímulo das contrações) ou mesmo nas cesarianas com hora marcada. Como um exemplo deste condicionante como modificador dos resultados, podemos ver no gráfico abaixo, a incidência de cesarianas na cidade de Porto Alegre e a sua frequência diminuída em sábados e domingos, indicando uma clara relação com o conforto dos profissionais que controlam sua execução.

O gráficos abaixo parte da base de dados de Registro Civil da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados). Ela contém diversos indicadores, como data, hora e local de nascimento, para 628 mil partos normais e cesarianas em todo o estado de São Paulo em 2014. Os dados permitem observar alguns padrões, que parecem não ter se modificado nos últimos 20 anos. (https://www.nexojornal.com.br/grafico/2018/03/14/Quais-os-dias-e-hor%C3%A1rios-mais-frequentes-para-partos-normais-e-cesarianas)

Não se trata de culpabilizar categorias ou corporações, mas de entender que as motivações não relacionadas diretamente com o bem-estar materno e fetal são realidades inquestionáveis e que produzem efeito. Estes efeitos podem ser claramente mensuráveis, e são responsáveis por inúmeros problemas na atenção às grávidas. Alguns destes resultados podem ser constatados pela incidência de 55.6% de cesarianas no Brasil, e mais de 30% nos Estados Unidos. A OMS determina, através dos consensos de assistência adequada ao nascimento, que “não existe justificativa para uma incidência de cesarianas acima de 15%, em qualquer lugar do mundo”. Assim sendo, os índices exagerados de intervenção, por si só, são indicadores muito claros de que algum conflito de interesses existe, forte o suficiente para modificar as condutas e procedimentos médicos.

Além disso, podemos contabilizar as dificuldades de pagamento para os profissionais que prestam assistência ao parto através de convênios de saúde. Em muitas grandes cidades do Brasil esses valores mal ultrapassam U$ 200.00, e é exatamente nas mulheres da classe média que as operações cesarianas são mais utilizadas. Como diz Marsden Wagner, “a camada social que menos necessita desta cirurgia é a que mais faz uso dela”.  A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) afirma que 88% das pacientes da classe média tem seus filhos através de cesarianas, o que significa que quase nove de cada dez mulheres deste segmento social realizam uma grande cirurgia para o nascimento de seus filhos, arcando com todos os riscos associados a ela.

Outro fato relacionado à conveniência é o treinamento deficiente dos profissionais médicos, tanto na escola médica quanto nas residências médicas. Com uma formação cada vez mais centrada na patologia e na resolução de problemas e doenças, o obstetra acaba devotando pouca atenção ao aprendizado complexo da assistência ao parto normal. Quanto mais se (ultra) especializa, mais perde o contato com a fisiologia do nascimento, e mais vai se afastando das habilidades múltiplas necessárias para a prática obstétrica fisiológica. O atendimento ao parto é uma capacidade desenvolvida através de milênios de adaptações, e tem sua sabedoria própria. A “redução” do nascimento a uma série previsível de eventos mecânicos retirou dos profissionais que o atendem as capacidades de entendimento psicológico, afetivo, emocional e espiritual, fundamentais para uma compreensão ampla do processo.

Cada vez mais os obstetras sabem menos como lidar com as demandas emocionais dos partos e, de forma inconsciente, direcionam suas pacientes para que sejam tratadas da forma para a qual foram treinados. As cesarianas, por diminuírem o tempo destinado ao cuidado, não atrapalharem o descanso do profissional, não colidirem com horas de consultório e emprego, não produzirem angústia diante do inesperado e por representarem o procedimento para o qual médico é mais treinado, representam uma solução mágica para os dilemas do parto. Infelizmente, mães e bebês é que continuam a pagar esta conta.

c) Medo dos Processos Na Inglaterra, já nos anos 90 do século passado, 85% dos médicos eram processados uma vez, e 65% duas vezes (Capstick & Edwards, 1990; Lancet Editorial, 1991; British Medical Journal Editorial, 1991). Nada nos faz acreditar que esta tendência tenha diminuído nos últimos 30 anos. No Brasil a cultura de processos contra médicos não chegou ainda a este ponto, mas o medo dos tribunais já faz com que os médicos daqui comecem a utilizar a “medicina defensiva” como postura padrão no atendimento aos pacientes. Como um exemplo deste clima de medo, a própria ACOG (American College of Obstetrics and Gynecology) apresentou ainda em 1995 um pronunciamento que critica a monitorização fetal contínua (ACOG, 1995), mas isso não foi suficiente para diminuir o uso alastrado de monitorizações fetais em trabalhos de parto normais. Essa conduta, baseada na insegurança e no medo do sistema jurídico, acaba obrigando o médico a uma reação protetiva, mas acarreta interpretações equivocadas de estresse fetal que, por sua vez, levam a intervenções e cesarianas em profusão. Muitas vezes esta conduta é a ação deflagradora da “cascata de intervenções” do cuidado com o parto. Tal atitude é provocada pelo pânico que os médicos apresentam de que a ausência de uma documentação clara do bem-estar fetal possa ser usada contra si mesmos em juízo.

Os obstetras no Brasil são a especialidade mais processada, e quase todos os processos estão relacionados com a assistência ao parto normal. Quase nunca encontramos acusações contra médicos que abusam de cesarianas, mesmo que os resultados sejam funestos e desastrosos. Profissionais que usam a tecnologia, mesmo que de forma inadequada e perigosa, estão protegidos por um manto de proteção, através do “imperativo tecnocrático”, que diz que “se houver tecnologia ela deve ser usada”. Esses comportamentos se baseiam no “mito da transcendência tecnológica”, que é um dos mitos mais poderosos da cultura ocidental contemporânea.

Acreditamos, enquanto sociedade tecnológica individualista, na capacidade transformadora e redentora da tecnologia, e essa crença – de caráter pré racional – é a principal condutora de nosso comportamento. Enquanto os médicos que utilizam a medicina baseada em evidências não forem protegidos, através de uma discussão global de políticas de saúde que inclua o judiciário e o Ministério Público, o medo dos processos e dos julgamentos baseados em modelos de práticas locais continuará a manter nos médicos uma atitude amedrontada e defensiva, acarretando um crescimento de intervenções e da consequente morbidade relacionada ao parto.

d) Interesses Comerciais – O poder dos interesses econômicos no parto é sutil, mas muito difundido. Universidades, hospitais e médicos cooperam de maneira íntima com a indústria. Esta tem acesso aos pacientes e a pesquisadores médicos altamente capacitados. A indústria também ganha na publicação paga de pesquisas – relacionadas ao uso de tecnologia – em jornais médicos e congressos. Médicos e outros profissionais podem promover suas carreiras através de pesquisas financiadas pela indústria de medicamentos e equipamentos, o que é uma forma de conseguir status e reconhecimento.

