
Dolores
Nadine e Max brincavam à minha frente, tentando criar pequenas explosões de ar com canudinhos de refrigerante. Pareciam dois adolescentes de 40 anos. Suas risadas despreocupadas, e a maneira infantil como conversavam, me fizeram sentir uma momentânea nostalgia, um aperto, como se fora uma dor no peito. Seria complicado, pensei eu, explicar fisiologicamente uma “dor” desencadeada por um pensamento, uma lembrança, uma emoção. Na minha mente, formou-se uma imagem, ao mesmo tempo dolorida e cálida, sobrepondo-se à cena que de fato se apresentava aos meus olhos. Quinze anos atrás, estávamos no mesmo lugar, o bar do hospital, fazendo algo semelhante. Eu provavelmente estava trocando figurinhas sobre paternidade com Max, falando dos nossos filhos pequenos, enquanto Nadine assistiria a essa conversa com curiosidade e uma dissimulada ponta de inveja. Estávamos rindo, brincando, escondendo nosso medo diante dos desafios da residência. Brincávamos para esconder a dor de não saber, de ter que tomar decisões, de poder errar.
Foco a visão em um ponto qualquer da parede, para poder voltar à realidade. Max ainda tentava, com um peteleco, romper a bolsa de ar comprimido dentro do canudinho enrolado que Nadine trazia entre os dedos. A cada tentativa frustrada, Nadine sorria lindamente. Como era linda Nadine! Seu sorriso era sóbrio e contido. Uma dama. Como bem dizia Max, ela possuía uma “nobreza sexy”. Max erra o peteleco e acerta os dedos de Nadine. Ela solta uma risada alta demais para o ambiente, seguida de um gesto envergonhado de cobrir a boca com a mão.
— Machucou? — perguntei eu, entre interessado e irônico.
Max ri e me encara dizendo “a culpa não foi minha”. Resolvem parar com a brincadeira e Max retorna à sua cerveja, que silenciosamente cochilava ao seu lado, esperando o final da brincadeira para ser sorvida. Nadine larga o canudinho amassado sobre a mesa e arregala seus olhos em minha direção. Coloca a mão sobre o colo e nos diz:
— Vou contar uma história que vocês não vão acreditar. Tenho duas cunhadas, casadas com meus irmãos. Mulheres dos nossos tempos, profissionais bem-sucedidas, vivendo em um mundo de informação abundante, farta e rápida. Uma delas você conhece, não é, Max? Ele apenas ergueu seu copo de cerveja. Estaria respondendo ou rendendo uma homenagem?
— Pois bem — continuou Nadine, — a primeira é uma mulher moderna, informada, médica, etc. A outra tem 23 anos e é universitária, mas é a mulher mais ingênua que eu conheço a respeito da sua condição feminina. Escutem só essa: comentando próximo a ela sobre a dor do parto e tal, ela vem com esta pérola: “Nadine, eu não me preocupo com essa questão de sentir dor no parto. A dor do parto é só 10 segundos e passou tudo, e aí a gente já tem o bebezinho lindo nos braços!”
Max soltou uma gargalhada que fez alguns presentes torcerem o pescoço em nossa direção, mas obviamente não colocou a mão sobre a boca. Não era o estilo de Max, que adorava um escândalo.
— Gente, ela falou isso sério — continuou Nadine. — Aí eu expliquei para ela. Ela pensava até então que dor do parto era só “nos 10 segundos” que o bebê passa pela vagina. Ela ignorava contrações e tudo mais. E pensar que muitas vezes mulheres assim engravidam, e chegam na hora “H” totalmente despreparadas. Pensam exclusivamente no enxoval do bebê, a roupa que vão levar para a maternidade e coisas do gênero. Imaginam que chegarão na hora do parto e que terão apenas 10 segundos de dor. Incrível, não é?
Eu fiz uma cara de surpresa e, abrindo os braços, ensaiei um número muito conhecido dos meus parceiros. Queria instigar um debate, abrir uma polêmica, preparar o terreno para uma discussão.
— Por que você avisou a “pobre” da sua cunhadinha? — disse eu. — Não seria melhor ela ficar iludida sobre a realidade do trabalho de parto e não ser contaminada pelo negativismo do nascimento, sobre o qual o que mais se fala é “dor”, “contrações terríveis”, mulheres “se rasgando”, períneos “se rompendo”, etc.? Agora a coitadinha vai querer fazer uma cesariana que dure apenas 10 segundos! Não seria preferível não saber o que se aproxima, do que ver corrompida sua ingênua concepção de parto pela noção distorcida desse evento nos dias de hoje?
Minha pergunta era deliberadamente provocativa. Sabia da posição de Max sobre a dor no parto e sabia das restrições que Nadine colocava nelas. Max era um “holista”, alguém que entendia o parto como fazendo parte da vida, e não como um evento médico. Encarava o nascimento humano com a transcendência que imaginava ele possuir, e o entendia como um afluxo de energias criativas sincrônicas, elaboradas em milênios de aperfeiçoamento pelas forças adaptativas e evolutivas da natureza. Acreditava que o nascimento só podia sofrer interferências em circunstâncias especiais e raras. A grande patologia do parto, segundo Maximilian, residia na intervenção fálica sobre um momento essencialmente feminino. Não abria mão de sua visão respeitosa sobre todos os eventos que o circundam. A dor era um deles. Nadine, por sua vez, era uma tecnocrata honesta e esclarecida. Acreditava piamente na destinação libertária da tecnologia. Tinha uma fé vigorosa na capacidade de superar limites, de avançar sobre as fronteiras do nosso corpo. Acreditava na linearidade do conhecimento, entendendo o saber médico como algo construído pedra sobre pedra, afastando-nos da ignorância que nos ligava ao “primitivo”. Era dona de uma postura firme, porém dogmática. Tinha fé na ciência, assim como tinha apreço por suas crenças religiosas. Falava de alguns médicos como seres mitológicos, donos de um saber absoluto, que não sofriam as pressões de uma medicina cada vez mais mercantilista e aliada à indústria de drogas e equipamentos. Era uma crente.
— Prefiro a desilusão do saber à ilusória tranquilidade dos fanáticos — disse Max. — Não acredito que qualquer sistema pode ser construído sobre falsidades ou inverdades. Mesmo as mais duras verdades são superiores, a longo prazo, às mais cândidas mentiras. Prefiro que uma mulher tenha plena noção daquilo que a espera durante a árdua tarefa de um trabalho de parto do que lhe omitir a verdade. É preferível o temor consciente a uma falsa segurança aparente. Patu Saleh!
“Patu Saleh”, repeti. Max terminava suas frases mais rebuscadas com essa expressão. Há muitos anos, quando finalmente criei coragem e perguntei a sua procedência, ele me disse que era uma frase de origem persa que queria dizer “Tenho dito”, ou mesmo “Assim seja”. Explicou que seria um equivalente ao Maktub dos árabes. Nadine, por sua vez, lhe fez a mesma pergunta durante um plantão, e ele lhe disse que a origem da expressão era “babilônica ou suméria”. Dá para acreditar em Max e em suas fantasias? Esse era o estilo dele. Criar ou modificar histórias e através delas nos fazer viajar na sua imaginação. Aprumei-me novamente na cadeira e tomei um gole do meu suco de laranja. Olhei para os lindos cabelos de Nadine e falei:
— Sobre a dor no parto lembrei agora de uma história interessante. Posso contar?
— Pode — disse Nadine, resignada com o fato de que eu iria contar mais uma das minhas historietas. Fazia parte do seu charme dar um suspiro e revirar delicadamente os seus belos olhos cada vez que eu começava.
Algumas folhas de outono já caíam das árvores. A avenida próxima ao nosso bar favorito nos enviava os sinais sonoros de que o rush se aproximava. Os automóveis ligavam prematuramente seus faróis, porque a luz do dia já não era mais suficiente. Vez por outra, uma rajada de vento frio entrava pela fresta da porta. Nadine, prudentemente, trazia um belo casaco de linha azul, que repousava no encosto da cadeira. Esperei uma buzina estridente silenciar para contar a história.
* * *
A cena era a seguinte: uma menina, em um plantão obstétrico, em uma cidade próxima, no cinturão de pobreza de uma capital. Vai ao hospital com perna muito inchada, e lhe é indicada uma internação no hospital geral. Diagnóstico: trombose venosa profunda. Tratamento: um cumarínico, que é um anticoagulante. O problema: uma barriguinha “estranha” aparecendo. Os sinais: pequenas gotas de suor sobre o lábio superior e pupilas dilatadas. Essa era a situação. A menina havia sido avaliada pelo plantão clínico do hospital que diagnosticou esse transtorno circulatório. Suas queixas eram de uma dor na coxa direita e um inchaço visível em toda a perna. Já estava no seu leito, no setor de clínica feminina, quando a enfermeira de plantão, zelosamente, ligou para o centro obstétrico para dirimir uma dúvida.
— Doutor Ric — disse ela —, esta menina tem prescrição de um anticoagulante para ser administrado agora, mas eu preferiria que você desse uma olhada nela antes disso. Acho que ela pode estar grávida, apesar de negar com veemência. Sabe como é, não? O abdômen é grande, mesmo ela sendo gordinha. Que acha?
Concordei com sua conduta e solicitei que trouxessem a paciente até a emergência obstétrica, que se situava no térreo do hospital. Naquela época, eu recém havia saído da residência médica. Estava atuando em um hospital da periferia pobre da minha cidade. Era típico em sua estrutura arquitetônica, e mais típico ainda na sua organização. Controlado pela prefeitura, era frequentemente alvo de políticos locais, que queriam fazer proselitismo às custas dos médicos. Era fato corriqueiro chegarem ao hospital exigindo uma internação para seus eleitores, mesmo que esta fosse completamente descabida. Os que pertenciam ao mesmo partido do prefeito achavam que podiam adentrar até as salas de parto, porque aquele era um espaço “público”. Muitas vezes, fui abordado, até de forma rude e grosseira, por vereadores da cidade “exigindo” que eu realizasse uma cesariana em determinada paciente, para assim ser realizada uma ligadura de trompas, promessa eleitoral que eles agora queriam pagar às minhas custas. Para eles, eu sempre respondia com um “não” taxativo.
O diretor do hospital era um anestesista, italiano de nariz vermelho e uma calva reluzente. Tinha uma equipe de anestesistas que prestavam serviço ao hospital em um acordo direto com a prefeitura. Isto é: ao contrário dos obstetras, que ficavam de plantão, os anestesistas ficavam em suas casas e só compareciam ao hospital quando solicitados a realizar cesarianas de urgência ou para as cirurgias marcadas. Também não eram pagos pela assistência pública de saúde: a prefeitura os pagava diretamente. O acordo com a prefeitura fazia com que ganhassem pela produção: quanto mais cirurgias realizadas, mais anestesias. Eram “comissionados”. Dessa forma, pode-se entender qual a postura do diretor em relação a qualquer medida que visasse a diminuir a incidência de cesarianas no “seu” hospital. Na época em que ingressei no plantão obstétrico do hospital, as taxas de partos cirúrgicos estavam ao redor de 45%, o que era escandalosamente elevado, por se tratar de um hospital que atendia quase que exclusivamente ao sistema público de saúde. Eu escutava as explicações dos anestesistas para esse fato com silencioso enfado. Diziam-me que as taxas operatórias eram realmente elevadas, mas que, em função das cesarianas, a mortalidade materna, hoje em dia, era bem menor do que outrora. Adiantaria mostrar-lhes os fatos, as pesquisas ou as metaanálises que provavam o contrário? Penso que não, porque suas crenças eram baseadas em desejo. Essas explicações frágeis e insustentáveis que me davam eram tudo o que tinham para suportar a incongruência de sua prática.