Inegavelmente, desde a transformação da medicina em um “negocio bilionário”, as pressões das grandes corporações de medicamentos são cada vez mais fortes. Hospitais faturam mais com as cirurgias internações, produzindo uma necessidade de manter a lotação dos hospitais sempre acima de um nível crítico, usando a mesma lógica da hotelaria comum. Os custos hospitalares são altíssimos em função dos profissionais qualificados que são chamados a trabalhar lá, além da manutenção dos equipamentos de alta tecnologia e de última geração. Diante dessa contingência, hospitais são vistos como empreendimentos caros e gerenciados com a mesma lógica capitalista de lucro, segurança de investimento e risco. Por outro lado, a “matéria prima” dos hospitais é o doente, que se torna moeda corrente e objeto de manipulação. Com todas estas pressões é natural que existam interferências de caráter econômico e financeiro nas decisões dos profissionais concernentes às condutas clínicas e, em última análise, sobre a saúde e o bem-estar dos pacientes.

III. Conclusões

O princípio básico fundador da atividade médica é de que, qualquer que seja a conduta, ela deve ser primariamente em benefício do paciente, e não dos profissionais ou do sistema. Desta maneira, os fatores não médicos de hábito, conveniência, medo de processos e interesses comerciais – que são claramente relacionados com os interesses dos profissionais – jamais deveriam influenciar os protocolos e rotinas de atenção ao parto. Infelizmente a realidade nos mostra que tais protocolos e rotinas obstétricas, em todos locais avaliados, refletem uma compilação e uma legitimação das opiniões e experiências de médicos influentes, baseados simplesmente no que estes realizam em suas práticas. Infelizmente, as práticas assim determinadas não são normalmente baseadas em evidências, e refletem fortemente a pressão de fatores alheios ao cuidado nestas condutas e rotinas.

Ao lado disso, o poder do conhecimento usado por profissionais que possuem autoridade não se expressa no sentido da adequação destas condutas, mas porque “é assim que funciona” (Jordan, 1993). A antropóloga alemã Brigitte Jordan, descreve que:

 “Para legitimar uma forma de conhecimento como sendo autoritativa é necessário desvalorizar ou diminuir todas as outras formas de conhecimento” (Jordan, 1993).

Assim, os profissionais da área da saúde que resolvem trabalhar com um modelo humanístico, centrado na pessoa e mesmo com condutas baseadas em evidências, são frequentemente tratados como “hereges” ou ameaçantes ao sistema (“Global Witch Hunt”, Marsden Wagner). Segundo, ainda, as palavras de Brigitte Jordan,

“Aqueles que se ligam a sistemas alternativos de conhecimento tendem a ser considerados como atrasados, ignorantes, ingênuos ou ‘criadores de caso’. O que quer que digam a respeito da negociação sobre práticas obstétricas de rotina, por exemplo, é considerado irrelevante, sem fundamento ou sem relação com o assunto”.  (Jordan, 1993)

A lista de intervenções contemporâneas com discrepâncias entre as práticas e as evidências científicas é longa, e inclui: ultrassonografias de rotina durante a gravidez, uso rotineiro de monitorização fetal, indução com ocitocina ou misoprostol, posição de litotomia durante o período expulsivo, cesarianas e episiotomias (veja mais sobre esses procedimentos no módulo IV “Obstetrícia e Medicina Baseada em Evidências”). Além disso, alguns modismos obstétricos aparecem de tempos em tempos. “Cada dogma tem sua chance de aparecer”, como já nos alertava Marsden Wagner, em “Bad Habits”. Há algumas décadas o manejo ativo do trabalho de parto (Active Management) era um destes dogmas, apesar de nunca ter apresentado uma base científica consistente (Thornton & Litford, 1994). Outro modismo é a epidemia de bloqueios peridurais no combate à dor no parto, com igual falta de suporte em evidências (Howell, Chalmers, 1992; Chalmers, 1992). Além disso, os riscos para mães e bebês raramente são incluídos nos consentimentos informados a respeitos dos bloqueios anestésicos (Thorp et al, 1993; ACOG, 1995).

Muitas outras condutas atuais representam esta tendência de aplicar às rotinas condutas influenciadas por fatores não médicos, mas que de alguma forma beneficiam os profissionais e suas corporações, o modelo econômico e as instituições. Qualquer incorporação de tecnologia é recebida quase sem restrições e, mesmo que os resultados sejam comprovadamente negativos (episiotomias de rotina, monitorização eletrônica, parto em decúbito dorsal, ultrassonografias de rotina, etc.), sua retirada é extremamente lenta. Como um exemplo muito claro dessa tendência, os trabalhos definitivos contrários às episiotomias de rotina datam de 1987, há mais de 3 décadas. Entretanto, ela ainda é realizada na imensa maioria dos partos normais do Brasil. A razão para isso é que sua introdução sintonizava fortemente com uma crença social inconsciente de “transcendência tecnológica” além de apoiar e sustentar a compreensão cultural da “defectividade feminina essencial”. Somente o entendimento destas forças incorpóreas e poderosas será capaz de fazer com que sobrepujemos estas crenças despregadas da realidade científica e possamos oferecer o melhor para as mulheres que passam pelo mais incrível e transformador “ritual de passagem”: o nascimento de seus filhos.

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Sites

Exercícios sobre o Texto (Módulo 3)

Estude cuidadosamente o texto “Obstetrícia e Ciência” e responda as questões que seguem de modo objetivo e procurando dar exemplos práticos sobre os assuntos a que elas se referem. Preferencialmente, não utilize mais do que duas páginas para todas as respostas solicitadas neste exercício.

  1. Porque os protocolos obstétricos podem ser considerados como rituais? Explique.
  2. Qual a origem das discrepâncias entre as práticas obstétricas correntes e a medicina baseada em evidências?
  3. Porque a utilização de condutas baseadas em evidências científicas esbarra na postura de profissionais em posição de autoridade?
  4. Como as questões econômicas influenciam as práticas rotineiras em centros obstétricos? Que alternativas podemos oferecer para este tipo de interferência?