Como se pode depreender, minha estada no hospital foi marcada por muitas dificuldades. Quando saí de lá, esse mesmo diretor/anestesista me falou algo que nunca mais esqueci. No nosso derradeiro encontro, ele me disse, com uma face raivosa e apontando seu dedo ameaçadoramente contra meu rosto:
— Eu tenho nojo de fazer plantão com você. Ao contrário de seus colegas, que conseguem prever os partos que vão obstruir, você só se dá conta dessas “obviedades” no meio da madrugada. Obriga a que todos nós venhamos ao hospital a essa hora, quando os outros obstetras indicam suas cesarianas às 10 da noite. Prejudica-nos a todos com sua incapacidade. Você não entende nada de partos.
Que poderia eu responder ao meu colega? Minha incidência pessoal de cesarianas naquele hospital era de 10%, enquanto a maioria dos meus colegas tinha índices superiores a 50 ou 60%. Indignado com esses fatos, fiz um discurso na reunião do corpo clínico, denunciando o exagero e a falta de critério nas indicações de cesariana que lá aconteciam. Despedi-me dos colegas e nunca mais retornei ao hospital. Pois esse era o hospital onde por quase quatro anos eu trabalhei. Apesar de todas as dificuldades, pressões, desrespeito profissional e ataques, foi um dos lugares onde mais aprendi. Muito mais do que a residência médica, realizada em um hospital tecnológico e até sofisticado, foi ali, na crueza do “mundo de verdade”, que eu aprendi a lidar com a realidade do nascimento.
Minha paciente chegou ao centro obstétrico trazida pelas enfermeiras, que empurravam a chorosa maca de rodas mal engraxadas. Não tinha mais do que 18 anos, e sua face infantil guardava uma apreensão inconfessa. Chamava-se Dolores. Olhei para o ventre que brotava sob os lençóis puídos do hospital. Abaixo do carimbo róseo onde se lia “Clínica Médica”, sobressaía a volumosa dúvida. Cumprimentei-a tentando ao máximo ser simpático. Pedi-lhe para examinar sua perna, e ela mesma puxou o lençol despindo a coxa alva. Sem dúvida era uma trombose venosa. Levantando um pouco mais os panos, pude comparar as dimensões de ambos os membros, o que deixava clara a diferença entre eles. Ela referia um pouco de dor na perna direita, mas não o suficiente para impedir que a movesse.
— Dói aqui? — perguntei eu, pressionando suavemente a raiz da coxa.
— Um pouquinho só.
Na verdade, o principal motivo da pergunta era escutar sua voz. Creio que a entonação, o timbre e a intensidade da voz guardam muitas informações sobre os conteúdos psíquicos dos pacientes. Sua voz era contida, como se o ar que estava em seus pulmões estivesse tentando se manter lá dentro, com medo de novamente voltar e enfrentar a sala onde travávamos nossa conversa. Com um golpe de mão, baixei o lençol até suas coxas e levantei a blusa que escondia o ventre. Era realmente um abdômen grande, muito mais avantajado do que se esperaria de uma adolescente gordinha. Não havia dúvida de que havia algo alterado ali. Minha primeira hipótese era, claro, uma gravidez. Entretanto, não podia descartar as “bruxarias”. Por “bruxarias”, chamávamos todas as patologias de difícil aparição e improvável diagnóstico.
Olhei novamente o abdômen da menina, que teimava em abaular. As outras hipóteses seriam ascite, água no abdômen ou tumores ovarianos. A ascite acompanha os transtornos hepáticos, como na cirrose ou em algumas doenças parasitárias pouco comuns em nosso meio. Ela não tinha nenhum outro sinal de insuficiência hepática como, por exemplo, icterícia, nosso conhecido “amarelão”. Restavam como diagnósticos viáveis os tumores de ovário. Pensei nas minhas aulas da faculdade e folheei mentalmente as páginas de patologia ginecológica. Lá estavam os tumores gigantes, como os adenomas mucinosos, cheios de uma “geleia” gosmenta produzida no interior desses grandes cistos. Apesar de eu nunca ter visto um tumor assim em uma menina, era importante descartar essa hipótese. Havia uma forma fácil de fazer essa distinção. Dei dois passos para a direita e tomei nas mãos o Doppler portátil de cima da prateleira. Liguei-o e escutei o chiado característico. Agora veríamos, ou escutaríamos, a verdade. O uso de pequeno sonar era para escutar o “tumor”. Se fosse uma gravidez, ouviríamos os batimentos de um bebê; caso contrário, a hipótese de um tumor se consolidaria, mesmo existindo a possibilidade de um óbito fetal. Não foi necessário que todas as outras hipóteses fossem confrontadas. O leve toque do sonar sobre o lado esquerdo de seu ventre nos mostrou o som inequívoco de um coração fetal. Toc, toc, toc, fez o aparelho. A cavalgada típica das batidas de um ser apressado se fez ouvir na sala, tendo as enfermeiras espantadas como testemunhas. Não restava nenhuma dúvida.
— Você está grávida, menina. Desde quando não menstrua? — indaguei eu.
— Minha menstruação nunca foi certa, doutor. Nem me lembro quando menstruei pela última vez. Faz alguns meses, eu creio. Mas o senhor tem certeza de que estou grávida? Não pode ser… Minha mãe vai me matar.
— Não tenho mais nenhuma dúvida sobre a sua gravidez, minha filha.
Mostrei mais uma vez o som do coração saltitante em seu ventre. Feito isso, coloquei o sonar mais para o lado esquerdo e mostrei-lhe o ruído de seu próprio coração, expondo a diferença entre os diferentes ritmos cardíacos. A disparidade das frequências não deixava espaço para dúvida. Dois seres habitavam aquele mesmo espaço. Ela me olhava com os olhos arregalados. Suas mãos espremiam a guarda lateral da maca. Estava muito mais tensa do que eu esperava. Parecia querer pular, fugir dali, mas seu corpo estava colado ao fino colchão que a separava da dureza do móvel. Olhei para o seu rosto, e ele estava pálido e úmido. Por sobre o lábio superior brotavam gotículas de suor, mostrando uma óbvia ativação adrenal.
— Vou examiná-la “aqui em baixo”, está bem? Quero ver como está o colo do útero, ok?
Ela se limitou a balançar afirmativamente a cabeça. Seus olhos estavam mais estalados ainda. Abriu as pernas com dificuldade, como se as juntas estivessem tão carentes de lubrificação quanto os rolamentos da sua cama de rodas. Já de luvas, abro os lábios vaginas com os dedos e procuro o colo uterino, em busca de alguma informação que pudesse ser útil. Aí sobrevém a surpresa. Aparece o improvável. O inesperado se fez, deixando-me sem palavras por alguns segundos, olhando fixamente para as pupilas dilatadas da menina. Depois de algum tempo, tiro meus dedos de sua vagina, após ter me certificado do que acabara de diagnosticar.
— Minha querida — disse eu ainda com a voz alterada pelo susto —, não só você está grávida como o seu bebê está nascendo.
— Nascendo doutor? Como pode isso? Tem certeza?
Sua expressão era de surpresa misturada com terror. As enfermeiras me olharam incrédulas, não imaginando que um bebê pudesse estar a caminho sem que nenhum sinal externo fosse percebido. Olhei para o rosto da menina e, segurando sua mão, lhe disse:
— Agora não temos mais tempo para nada. Preciso da sua ajuda. Seu bebê vai nascer em instantes. Você está com a dilatação do colo completa. Dez centímetros, e a cabeça do bebê está aqui embaixo. É necessário que você faça força quando sentir vontade.
Peguei-a pelas mãos e a ergui da maca.
— Vamos, me acompanhe — disse eu com voz firme. Pela primeira vez vi sua face se contrair, e de seus lábios surgiu um tímido gemido.
— Coloque o pé no chão e vamos caminhando comigo até a sala de partos.
Descalça e andando com dificuldade, foi se segurando no meu braço até a sala, deixando para trás meia dúzia de auxiliares de enfermagem atônitas e incrédulas, que nos olhavam sem poder ainda acreditar. Entramos sozinhos na zona restrita e eu mesmo abri um pacote de partos, que sempre ficava em cima da mesa preparada para emergências.
— Agora tudo depende de você. Preciso que faça a força mais bonita e intensa que puder, mas só a faça quando tiver vontade.
Ela estava acocorada à minha frente, segurando minhas mãos. Coloquei um campo esterilizado sob seus pés e calcei novamente minhas luvas. Não mais de cinco minutos foram necessários para que acontecesse. Com a ponta do dedo indicador, rompo a bolsa de águas que já se exteriorizava, mas a cabeça fetal estava tão baixa que apenas algumas gotas foram despejadas nos campos azulados. Aos poucos, os lábios vaginais foram se abrindo pela pressão do pólo cefálico, e os negros cabelos da nossa pequena incógnita foram aparecendo. Mais dois puxos apenas foram necessários e… lá estava ela. Forte, rosada e chorona. Não havia mais nenhuma dúvida. Uma menina. Limpei-lhe as vias aéreas e ergui o bebê no ar, um gesto pleno de simbolismo que sempre repetia. Entrego o bebê a quem pertencia de direito. Ainda assustada, a pobre menina instintivamente abre seus braços e abraça sua filha. Olha com surpresa e assombro para o pequeno ser que agora repousa colado ao seu corpo. Passados alguns instantes, olha para mim, como que acordando de um sonho e exclama:
— Puxa, doutor. Então eu estava grávida mesmo!
* * *
Nadine sorri. Coloca o resto de Coca Light no copo e gira o rosto em direção à Max. Bebe as últimas gotas ainda com um sorriso. Este responde com um levantar de sobrancelhas e uma piscadela.
— Nadine, essa história é absolutamente verdadeira — disse eu com indisfarçável impaciência. — Eu estava lá, assisti o parto. Essa menina passou um trabalho de parto inteiro negando para si mesma as contrações. Boicotou os sinais e sintomas de uma gravidez que ela temia e negava. Já na sala de recuperação, confessou-me que andava “desconfiada”, mas que não queria admitir ou mesmo consultar um médico. Esse filho fora feito por um rapaz de “má índole”, que praticava furtos e arrombamentos na comunidade em que morava. Sua gravidez não foi planejada nem desejada. Disse-me que teve relações não consentidas com ele, sob constrangimento pela força. Procurou, através do processo psicológico da negação, esconder de si mesma o que seu corpo evidenciava. Todas as alterações fisiológicas, as dores, a dilatação, os puxos, etc. foram apagados de sua consciência, apesar de ativos no obscuro mundo do inconsciente. Max resolveu interferir.