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Entre as Orelhas

APRESENTAÇÃO

Meu nome é Ricardo Jones e eu sou um ativista do parto humanizado. Há mais de três décadas, quando comecei a atender partos, ele era assistido de maneira tradicional, como costumávamos ver no cinema e na televisão: mulheres abaixo, médicos acima. Os maridos ficavam do lado de fora aguardando informações. Gestantes faziam seus puxos com a orientação dos obstetras, deitadas em posição ginecológica. Episiotomias eram cortadas e depois costuradas, os puxos eram dirigidos, as manobras de Kristeller eram corriqueiras. Entretanto, por ter passado muito cedo pela experiência traumática como pai, eu percebia que a forma como atendíamos o parto era violenta e desrespeitosa, não apenas com a mulher e sua fisiologia, mas também com seus companheiros, a família e a própria natureza humana e seus milhões de anos de aperfeiçoamento. Antes mesmo do início da década de 90 do século passado eu tomei uma decisão dramática, que impactaria a forma como passaria a atender nascimentos.

Nos últimos 20 anos eu viajei pelo mundo inteiro falando das minhas experiências com a humanização do nascimento da forma como foi operacionalizada através de uma “equipe transdisciplinar” em minha cidade. Falei em praticamente todas as capitais do meus país, mas também em lugares tão diferentes como México, Estados Unidos, Uruguai e Argentina na América, mas também Portugal, Reino Unido e Bulgária na Europa, e a China continental na Ásia.

Depois de mais de 30 anos de perseguições pela corporação médica do meus país eu interrompi meus atendimentos e me dedico a escrever, fazer palestras e dar cursos sobre humanização do nascimento, educação perinatal, formação de doulas e homeopatia para profissionais do parto. Aqui vemos algumas fotos da comunidade onde vivo no sul do Brasil, junto à natureza e aos meus netos. Ela se chama “Terramã”, que significa “Mãe Terra”.

Para que se tenha uma noção das dimensões, o meu estado “Rio Grande do Sul” é do tamanho da Nova Zelândia, e tem uma população de 11 milhões de habitantes. Aqui podemos ver a minha cidade, o estádio do Grêmio – meu time de futebol – e o lago Guaíba.

O Brasil é um país multiétnico, um cadinho de raças, mas marcado pela escravidão, de forma muito semelhante como ocorreu com os Estados Unidos. Porém, diferentemente dos americanos do Norte, nossa miscigenação foi muito mais intensa e a entrada da cultura negra se espalhou de uma forma muito mais abrangente e marcante. Somos um país em que 51% da população é formada por não-brancos, ao contrário dos americanos onde a comunidade negra não passa de 12% da população. Ainda temos também a maior comunidade japonesa fora do Japão. Entretanto, convivemos com muito racismo estrutural no Brasil, em especial contra a população negra e indígena.

Minha história com a humanização do nascimento se iniciou há quase 35 anos, ainda durante a minha residência. Foi lá mesmo que eu percebi que as mulheres eram consideradas objetos de manipulação pelo sistema médico, sem voz e sem direitos, e que o nascimento de seus filhos era determinado por instâncias de poder alheias a elas. Foi nesta época que iniciei com duas ações que hoje são consideradas simples, mas que significavam uma agressão ao sistema de poderes instituídos: o parto na posição de cócoras e a autorização para a presença dos pais na sala de parto. Por esta razão, minhas ideias de humanização do nascimento sempre foram atacadas pelo poder instituído, assim como foi feito com tantos outros profissionais da humanização do nascimento no Brasil.

ATENÇÃO AO PARTO NO BRASIL

Uma coisa importante de esclarecer sobre a saúde do Brasil é o fato de que temos um sistema de saúde muito peculiar, formado por três partes. A primeira é o SUS – Sistema Único de Saúde – criado em 1988 pela Constituição Federal Brasileira, que determina que é dever do Estado garantir saúde a toda a população brasileira. A abrangência do SUS é universal, como direito básico e inalienável da população brasileira. Ao lado disso, temos a saúde suplementar, formada por empresas de seguro saúde, como as que existem nos Estados Unidos – como Kaiser, Humana, etc.

Para além dos “sistemas pré-pagos” existe o sistema privado, onde médico e paciente contratam-se livremente para o atendimento, por negociação direta entre paciente, médico e instituição hospitalar. É exatamente nos últimos dois sistemas – seguro saúde e livre negociação – que o abuso de cesarianas impera, mostrando que a disparidade entre os poderes do médico e da paciente em negociação direta faz com que as mulheres “optem” ilusoriamente por uma intervenção que traz inequívocos benefícios para os médicos, mas quase nenhum para as gestantes e seus filhos.

No sistema público de saúde a taxa de cesarianas chegou a um patamar de 43% dos nascimentos, o que já seria um valor acima de qualquer consideração médica e de saúde pública. Entretanto, no setor de Medicina Suplementar (seguros saúde) e nos pacientes privados o descontrole é total, tornando a cesariana a via de parto de quase 9 entre 10, mormente da classe média, já que a prevalência dessa cirurgia neste segmento populacional é de 88%.

Este fenômeno de abuso da cesariana certamente que não ocorre em um vácuo social. Em verdade ele se expressa dentro de um modelo sistêmico, global, atingindo todas as populações e de todas as latitudes. É muito intenso em países em desenvolvimento, mas também atinge países plenamente desenvolvidos, como na Europa e os Estados Unidos. Países como México, Brasil e Argentina na América do Sul e Coreia do Sul na Ásia são exemplos de países que têm ao redor de 50% de cesarianas – e isso é um grave problema de saúde pública.

Entretanto, este fato não se refere simplesmente a países com carência na atenção básica de saúde, mas uma questão bem mais profunda, sociológica e estrutural, que diz respeito ao entendimento do papel da mulher na cultura e a exaltação da tecnologia como entidade sobrehumana de superação das fragilidades da espécie.

No Brasil, por exemplo, temos 98.5% das pacientes recebendo cobertura pré-natal, o que é um valor bem razoável se levarmos em consideração o tamanho da floresta amazônica e todos os desafios de oferecer cobertura médica em uma região selvagem. Também é fato que 56.5% das mulheres iniciam seu atendimento pré-natal antes das 12 semanas e 75% delas são vistas pelo setor público. Inobstante essa abrangência, a violência obstétrica – que é uma variante da violência de gênero – ainda é uma realidade no Brasil. Em 2011, quando tínhamos uma taxa de cesarianas da ordem de 52%, saltava aos olhos o fato de que, mesmo entre os partos vaginais, a imensa maioria destes ocorria sob intervenções médicas, e apenas 5% de todos os partos no país ocorriam sem qualquer tipo de intervenção – os únicos que poderiam receber o nome de “partos fisiológicos”. A hipermedicalização dos nascimentos, para além dos benefícios para mães e bebês, é também uma forma de violência.

A DOMESTICAÇÃO DO PARTO PELA CULTURA

Assim, a partir do início do século XX, o nascimento humano foi se transformando em um evento cada vez mais artificial, controlado pela corporação médica, tratado como doença e apartado do local de segurança onde as mulheres tiveram seus filhos durante milhares de anos. A imagem do parto no imaginário social transformou-se gradativamente do aconchego e da presença da família para os hospitais, as roupas cirúrgicas e os aparatos tecnológicos, afastando-se da sua origem e da própria fisiologia humana.

Em 1992, durante uma visita à capital argentina Buenos Aires, fiquei impactado ao ver, pela primeira vez, a imagem da página 138 do livro “Nacimiento Renacido“, de Michel Odent. Diante do golpe estético que experimentei ao ver esta imagem, me senti obrigado a desvendar seus significados: por fim me dei conta de que era exatamente essa conexão física, emocional, intensa e profundamente feminina que oportunizava às mulheres percorrer os labirintos obscuros do ser feminino com mais confiança. Na imagem que tanto me chocou uma parteira abraçava o corpo nu de uma gestante no chão da sala de parto e percebi, entre triste e esperançoso, que era essa a parte que me faltava, a qual eu carecia e que as doulas poderiam ajudar, acrescentando a feminilidade e o contato amoroso ao trabalho técnico de médicos e obstetrizes. A partir de então eu dedicaria a minha vida a criticar o modelo obstétrico contemporâneo, tentando desvelar o universo afetivo, sexual e feminino do nascimento, escondido sob as capas pesadas da tecnocracia.

Sabemos que o objetivo mais desejado por um profissional de atenção ao parto é o trajeto tranquilo desde o diagnóstico da gestação até amamentação alargada, mas para isso acontecer é preciso que esteja atento a todos os elementos que dificultam essa transição. Os protocolos rígidos e despersonalizantes, a insensibilidade dos profissionais a respeito dos múltiplos aspectos da gestação, os inúmeros mitos que cercam esse evento especial e as relações de poder – onde a gestante é a parte mais frágil – levam a que este caminho seja cheio de obstáculos difíceis de transpor. É a tarefa dos cuidadores orientar e desviar destes transtornos, oferecendo confiança e orientação de qualidade para que a grávida e sua família sintam-se acolhidos e possam fazer suas próprias escolhas através da garantia de um sistema de escolhas e recusas informadas. Só assim poderemos fazer com que a travessia desde o início da gestação até o desmame seja o mais tranquilo possível, consertando a ponte que liga todas as partes dessa grande aventura humana.

Diante da suprema artificialização do nascimento pelo modelo tecnocrático ainda cabe perguntar o que significa “normal” quando se fala de parto. Afinal, o que ainda podemos chamar de “normal” quando se trata de parto e nascimento na vigência da tecnocracia?

PARTO HOSPITALAR CONTEMPORÂNEO

Num atendimento clássico hospitalar no meu país existe uma sequência previsível de ações para a atenção ao parto, mas que não necessariamente obedece a qualquer evidência científica.

  1. A paciente chega ao hospital em uma cadeira de rodas, junto com o marido;
  2. Depois de ser separada do marido, vai para uma sala onde fará avaliação do batimento cardíaco fetal, da pressão arterial e da temperatura;
  3. Em seguida fará enema intestinal, tomará um banho e realizará a tricotomia perineal; se é verdade que no nosso país não é mais rotineiro, também é verdade que em muitas localidades essas práticas ainda são comuns.
  4. Depois disso trocará sua roupa e colocará uma bata hospitalar;
  5. Será escolhido um leito que será o seu até a dilatação completa; hoje a maioria das maternidades públicas e privadas possuem salas de parto, onde as gestantes entram com 5/6 cm de dilatação. Solicita-se que internem com 3 contrações médias/fortes em 10 minutos por uma hora sustentada, para só então serem admitidas e garantir que não fiquem por muito tempo. Ainda assim, por muitos anos, o leito do centro obstétrico como o localizador da paciente foi a norma.
  6. Colocação de uma via parenteral (soro) com ou sem ocitocina;
  7. Monitorização eletrônica fetal;
  8. Avaliação da dilatação do colo uterino para colocação no partograma;
  9. Tempo para a dilatação, mantida no leito, o que leva a um descontrole sobre a dor, pela posição, a restrição no leito, o isolamento e muitas vezes a ocitocina;
  10. Analgesia peridural, o que dificulta os movimentos e traz muitas outras alterações; aqui no Brasil existe – na imensa maioria das maternidades – a gratuidade das anestesias, mas em outros países elas muitas vezes só ocorrem mediante pagamento direto aos anestesistas.
  11. Transferência para a sala de parto;
  12. Episiotomia médio lateral;
  13. Parto na posição de litotomia;
  14. Corte prematuro do cordão, imediatamente após o nascimento, que apesar de estar mudando, ainda é extremamente frequente em maternidades brasileiras;
  15. Separação da mãe e do bebê para avaliações do recém-nascido e atendimento à reparação da episiotomia;
  16. Envio para a sala de recuperação, maternidade e alta hospitalar

É forçoso reconhecer, entretanto, que apenas a avaliação do bem-estar materno e fetal (pressão arterial, avaliação da temperatura e batimentos cardíacos fetais) possuem evidências científicas seguras e confiáveis. Todas as outras ações são culturalmente determinadas e não possuem embasamento em estudos e publicações atualizadas que os sustentem.

O antropólogo Peter Reynolds, que escreveu “Stealing Fire”, descreve neste livro a sequência de ações sobre o parto contemporâneo através do que ele chamou de “Punch Theory”. Para ele, o mito da transcendência tecnológica nos faz acreditar que a resposta para os dilemas da humanidade será através de mais intervenção tecnológica, na famosa equação onde o primeiro impulso é nossa ação destruidora sobre o mundo natural e os impulsos subsequentes – hospitais, drogas, leitos de UTI, cirurgias, antissepsia, antissépticos, antibióticos e profissionais altamente treinados em patologia – atuam no sentido de consertar os estragos iniciais, porém sem questionar sua origem com a profundidade necessária.

Porém, a experiência nos prova que é o próprio afastamento da vivência natural do parto e o afastamento sistemático e insidioso da sua natureza (punch 1) o que produziu a maior parte dos distúrbios que hoje testemunhamos. Desta forma, nos transformamos em técnicos especializados em múltiplas intervenções (punch 2) que servem para consertar os problemas criados pela nossa própria atuação intempestiva.