— Você não acredita, minha incrédula colega, que a trombose venosa profunda que a menina produziu poderia ser, na verdade, uma mensagem do inconsciente para si mesma, para que através desse sintoma fosse obrigada a procurar o hospital que tanto temia, por saber que nesse local inevitavelmente seria revelado seu segredo tão bem guardado?
Nadine aprumou-se na cadeira. Voltou seu corpo inteiro em direção a Max e olhou direto em seus olhos.
— Não me parece tão difícil de acreditar — respondeu Nadine. — Não sou tão descrente como pensam. Acho apenas que é pouco provável que a sintomatologia do parto possa ser escondida dessa forma. Onde ficaram as dores, a descida fetal e a dilatação do colo? Um trabalho de parto que durou apenas cinco minutos? Bendita alienação, então!
Max sentara-se e agora se divertia tentando acertar pedacinhos amassados de papel no copo vazio de Nadine. Sua pontaria era ruim, e, findas as bolotinhas que tinha na mão, resolveu aposentar-se do esporte e novamente prestar atenção ao que eu dizia.
— Pois Nadine, a experiência desse parto me abriu pela primeira vez a possibilidade de questionar a nossa capacidade de controlar os fenômenos dolorosos através da mente. Minha pergunta na época foi: “Se é possível, através de um fenômeno de negação resultante do medo, bloquear os sintomas dolorosos inquestionáveis de um trabalho parto, o que mais nossa infinita e pouco conhecida mente seria capaz de fazer em relação à saúde e à doença, dor e prazer? Não seria possível que essa mesma ação (uma “psicoanalgesia”) pudesse ser criada através de uma modificação consciencial positiva, pelo amor e pela confiança, em vez de ser mediada pelo medo?”
Max pigarreou. Levantou o indicador direito, mas, antes que pudesse falar, Nadine respondeu:
— Acredito ser possível, Ric. Nossa mente é rica demais para ser desconsiderada. O problema é que somos pouco treinados para atuar dessa forma nos hospitais. Na residência, que fizemos juntos, esses assuntos eram tratados como tabu. Discutíamos tumores raros de ovário, mas jamais tratávamos com seriedade as técnicas e abordagens não invasivas de tratar com a dor do parto. Afeto, companhia, presença não eram elementos considerados significativos para minorar a dor.
— Existe outro ponto importante, e que aborda questões políticas relevantes — disse finalmente Max. — Discutir a dor do parto sem o recurso tecnológico drogal teria o potencial e provável efeito de causar um desconforto dentro da própria classe médica. Isso seria questionar toda uma corporação, que estava se criando dentro da obstetrícia, qual seja, a dos “anestesistas de parto”. Fomos testemunhas do crescimento dessa subespecialidade dentro da anestesia. Com isso, seria muito complicado falar de doulas, por exemplo, entre outros recursos alternativos, quando a “Deusa Techné” estava nos brindando com uma ferramenta muito mais sedutora aos olhos do modelo tecnocrático. Hoje em dia, nos Estados Unidos, o sucesso desses médicos é tão grande que nas revistas especializadas da especialidade anunciam-se helicópteros e pequenos aviões. Nosso modelo centrado na acumulação e controle de técnicas brindava a esperança de controlar a dor do parto, mesmo que com isso acabássemos esquecendo de questionar o que “verdadeiramente” é essa tal “dor do parto”. Max estava de pé. Ele acreditava, imaginava eu, que seus argumentos cresciam em propriedade e profundidade caso se aproximasse do firmamento. Nadine a tudo ouvia, mantendo as mãos sobre os joelhos. Não havia mulher nenhuma sob os céus mais charmosa do que Nadine.
— Temos tecnologia suficiente para aliviar a dor dessas mulheres, meninos. — Nadine agora parecia querer ser mais incisiva. – Acredito que não usar o recurso da anestesia significa deixar as pacientes sofrendo de uma dor inútil e desnecessária. Por que a resistência em aceitar o progresso, a evolução e a ciência?
— Não se deixe enganar tão facilmente — disse Max. — Afirmar que tecnologia é igual a progresso é um equívoco. Muitas vezes, o progresso de uma comunidade ou grupo passa pela recusa do modelo centrado na tecnologia. Um exemplo típico é o sedentarismo, fruto de nossa conduta pouco ativa, que atrofia nossos músculos e articulações. O que recomendamos para nossas pacientes sedentárias? Exercícios, ou seja, a “antitecnologia”. Portanto, quando falamos em recuar um pouco na utilização de ferramentas tecnológicas aplicadas ao parto, isso também é progresso.
— Não é o que vejo na maternidade em que trabalho — respondeu Nadine. — Lá as mulheres solicitam analgesias da mesma forma com que sedentos viajantes pedem água no deserto. Imploram, choram e até ameaçam. Dizem que têm o direito de amenizar suas dores. Falam que seus partos poderiam ser mais “humanizados” e suportáveis se lhes fosse retirado, ou diminuído, o martírio da dor excruciante. Reclamam a anestesia do parto como um direito humano básico: o direito a não sentir dor. Minha visão particular dessa questão é de que o acesso às analgesias de parto é um aspecto fundamental da humanização do nascimento.
O debate agora estava no ponto em que eu gostava. Mostradas claramente as teses em disputa, fazia-se necessário aclarar porque elas apareciam em extremos opostos da discussão. Encarei Max, que se mantinha olhando fixamente para Nadine.