MITOS NA ATENÇÃO AO PARTO

Sabemos, através dos ensinamentos de Robbie Davis-Floyd no seu livro “Birth as an American Rite of Passage” que os protocolos e rotinas realizados no hospital podem ser considerados rituais, pois são repetitivos, padronizados e simbólicos. Rituais são ações que servem para manter e reforçar os valores mais profundos de uma determinada sociedade. Também é claro que podem tanto ser conscientes quanto inconscientemente executados. Minha experiência pessoal é de que, no que concerne às ações realizadas nos hospitais com as gestantes, a gigantesca maioria dos profissionais não tem nenhuma noção de que perpetuam, em seu trabalho, uma encenação cuja principal função é amenizar as tensões inerentes às incertezas do trabalho de parto e cujo resultado é sempre uma questão em aberto – por mais que sejamos cuidadosos. Assim, todas as atitudes da equipe profissional no ambiente do parto são marcadas por uma porção visível e aparente – com ou sem embasamento científico – mas possuem uma face oculta, formada por sua conexão com valores inconscientes que formam a estrutura da nossa sociedade.

Os rituais mais evidentes na atenção ao parto são:

  • Uniformização

É evidente que toda a parturiente vai apresentar características pessoais no seu trabalho de parto. A velocidade, a intensidade das contrações e da dilatação, a percepção da dor, seu comportamento calmo ou agitado e seu estado de espírito serão diferentes em cada mulher atendida, e mesmo na mesma mulher em gestações subsequentes. Isso estabelece um desafio para quem precisa tomar conta de inúmeros processos subjetivos potencialmente muito diferentes entre si. Como a atenção ao parto se estabelece com uma assimetria de poderes, com as mulheres obedecendo e os profissionais controlando, é fácil entender porque existe uma tentativa de “uniformizar” as pacientes, para que assim elas sejam mais facilmente controladas. O mesmo ocorre em outras situações sociais onde a hierarquia de poderes é rígida como na prisão, na escola, na igreja ou na polícia. A uniformização serve para reduzir as mulheres à sua função materna, retirando delas o máximo possível de sua subjetividade.

  • Tricotomia

Na mesma linha de raciocínio da uniformização, a tricotomia serve para tornar as mulheres idênticas. Para além disso, a tricotomia serve como um potente sinalizador do desconforto que causa a expressão da sexualidade no corpo das grávidas. Os pelos pubianos são a manifestação física da maturidade sexual e sua ausência nos remete à infância e à inocência. O parto é pureza casta; o sexo é impuro. Assim, retirar das mulheres os pelos pubianos tem uma tripla função: uniformização, dessexualização e infantilização. Estes elementos garantem à gestante uma posição inferior na hierarquia de poderes no nascimento, apta a ser complacente e obedecer às determinações da equipe de atenção.

  • Via de acesso parenteral

Gestantes são frequentemente colocadas em acesso venoso tão logo chegam ao centro obstétrico. A razão para isso não se sustenta em evidências, mas na cultura do medo e no “imperativo tecnológico”. Usa-se, como justificativa, o “mas, e se…”, para usar o acesso venoso no caso de algo grave acontecer, mas este tipo de procedimento nunca se comprovou útil e eficiente. Para além disso manda uma mensagem subliminar de que a paciente está conectada e presa ao sistema, como alguém que perde sua liberdade para se adaptar as regras do lugar onde se encontra.

  • Restrição ao leito

Manter mulheres restritas ao leito também as deixa confinadas a um determinado espaço, limitando seu movimento, o qual quase sempre é essencial para o transcurso do trabalho de parto. Isso permite um controle maior da equipe de atenção, mas a torna um número de leito, não uma pessoa com uma perspectiva absolutamente subjetiva sobre o transcurso do seu parto.

  • Enema

Os enemas são realizados desde a antiguidade como terapias ou como preparação para os tratamentos e conselhos dos oráculos. Por trás dessa prática que ainda sobrevive em muitos hospitais está a ideia de purificação que, junto com a troca de roupa da gestante e o banho, procurar criar sobre ela uma aura de pureza e limpeza para adentrar o centro obstétrico.

  • Posição de litotomia

A posição de litotomia é uma das mais claras mudanças na estética do parto que se incrementaram com a entrada dos médicos e da medicina no cenário do nascimento. Sua manutenção na prática médica, apesar de todas as evidências que nos provam sua inadequação e mesmo o inegável prejuízo para mães e bebês, se dá porque o parto deitado é um reforço psíquico subliminar que auxilia o poder médico a manter sua dominação sobre o corpo das mulheres. O parto deitado, posição clássica de litotomia, reforça a assimetria de poderes que ajuda o profissional a se sentir no comando e envia uma mensagem de passividade para a mulher que está parindo. Por esta razão, e não pela falta de informações ou provas científicas, é que esta posição ainda é disseminada nos hospitais de ensino e utilizada na assistência em 9 de cada 10 mulheres parindo neste país. Muito mais do que representa objetivamente, ela é plena de um simbolismo patriarcal de dominação, e por essa razão resiste aos ventos do tempo e da verdade.

  • Episiotomia

É o procedimento mais emblemático da luta das mulheres pela autonomia corporal. Sua execução, entretanto, resiste às evidências porque simboliza a supremacia da tecnologia – representada pelo bisturi – sobre a natureza implicada no nascimento fisiológico. Episiotomia é a grande cirurgia ritualística e mutilatória da Medicina ocidental.

  • Separação mãe-bebê

Esse afastamento manifesta uma atitude autoritária dos poderes delegados do Estado contra a autonomia da mulher sobre seu filho. O objetivo inconsciente destas condutas e rotinas é despojar a mulher do controle sobre o recém-nascido, estabelecendo uma tirania da técnica e do conhecimento sobre a conexão mãe-bebê tão logo ela se estabelece. Nesse momento especial é lançada a pedra fundamental para a construção de um sujeito subserviente ao Poder.

HISTÓRIA DA HUMANIZAÇÃO

  1. Irmãos Chamberlen e o uso do fórceps. Criado pelos irmãos Chamberlen, na Inglaterra, foi mantido escondido dos olhares de curiosos, por ser uma ferramenta tão importante a ponto de ser alvo da cobiça de concorrentes. A entrada desta ferramenta na história dos nascimentos determina um divisor de águas na obstetrícia. Nada mais seria como antes. A partir de então mais tecnológica e invasiva a obstetrícia foi se tornando. Os homens, antes espectadores atônitos e amedrontados, tornavam-se aos poucos condutores do processo. As mulheres passavam de protagonistas a assistentes passivas, seja no papel de meras auxiliares dos médicos, seja na pele das próprias parturientes, relegadas a uma posição secundária no cenário do nascimento.
  • Grantly Dick-Read e as influências do ambiente no psiquismo com suas consequentes influências no parto e no recém-nascido. Publicou seu primeiro livro “Parto Natural” em 1933, cunhando o termo “parto natural”. Ele definiu o termo como a “ausência de qualquer intervenção que pudesse perturbar a sequência do parto”. Seu segundo livro, Revelation of Childbirth (que mais tarde foi renomeado como “Childbirth without Fear”), foi publicado em 1942 e dirigido ao público em geral. Tornou-se um best-seller internacional e ainda hoje muito utilizado como referência. A partir desta publicação Dick-Read foi convidado para dar palestras em todo o mundo.
  • Fernand Lamaze e o controle consciente e ativo do parto. Lamaze visitou a União Soviética em 1951 onde pela primeira vez tomou conhecimento de um nascimento onde se usava a “psicoprofilaxia”, um método de atenção ao parto que havia sido desenvolvido por psicoterapeutas soviéticos, como Velvovskii de Cracóvia, Ucrânia, baseada na teoria de reflexos condicionados de Ivan Pavlov. A psicoprofilaxia propunha-se a eliminar a dor do parto por meio da ativação neocortical (awaken and alert!!), pela educação sobre o processo fisiológico do parto, através da resposta de relaxamento condicionada às contrações uterinas e por meio de respiração padronizada destinada a aumentar a oxigenação e interferir na transmissão de impulsos dolorosos do útero para o córtex cerebral. Lamaze ficou tão impressionado com o que testemunhou que, depois de retornar à França, dedicou o resto de sua vida à promoção do Método Psicoprofilático de Atenção ao Parto, que ficou popularmente conhecido como “Parto sem Dor”. É importante mencionar que, assim como Dick-Read algumas afirmações de Lamaze seriam hoje consideradas profundamente machistas e retrógradas, tanto em sua concepção das mulheres quanto em relação ao papel delas no mundo. Como sempre é importante entender os pensadores dentro de seu tempo e contexto.
  • Frederick Leboyer e o parto na perspectiva do recém-nascido. Ele é mais conhecido por seu livro de 1974, “Birth Without Violence” no Brasil chamado de “Nascer Sorrindo”, no qual popularizou técnicas de parto suave, em especial a prática de banhar bebês recém-nascidos em uma pequena banheira com água tépida para facilitar a transição do mundo intrauterino para o exterior. Leboyer também defendeu “práticas de proteção sensorial ao bebê”, como usar uma iluminação baixa, silêncio e uma sala aquecida para evitar o choque do nascimento. Também estimulava o contato pele-a-pele, onde o recém-nascido era colocado sobre o abdome de sua mãe, permitido assim um contato prolongado entre eles.
  • Michel Odent e o parto na natureza dos mamíferos. Odent desenvolveu um interesse especial nos fatores ambientais que influenciam o processo de nascimento, seguindo os passos de Dick-Read. A partir de suas experiências com a maternidade de Pithiviers na França introduziu os conceitos de “salas de parto selvagens”, piscinas de parto e um estilo de pré-natal muito particular, onde sessões de canto para mulheres grávidas eram oferecidas, assim como a participação de toda a família. Depois se envolveu com o parto domiciliar, com as relações entre humanos e mamíferos no que se refere ao nascimento, fundou em Londres o “Primal Health Research Centre” e projetou um banco de dados para compilar estudos epidemiológicos, explorando as correlações entre o que acontece durante o “Período Primal” e a saúde posterior do sujeito.
  • Robbie Davis-Floyd e o nascimento como processo simbólico e ritualizado. As principais contribuições teóricas primárias de Robbie incluem sua análise dos procedimentos obstétricos padronizados para o parto como rituais, cuja principal função é externar os valores fundamentais sobre os quais se assenta a cultura. Além disso ela estabelece a comparação entre três modelos de nascimento e atenção à saúde quanto ao uso de tecnologia, mostrando que eles  existem em todas as sociedades e variam de acordo com as condições do contexto. São eles os modelos “tecnocrático”, “humanístico” e “holístico”.
  • A Cama de Procustes, e a visão do parto como fenômeno subjetivo. No mito grego, Procrustes era filho de Poseidon e morava no Monte Korydallos, no caminho sagrado entre Atenas e Elêusis. Em sua casa ele tinha uma cama na qual convidava todos os transeuntes a dormir, quando batessem à sua porta por terem se perdido pelo caminho. Caso o infeliz convidado fosse muito baixo ele usava suas ferramentas para esticá-lo, rompendo suas articulações, fazendo-o aumentar de tamanho até se ajustar perfeitamente ao tamanho de sua cama. Por outro lado, se o convidado se mostrasse alto demais, Procrustes amputaria o excedente. Por certo que ninguém jamais se ajustou à sua cama de forma exata. Procrustes continuou seu reinado de terror até ser capturado por Teseu, quando este viajava para Atenas pelo caminho sagrado. Sua história nos serve como metáfora para a crueldade e a insensibilidade das uniformizações, que obrigam sujeitos únicos a se adaptarem a modelos universais.

A partir do entendimento do parto como evento único e irreproduzível, que se baseia nas características mais íntimas de cada mulher, fica cada vez mais difícil aceitar a uniformização e a padronização a que são submetidas as mulheres quando se deparam com os serviços de assistência ao parto disseminados por todo o mundo. Como pode um evento tão pessoal ser tratado como se toda a mulher fosse igual a todas as outras em especial numa parte tão reservada e ligada à sua sexualidade?

Um parto entre culturas tão diferentes é tratado de forma idêntica apenas porque nutrimos a crença ingênua de que os aspectos psicológicos, afetivos, emocionais, culturais, sociais e espirituais não influenciam o transcorrer do processo tanto quanto hormônios, objeto, trajeto e anatomia da pelve. “Entretanto, o parto é algo que acontece entre as orelhas, repetindo o velho adágio das parteiras. Não o procure nas dobras dos tecidos uterinos, nas protuberân­cias ósseas, nas contrações ou nas variações dos hormônios. Ele se encerra nos pequenos grãos de areia de nossos sonhos, na bruma de palavras disper­sas de um passado distante. Ele se refugia nos sussurros de uma menina, na curiosidade infindável que ela carrega e no seu olhar insaciável. O parto e seus mistérios se escondem ao olhar superficial, à análise tímida e ao investigador amedrontado. Para entender o que o comanda, é preciso penetrar nos abis­mos obscuros da alma de uma mulher, lá onde se abrigam seus sonhos e suas tristezas. Quanto mais profundamente mergulharmos, mas nebulosa será nossa jornada. Entretanto, apenas assim poderemos encontrar essa semente. Talvez, apenas uma suposição, a chave para essa questão esteja mesmo ligada a essa fissura aberrante na ordem natural, a qual chamamos “amor”. E talvez, outra mera suposição, para entender o que acontece entre as orelhas de uma mulher, somente através desta chave”. (Entre as Orelhas, Histórias de Parto – do autor)

Para terminar, creio ser importante falar sobre as perspectivas para o futuro. Como podemos imaginar a assistência ao nascimento no século XXI? Teremos um aprofundamento da intervenção tecnológica no parto? Haverá o incremento nas cesarianas, relegando o parto fisiológico e vaginal para os raros casos onde não haja tempo para o preparo de uma cirurgia?  Testemunharemos o reforço no modelo tecnocrático biomédico, centrado na figura dos médicos e nas intervenções, ou veremos o crescimento de alternativas como a atenção oferecida por parteiras, obstetrizes e em locais diferentes do hospital?