— Amigos. Existe uma ponte entre as suas posições aparentemente antagônicas e gostaria de tentar facilitar esse contato. Max diz que as analgesias de parto são fruto de um modelo centrado na tecnologia e que afasta a dimensão humana e subjetiva do nascimento, relegando-o a um patamar mecanicista e biológico. As analgesias peridurais rotineiras se impõem sobre a crença de que o corpo da mulher é essencialmente defectivo, que necessita do suporte técnico para realizar suas funções mais primitivas, como parir. Certamente, essa visão se encaixa no sistema de poder médico, que cria ferramentas para auxiliar essa mulher, agora entendida como incompetente. Criamos não só analgesias, mas antes disso hospitais, drogas, ferramentas, enfermagem especializada, médicos como nós, doutos em patologia obstétrica, e por aí afora. A epidemia de analgesias de parto é apenas mais um capítulo de uma jornada de invasões sobre o corpo feminino. Respirei fundo, imaginando que o ar poderia oxigenar minhas ideias.
— Por outro lado — continuei eu —, um cenário de dor é o padrão no trabalho de Nadine. Ela vê, verdadeiramente, mulheres sofrendo e angustiadas na solidão de seus leitos. Oferecer a essas mulheres a possibilidade de amainar seu sofrimento é parte fundamental da arte de curar. Negar-lhes o recurso, qualquer que seja, para diminuir um sofrimento que parece desprovido de sentido não seria humano. As analgesias de parto, portanto, têm lugar em um projeto de humanização do nascimento. Vejam bem, o último livro do Dr. Michel Odent, A Cesariana, traz exatamente essa questão da intervenção à baila, analisando o cenário contemporâneo de assistência ao nascimento. Diante da agressividade da assistência às mulheres em trabalho de parto, uma cesariana poderia ser entendida como um passo em direção à humanização, por mais que esse conceito traga mal-estar aos humanistas do nascimento. No dizer do mestre, o uso do fórceps (para ele uma peça apenas para museus) e outros artifícios invasivos e agressivos seria muito mais danoso para o bebê do que uma cesariana. O que ele advoga, com o que concordo, é que “a redução de cesarianas é absolutamente impossível sem a redescoberta dos imperativos básicos de uma mulher em trabalho de parto: seu desejo de privacidade e sua necessidade de levar a tarefa de parir sem ser observada ou dirigida”. O mesmo tipo de raciocínio pode ser desenvolvido em relação à dor. A mim parece improvável que uma mulher, adentrando o ciclo medo-tensão-dor criado, facilitado ou incrementado pelo ambiente hospitalar, não solicite alívio através do recurso drogal. A questão me parece ser outra, ideológica, filosófica e profunda. Nadine mantinha-se imóvel, com as pernas sedutoramente cruzadas, tendo agora a mão apoiando o queixo.
— A questão, meus queridos colegas, é o modelo — continuei eu. — O paradigma no qual Nadine está inserida é produto de desequilíbrio, porque nega as dimensões pessoais, sociais, afetivas, antropológicas e psicológicas do nascimento. É um modelo criado e controlado por médicos para valorizar sua maneira particular de enxergar o evento. Recusa tudo aquilo que não entende, ou o que brotou do veio ancestral e empírico trazido pelas gerações de mulheres que nos antecederam no trabalho com as grávidas. Nadine, ao meu ver, também é prisioneira; ela é refém desse sistema. Enquanto o nascimento humano não for discutido nesse espaço ideológico, pouco evoluiremos no debate. Max aproveitou a deixa e se ergueu da cadeira de novo.
— Quer um exemplo disso que o Ric está dizendo? Veja mesmo aqui no seu hospital. É um hospital universitário, cheio de professores, alunos, residentes, doutorandos, contratados e tudo mais. A incidência de cesarianas aqui é de mais de 35%, o que é um exagero em se tratando de uma população que é exclusivamente egressa do sistema público. O diretor do serviço, que é um tecnocrata liberal, resolveu criar um sistema de avaliação de cesarianas, baseado na ideia de que essas cirurgias eram realizadas de forma exagerada por uma falha médica de indicação. Depois de uma avaliação de todas as cesarianas realizadas em um determinado período, não se constatou nenhuma indicação errada mais prevalente que as outras. Os índices de cesariana continuaram elevados e provavelmente a conclusão foi de que eles eram assim porque um terço de todas as mulheres precisam realmente ter seus ventres abertos para o nascimento seguro de uma criança. Durante a avaliação dos resultados, não se questionou, em momento algum, o sistema de partos hospitalares, o afastamento da família, a ausência de acompanhantes, o uso de drogas ou de modelos agressivos de atenção ao parto, como o active management. A ideia que subjaz é de que o exagero de cesarianas é fruto de uma falha profissional, pessoal, centrada na figura do médico. Ilusoriamente imagina-se que esse médico é o causador do problema, quando em verdade ele é mais uma vítima do paradigma tecnocrático que governa a assistência ao parto. Nega-se, dessa forma, a importância determinante do modelo ideológico, substrato filosófico condutor dos processos. Como uma vez me disse uma enfermeira americana que trabalha com humanização do nascimento junto aos médicos de um grande hospital do Oregon: “Parem de pressionar os médicos. Nosso foco deve ser o modelo!” Posso lhe afirmar, Nadine, que, nesse sistema impessoal e mecânico, até eu teria que usar analgesias e cesarianas, porque o paradigma me obrigaria a tal.
Max era enfático e grandiloquente em todas as suas manifestações. Era movido por paixão. Sua energia era contagiante, e os que lhe tinham afeição logo aprendiam a perdoar seus exageros e suas demasias.