Será o futuro da humanidade um caminho linear em direção à total artificialização da vida? Será a humanidade do futuro um híbrido entre homem e máquina, produzindo a   ciborguificação completa do nosso organismo? Ou teremos uma mudança conceitual a partir deste novo milênio, fazendo um novo traçado que nos leve à ecologia, ao respeito à natureza, à cooperação e à fraternidade? E o respeito à ecologia será definido apenas pela natureza fora de nós ou também à natureza de nossos ciclos vitais como nascer e morrer?

Sempre que me deparo com essas questões, lembro-me de uma antiga palestra, de um jornalista americano chamado Malcolm Gladwell cujo estranho nome é “Escolhas, felicidade e molho de espaguete”. Muitos anos atrás, meu filho viu o vídeo desta apresentação no YouTube e me ligou tarde da noite dizendo: “Pai, ouça a palestra sobre molho de espaguete. Acredite em mim, tem a ver com suas ideias sobre a humanização do parto ”. Nesta apresentação, o jornalista demonstra a importância da diversidade não apenas para melhorar o atendimento ao cliente, mas também para a percepção subjetiva de qualidade. Sua palestra foi baseada na história de um pesquisador de alimentos americano chamado Howard Moskowitz e sua importante descoberta em meados da década de 1980.

Howard foi convidado pela Pepsi para descobrir a concentração adequada de adoçante artificial – aspartame – que deveria ser colocado na Pepsi para produzir o sabor perfeito. Sabia-se que a concentração deveria ser entre 8 e 12%, mas contrataram Howard para descobrir o valor exato. Depois de uma exaustiva pesquisa não foi encontrado um número satisfatório e decidiu-se que 10% – por ser o valor equidistante – seria o escolhido. Entretanto, Howard sentiu-se profundamente frustrado por sua pesquisa não ter demonstrado o valor mais justo para a adição de adoçante ao refrigerante.

Algum tempo depois ocorreu seu grande momento quando uma empresa de alimentos poderosa, a “Campbell’s Soup” (lembram da obra de Andy Warhol?) produtora de um Molho de Espaguete chamado Prego, o convidou a fazer estudos sobre seu produto. Foi quando recebeu a proposta de criar uma fórmula ideal para o Molho de Espaguete Prego que ele percebeu que a pergunta sobre a Pepsi estava errada. Sua resposta para a empresa Campbell’s foi “Não existe a Pepsi perfeita; existem as Pepsis perfeitas. Portanto, não existe também o molho de espaguete perfeito, mas muitas diferentes maneiras de saboreá-lo”.

Depois de produzir 45 combinações diferentes de molhos de tomate – combinando as suas principais características pelo nível de açúcar, pelo nível de alho, pelo azedume, pela acidez, pela quantidade de tomate e por sólidos visíveis – visitou grandes cidades americanas levando suas múltiplas variedades para fazer experimentos com voluntários.

Quando observou os resultados ele não procurou encontrar o sabor favorito entre as notas que os voluntários deram para cada variedade. Não, ele já não acreditava mais em um modelo que satisfizesse todos os gostos. O que ele fez foi agrupar os resultados em grupos de preferência. A partir disso, ele descobriu que a maioria das pessoas se enquadrava em um dos três grupos: há pessoas que gostam do molho de espaguete padrão, aquelas que gostam do molho picante e ainda há aquelas que gostam do “extra-chunky”.

Destes resultados o último, o extra-chunky, (que poderia ser traduzido por “pedaçudo”) foi o mais significativo, exatamente porque em meados dos anos 80 não existia um molho de espaguete que tivesse essa característica. Então a Campbell’s indagou a Howard: “Você está nos dizendo que um terço dos americanos anseia por um molho de espaguete pedaçudo (extra-chunky) e ninguém está atendendo a essa demanda?”

A resposta era “sim”, e imediatamente a Campbell’s criou uma nova linha de molhos “extra-chunky” e dominou o mercado totalmente, e nos dez anos que se seguiram arrecadou 600 milhões de dólares com esta sua nova linha de molhos. Hoje em dia existem pelo menos 36 diferentes tipos de molhos de espaguete da marca Prego, e o mesmo número para sua concorrente “Ragu”. Mas o mais importante desta mudança foi a possibilidade de olharmos para ela como um divisor de águas para a forma como a cultura se organiza para satisfazer os desejos humanos.

Até meados dos anos 80 estávamos obcecados com as universalidades, ansiosos por encontrar o modelo perfeito para todas as criações humanas. A Pepsi perfeita, o café perfeito, o homem perfeito, a mulher perfeita, o jogador perfeito, a bebida perfeita e até o molho de espaguete. O que estes experimentos nos ensinam é que não existe um modelo “perfeito” para as coisas simplesmente porque somos seres humanos diferentes, com gostos, visões, histórias pessoais, contextos e perspectivas de vida diferentes. Por que pessoas tão diversas deveriam ter gostos iguais?

É aqui que eu me permito fazer um link com a história do parto em nossa cultura ocidental. “Parto faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, como dizia Odent. Portanto, o parto é um aspecto da sexualidade, mas se podemos entender que as mulheres não gemem, choram, amam, brigam, lutam e fazem sexo de maneira uniforme, porque ainda aceitamos que elas deveriam parir todas do mesmo jeito? Por que insistimos no erro do “parto perfeito”, quando em verdade o que é adequado para uma pode ser um desastre para a outra?

Podemos analisar qualquer elemento típico da assistência ao parto a partir dessa. A presença do companheiro ou de um familiar parece ser adequado para a maioria das mulheres, mas existem muitas que preferem que esta tarefa seja feita com o mais absoluto isolamento de pessoas da família. O local de parto é bem óbvio: muitas ainda preferem o hospital por sua promessa – e a gigantesca propaganda – de segurança que estes lugares oferecem. Entretanto, um número crescente e consistente de mulheres prefere parir em Casas de Parto ou em suas próprias casas, por se sentirem mais seguras rodeadas da família e em um terreno conhecido, longe da iatrogenia típica do ambiente hospitalar.

Estarão erradas aquelas que fazem escolhas diferentes da maioria? De acordo com as pesquisas e estudos… não. Elas apenas adaptam suas características de personalidade às suas escolhas de vida. O grande salto da ciência contemporânea é o conceito de variabilidade, e isso se aplica inclusive à pauta da sexualidade. Quem acompanhou as grandes transformações oriundas da revolução sexual nos anos 60-70 do século passado pode facilmente perceber a diferença de tratamento nas questões relativas à orientação sexual e à própria identidade sexual. Estarão erradas as pessoas que escolhem orientações diferentes da maioria? Será um erro ter uma identidade sexual diferente da sua biologia ao nascer?

A resposta é NÃO. Estamos hoje aprendendo a valorizar a diversidade e a variabilidade. Estamos percebendo que os seres humanos são diferentes e podem fazer escolhas livres de constrangimentos. Esse tipo de visão fatalmente acabará impregnando a medicina e as escolhas sobre os temas reprodutivos e sexuais. A forma de parir faz parte das nossas escolhas mais íntimas, e não existe mais espaço para imposições homogeneizantes.

Existe um experimento muito simples para entender a importância da liberdade de escolhas, e que se faz com o café. Foi usado como exemplo na palestra de Malcolm Gladwell.

Se for dado a um grupo de pessoas a tarefa de avaliar um café servido, qual a nota média que um café receberia? Bem, estudos apontam que essa nota seria de 60% de aprovação. Entretanto, o que aconteceria se, ao invés de apresentarmos um único tipo de café para ser experimentado, pudéssemos apresentar três tipos distintos: forte, médio e fraco? Caso a possibilidade de escolher estivesse presente em apenas 3 modalidades – não incluindo inúmeras outras possíveis como temperatura, origem do café, etc – o resultado seria de 78%. Essa é a diferença entre não ter escolha e poder escolher minimamente.

Para o nascimento humano podemos admitir que a existência de escolhas – quantas forem possíveis – fará aumentar significativamente a sensação de acolhimento diante desse evento tão importante como é o nascimento. Não apenas com relação aos participantes – médicos, enfermeiras, parteiras, família, filhos – mas também com o local de nascimento, o ambiente, o uso ou não de medicamentos (quando for possível escolher), a posição de parir, a iluminação, o silêncio etc.

Certamente que eu penso que o nascimento no século XXI vai nos oferecer uma explosão de diversidade porque as pessoas vão perceber que sua particular perspectiva de mundo precisa ser respeitada, e ela necessariamente vai se expressar no parto. O parto “padrão” vai aos poucos desaparecer como uma velha roupa que não nos serve mais.

Os valores fundamentais que podem ser extrapolados para a atenção ao parto a partir das descobertas de Howard Moskowitz podem ser agrupados em 4 pontos:

  1. Não sabemos o que queremos até termos a chance de confrontar nossas experiências e escolher sabiamente. Se não tivermos conhecimento das alternativas, não temos escolhas. Assim como os americanos não conheciam o “spaghetti extra-chunky” muitas mulheres não sabem que podem ter o companheiro do lado, parir de cócoras ou mesmo planejar seu parto fora do hospital com profissionais qualificados.
  2. Segmentação é horizontal e não vertical. Isto é: não existe hierarquia entre modelos de assistência ao parto. Ter um parto em casa não é superior a ter um parto no hospital. Uma cesariana pode ser mais arriscada que um parto normal, mas ela não é inferior a este de uma perspectiva subjetiva e pessoal. São escolhas feitas na intimidade de cada mulher, e não podem ser julgadas como inferiores.
  3. Confrontar a noção do “parto platônico”. É preciso combater a ideia de um parto “platônico”, qual seja: a busca por um parto perfeito que será adequado para todas as mulheres. Esta é uma concepção antiquada e anacrônica, que não pode persistir em um mundo que reconhece a diversidade e a variabilidade. Não existe um parto perfeito; existem os partos perfeitos adaptados a cada mulher e para cada nascimento.
  4. Buscar o “nascimento perfeito” e modelos universais de parto não são apenas erros; são um péssimo serviço para mulheres e bebês. Manter a ideia de “um parto que sirva para todas” não é apenas um erro, mas um brutal desserviço para todas as mulheres e seus bebês. Acreditar que existe uma forma única de atender os nascimentos é uma agressão as diferenças humanas, e um desrespeito com a própria sexualidade das mulheres. Manter esse poder unicamente nas mãos dos médicos e dos hospitais é algo que não podemos mais aceitar.

O parto na perspectiva do sujeito é o último elemento da lista de grandes saltos qualitativos na atenção ao parto. Acredito que este milênio que se inicia será tomado por essa nova vertente de pensamento, até porque ele está ligado à nossa milenar busca por autonomia e liberdade de escolhas. As mulheres, que durante séculos de patriarcado foram constrangidas a se submeter às determinações alheias, agora assumirão uma nova postura de protagonismo e de plena responsabilidade.

Estamos na aurora de uma nova era para o nascimento humano. Que seja bem-vinda.

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Durante uma palestra  na UFBA em 2002, fui interrompido pela pergunta de uma mulher negra sentada na última fileira do amplo auditório. Naquela oportunidade estávamos, eu e Robbie, palestrando sobre a humanização do nascimento na capital da Bahia. Disse ela:

“Dr, é muito bonito o seu relato das transformações no parto que ocorrem impulsionadas pelas redes sociais, mas minha pergunta simples é a seguinte: essas vantagens inquestionáveis do parto humanizado são para uma casta de mulheres de classe média que tem tempo e dinheiro para navegar na Internet ou ela também vai atingir a mulher negra e pobre da periferia de Salvador?”

Foi um soco no estômago. Por uma fração de segundos cheguei a me irritar com a contundência impertinente da pergunta, mas imediatamente percebi que ela estava coberta de razão. Minha resposta foi igualmente seca e direta:

– Se este movimento é para ser uma “moda” para pessoas de classe alta, mulheres burguesas ou de classe média, não precisava nem ter começado. Ou este movimento de resgate do parto que humaniza sua atenção e sua abordagem, se estende a TODAS as mulheres, de qualquer classe social ou extrato econômico, ou ele vai desaparecer naturalmente como uma quimera, algo que serviu apenas a um contexto passageiro e que não sobreviveu ao teste do tempo.

A migração da humanização do nascimento para o serviço público e o SUS é o caminho natural dessa revolução. As experiências exitosas do Sofia Feldman, Hospital Conceição, Sapopemba, Davi Capistrano no Realengo, Casa Ângela entre outros, mostra que o caminho é a disseminação da mensagem para toda a população. Quem viver verá: o que hoje parece um sonho em pouco tempo se tornará realidade.

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