— Observem como a construção dessa representação obedece a uma arquitetura nitidamente religiosa — emendei eu no ponto em que Max parara, uma vez que esta era uma vertente da discussão sobre a humanização do nascimento que sempre me fascinara. — Nunca se questiona o dogma do modelo biomédico, centralizador, unimodal, iatrocêntrico. É a perfeita representação do esquema do “1 – 2 Punch”, do antropólogo Peter Reynolds. Nesse modelo, a partir de uma modificação no meio ambiente através da aplicação de tecnologia, surgem, de maneira quase automática, efeitos adversos indesejáveis. Sobre a ação primária na natureza, nada se pode questionar e, pelo contrário, uma nova intervenção tecnológica se estabelece para resolver os problemas gerados por ela. Sobre isso nos fala Read M. Schuschardt: “E é o incógnito que então sobrevém, para dominar a nossa vida, emaranhando-nos em uma rede de soluções tecnológicas para problemas criados pela própria tecnologia, proibindo-nos de questionar essa mesma tecnologia”. Criamos o desequilíbrio ecológico por uma concepção diminutiva da mulher. Depois disso, colhemos os resultados negativos e, em vez de questionar nossa interferência no processo natural, criamos novas intervenções para corrigir a primeira, e assim sucessivamente. O mesmo se dá no nascimento humano, em que jamais se questiona o modelo biomédico tecnológico, porque ele está profundamente enraizado no nosso sistema de crenças. Quando os inevitáveis problemas acontecem, procuramos nos afastar da pergunta fundamental (aquela que não quer calar) e partimos para o encontro de mais uma solução pela via da tecnologia. E é nesse momento que se estabelece o que Peter Reynolds chama de “punch dois” (a segunda intervenção tecnológica) que é a chave para entender as motivações ideológicas e profundas que regem nosso proceder.
Nadine a tudo escutava com atenção. Apesar de parecer sempre dura em suas críticas, Nadine era extremamente honesta em suas condutas. Ouvia a mim, mas principalmente a Max, com respeito e atenção, e nunca desdenhava de opiniões que se afastassem das suas. Voltando-se para ele, respondeu com suavidade:
— Max, eu entendo seu posicionamento, e concordo mesmo que existem exageros, mas que com estudo e controle poderão ser sanados no futuro. O que eu acho é que não pode haver um desdém pela dor alheia, como se o parto fosse indolor apenas porque uma menina teve seu filho sem perceber. Isso não é o padrão nos hospitais que conhecemos, e certamente não representa mais do que um milésimo da população mundial. Tratar essa menina como um modelo a ser estudado pode ser uma atitude compreensível, mas usá-la como exemplo de que o parto não dói é um exagero que não aceitarei. Existem estudos, por exemplo, que comparam a dor de ter um filho com a dor sofrida com o arrancamento de um dedo. Acham isso pouco? Acham que uma dor assim percebida não merece ser tratada?
Eu e Max nos olhamos ao mesmo tempo. Ela havia citado o tal trabalho que comparava a dor do parto com uma amputação de dedo. Estávamos juntos, eu e Max, quando escutamos um anestesista falar pela primeira vez desse trabalho, já há alguns anos. Ambos ficamos estarrecidos com a forma de apresentar o trabalho que, em última análise, era usado para justificar a intervenção anestésica drogal em mulheres em trabalho de parto. O trabalho utilizava a imagem negativa de uma amputação, que é algo definitivo, quando poderiam ter usado, por exemplo, uma cólica renal. Ao contrário da amputação, a cólica renal, apesar de ser referida como muito dolorosa, normalmente não deixa sequelas. Até por esse detalhe da comparação, podia-se notar que o trabalho era oportunista e mal conduzido, ao tentar trazer para o mundo quantificável uma grandeza absolutamente subjetiva. Respondi para Nadine com calma, porque sabia que esse assunto toca em questões de sensibilidade e julgamentos de valor sobre sofrimento, angústia e medo.
— Não diga isso, minha amiga. Não é justo. Essa história de comparar a dor do parto com outras dores é o positivismo na sua mais ingênua fantasia. Medir a dor dos outros (e mesmo a sua própria, descontextualizada) é tão equivocado quanto medir o amor, a alegria e a paixão de alguém.
— Nesse trabalho sobre a dor do parto, pesquisadores pediam às mulheres que quantificassem as dores que sentiram no processo de parturição, recém-terminado. No momento da avaliação, a sua capacidade de análise estava perturbada pelas emoções, assim como as sensações de dor muscular estão para quem acabou de cruzar a linha de chegada de uma maratona. Por essa razão, avaliar a dor sem levar em conta os seus aspectos afetivos e culturais é pura ingenuidade ou oportunismo.
— Emoções são assim, e dor é uma emoção, além de possuir óbvios componentes fisiopatológicos. Além disso, o próprio trabalho de parto oferece as ferramentas para diminuir as sensações dolorosas, produzindo um incremento fantástico nas endorfinas circulantes, com os consequentes efeitos analgésicos e mesmo euforizantes.
— Uma mulher em trabalho de parto — continuava eu — está envolvida em uma amálgama de sentimentos e anseios, além de alterações hormonais, posturais, físicas, afetivas e espirituais. Portanto, é de um reducionismo insensato tentar analisar matematicamente a dor de alguém, porque qualquer dor possui uma miríade de componentes imponderáveis e não quantificáveis. Esse tipo de avaliação só serve de pretexto aos intervencionistas, os que lucram com a ablação sem critério das sensibilidades dolorosas (entre outras, como a propriocepção) de gestantes. A nobre arte de aliviar a dor dos que sofrem, através do uso dos anestésicos, não pode fazer com que percamos totalmente a noção do sentido da dor dentro de um processo complexo e multifatorial como o parto.
— A dor faz parte do nosso fantástico arsenal de defesa, como a febre, a inflamação, as exonerações, etc. Simplesmente determinar seu extermínio sem levar em conta a cadeia de interconexões entre todos os componentes ilusoriamente separados é ingenuidade ou ignorância. Acabar com a dor do parto, simplesmente por ser dor, é insensato e representa uma visão diminutiva do nascimento. A dor faz parte do processo, mas o que se observa é que, dadas as condições para um nascimento afetivo e cercado de segurança emocional, essa dor pode ser inclusive imperceptível. A quantidade infinita de alternativas humanas para lidar com seus desafios é uma das características de nossa espécie. Entretanto, a medicina, com sua sanha homogeneizante, acaba, muitas vezes, tratando pessoas como se cada corpo fosse igual ao outro; cada barriga, uma cópia xerox da anterior, e cada mulher, um fac-símile de todas as outras.
— No momento do parto, minha cara colega, sentimos todos muitas dores. Eu costumo dizer, com um pouco de exagero, que a pior dor é a do médico. Só ele pode agir intervindo. Ele pode terminar com a dor de uma paciente através do seu saber e de sua técnica. Ele pode abreviar aquilo que muitas vezes é visto como uma “tortura”. Ele sofre a tentação suprema da lâmina que brilha na sua mão. Pode acabar com o drama da espada que pende sobre sua cabeça e, principalmente, com a dor que deveras sente em si mesmo. Pode exterminar a dor da impotência diante de algo muito maior. A dor de não agir e permitir que a natureza cumpra seu destino. Ele pode… Mas deve?
— A angústia diante dessas escolhas para mim é sentida como uma dor violenta. Física mesmo. Silenciosamente eu já propus dezenas de vezes trocar imediatamente todas as dores físicas de minha paciente pela dor que eu sentia ao vê-la “sofrendo” as agruras de um trabalho de parto e não intervir, porque sabia que esse era o caminho mais seguro. Minha aflição maior sempre foi: “Terá ela entendido plenamente a minha proposta? Será ela capaz de me perdoar, por agir como um pai que pensa no melhor para seus filhos”?
— Evidentemente que as opções no combate à dor precisam ser discutidas sempre durante os encontros de pré-natal. Entretanto, na hora em que as alterações na consciência da paciente se evidenciam, fica muito complicado analisar alternativas de forma clara e racional. Nesse momento, é necessário ter firmeza de princípios, coragem, determinação e… estômago. Entender as dores pelas quais passamos na vida, e inseri-las em um contexto maior, não significa desmerecer sua intensidade ou as marcas que elas são capazes de deixar. Não significa igualmente abandonar o uso de tecnologia para auxiliar alguém cuja dor ultrapassa sua capacidade de suportar. Esse entendimento tem a ver com a compreensão da dor como ferramenta e como parte integrante de algo maior. Significa perceber que para crescer ela é inevitável, assim como não existe aurora sem a escuridão da noite.
Nadine a tudo ouvia com silenciosa atenção. Sabia que nosso debate havia chegado a um ponto em que reconhecíamos nossas diferenças, mas também tínhamos consciência de nossas semelhanças. Minha colega era uma médica honesta e consciente, e dentro do seu sistema de crenças fazia o melhor possível para suas clientes. Tinha plena convicção nos benefícios que a tecnologia trazia para os seres humanos, principalmente em relação à saúde, e não acreditava que a solução dos dilemas da obstetrícia e da mortalidade perinatal estava relacionada com a desmedicalização do nascimento. Nadine tinha fé, na medicina e na tecnologia. Por outro lado, escutava a mim e a Max com respeito e consideração, mesmo que discordasse de nossos postulados. Mantinha-se altiva e serena. “Noblesse oblige”, como sempre dizia Maximilian. Max, por sua vez, era todo emoção. Tratava as questões da obstetrícia e do trabalho com o feminino como questões de estado. Colocava paixão em cada frase pronunciada. Abria os braços, escabelava-se, xingava, sofria. Tinha uma visão integrativa do nascimento humano, em que as várias correntes de entendimento deveriam ser ouvidas, rechaçando a corrente monopolista da medicina sobre o evento.
Eu servi durante anos como elo entre as visões conflitantes dos meus diletos amigos. Sempre senti para mim a responsabilidade de construir essa travessia, que poderia ligar as parecenças entre eles, administrando suas diferenças. Por caminhos diferentes, Max e Nadine procuravam um fim semelhante. Minha tarefa, muitas vezes, foi tentar fazer ver que “há muitas moradas na casa do meu pai”, em que cada “morada” seria uma visão particular da realidade, e o “pai” seria a intangível verdade. A paixão de Max e a seriedade positivista de Nadine sempre me ofereceram o melhor exemplo de complementaridade. Max ansiava escutar as palavras de Nadine, para que suas ideias pudessem fixar-se na âncora segura da racionalidade, e não se perdessem no vazio dos sonhos infrutíferos. Por sua vez, Nadine alimentava-se da paixão efervescente de Maximilian, para que sua vida tivesse mais cor e sabor, como os matizes e tonalidades que paulatinamente colorem a vida dos moradores de “Pleasantville”.
Max olhava Nadine quando terminei de falar. Percebi que havia alguns minutos já não me observava mais. Não o culpo. Nadine, além de ser uma bela mulher, carregava um segredo, um enigma. Por que esse apreço pela frieza da medicina? Por que o gosto pelos números e estatísticas? Ela observava o mais incrível dos fenômenos humanos e teimava em não abrir seu coração às emoções em profusão. Por que continuava só? Por que na sua vida não havia um grande amor? Por que estava tão fechada à vida? Max finalmente tirou o olhar de Nadine e voltou sua cabeça em minha direção. Fez uma careta, voltando às comissuras labiais para baixo e erguendo as sobrancelhas.
— Eu também não sei — disse-me ele, com um sorriso conformado.
Sorri da nossa telepatia. Max apenas levantou o copo de cerveja o mais alto que pôde e falou:
— Patu Saleh!
Patu saleh, camarada.
