Beatriz e a Origem do Sintoma
Achei que até eu já havia bebido demais. Levantei-me da cadeira de lata e me espreguicei, menos pelo alongamento e mais para testar meu equilíbrio. Nadine me encarava tentando achar alguma vermelhidão em minha esclerótica, sinal inequívoco do meu exagero. Não estava bêbado, sequer “alto”. Quando isso me acontece, escuto o mundo de dentro de uma concha. E perco a noção de distância. Não fico como aqueles ébrios que falam perto demais, misturando o hálito carregado com a falta de compostura, mas enxergo tudo de uma forma distorcida, com a profundidade prejudicada. Nada disso estava acontecendo, porque eu via Nadine e Maximilian nos exatos lugares em que estivéramos sentados nas últimas duas horas, conversando no bar do hospital onde Nadine é plantonista do centro obstétrico, nutrindo nossas filosofias com cerveja e batatas fritas.
— Não entendo essas atitudes de exagerada impaciência com que às vezes você me trata, Nadine. — Disse isso olhando diretamente para minha colega, com um ar de dissimulada severidade. Continuei: — A última é esta: “não considera a questão discutível, já que não respondeste”. Meu silêncio a ofende tanto assim?
Dei alguns passos em direção à porta do bar e confirmei minha sobriedade. Permiti que a brisa da tarde desarrumasse meus poucos cabelos. O frescor me animou a continuar.
— Quando eu fico em silêncio para, entre outras coisas, não “alugar” os ouvidos dos amigos ou me tornar o foco das atenções, sou acusado de “não considerar a questão discutível”. É justo isso? Putz… Já não basta sofrer de “Peremptória Loquacidade Paroxística”, ainda sou acusado quando guardo um silêncio respeitoso em relação à opinião alheia? O verdadeiro democrata luta para que seus pontos de vista possam receber o merecido contraditório, sob pena de transformar suas ideias em dogmas!
Terminei a frase com os braços abertos e o olhar para o teto, mas não consegui conter uma risada diante de tamanha canastrice. Maximilian debochadamente bateu palmas e me abraçou. Fazia essa encenação comigo, sempre que eu concordava com ideias suas. Nadine olhou para o relógio. Uma indireta?
— Então responda minha pergunta sobre a relação entre psiquismo e sintoma, especificamente da náusea na gravidez — disse ela.
Sua simpatia e beleza eram absolutamente sedutoras. Nadine tinha um charme inquestionável, mesmo quando estava impaciente. Respondi com a brandura que seu meio-sorriso demandava.
— Apenas tenha paciência comigo. Não respondi porque não achei que poderia acrescentar nada de novo ao que já havia dito. Tente lembrar o que conversamos anteriormente sobre os vômitos durante a gravidez. Minha posição é clara. Falei a minha opinião sobre a sintomatologia como emergência de transtornos mais profundos do psiquismo, e você falou da importância, com o que concordo, do estado hormonal alterado da gestação. Não considero sequer que sejam pontos de vista francamente conflitantes, apenas uma questão de ênfase. Eu prefiro olhar o sintoma dessa forma, porque essa maneira me parece ser mais criativa e construtiva. Você vê como algo passageiro e contornável, o que também é correto. Nada mais.
Nadine continuava a me encarar. Continuava a mesma mulher de uma beleza sóbria, mas triste. Parecia faltar à Nadine o brilho de uma grande paixão. Ou seria preconceito meu? A completude do feminino só é encontrada no amor? Ou estaria errada a canção de João Bosco, “Quem pode querer ser feliz se não for por um grande amor?”? Continuei meu discurso sem me importar com as caretas que Max me fazia.
— Você acredita que os sintomas do início da gestação seriam basicamente ocasionados pelas alterações bioquímicas características do período gravídico, certo? Quanto à sua comparação entre náusea gravídica e a intoxicação etílica, lembre-se de que uma bebedeira faz parte de uma intoxicação. Não é fisiológica, nem está programada pelo organismo. A náusea gravídica, por seu turno, está inserida em um projeto fisiológico — a gestação — e está dentro da normalidade orgânica. Não é intoxicante, nem requer doses altas e não naturais de substâncias exógenas. De cada dez indivíduos que tomam meio litro de vodka dez ficam bêbados, o mesmo não ocorrendo com os sintomas da gravidez.
Maximilian, que estava acompanhando algumas ancas com o rabo do olho, sorriu com o canto da boca quando citei esse exemplo: “Meia garrafa só, companheiro?” Sem me deixar atrapalhar pela gozação de Max, continuei com minha explanação.
— Quanto às grávidas, apenas uma parcela variável sente efeitos nauseantes, o que reforça a subjetividade e a característica de suscetibilidade específica do transtorno. Não é o hormônio que solitariamente produz o quadro, ao contrário do álcool da bebedeira. É a pessoa que é, ou está, suscetível. Acrescentem-se a isso as pressões culturais que fazem com que sintomas apareçam em decorrência das latitudes e de padrões específicos de comportamento social. A sintomatologia pós-menopausa é um excelente exemplo, por ser tão comum em países industrializados e praticamente ausente em algumas populações da América Central, mesmo com igualdade na atividade hormonal. Existe mais do que patologia no sintoma; existe simbolismo. O sintoma é uma forma alterada do organismo de buscar equilíbrio. Ele é uma maneira de mudar o padrão energético para alcançar a harmonia perdida pelo choque entre a suscetibilidade e um agente externo. Em homeopatia, chamamos de diátese. Por isso, o conflito emocional, que é o caso frequente em uma gravidez, pode gerar alterações de tal monta que o organismo tende a se adaptar à necessidade de homeostase através da modificação física. Além disso, acho que a escolha do sintoma específico utilizado pelo sujeito tem um aspecto metafórico. Daí a necessidade de “botar para fora”.
Nadine me interrompe com um gesto. Parecia ter esperado um determinado momento para falar algo que a estava incomodando. Seu movimento foi brusco, cortando com um só golpe minha frase que se iniciava.
— Tudo bem, Ric. Posso até concordar com algumas das suas ideias, mas você também disse que nem toda grávida desenvolve essa sintomatologia, apesar de sofrer as mesmas alterações hormonais. Com isso eu concordo, mas, se eu entendi, você deixou claro que pode existir uma relação inversa, que me daria a entender que, se uma grávida não vomita, é porque não tem nada a “colocar para fora”. Dessa forma, poderíamos construir um modelo simplista e reducionista, no qual a emergência de uma sintomatologia criaria uma linha reta com a presença de distúrbios psicológicos. Isso me parece um exagero.
Aprumei-me na cadeira. Sempre respeitei as opiniões de Nadine, mesmo quando não concordava com elas. Sua postura, além de ponderada e honesta, é de uma dignidade imbatível. Ela funcionava como um freio às minhas ilações demasiado etéreas e filosóficas, trazendo-me para o mundo real e cru, mas o fazia com a candura que só uma verdadeira amiga é capaz de oferecer. Sendo tão doce e maternal, porque ainda estaria sozinha? Essa resposta nem Max possuía. Continuei minha explicação.
— Concluiu mal, minha flor. Eu não disse que ela não tinha nada para botar fora, nem pensei isso. É possível inclusive que elas não consigam botar para fora, o que é muito ruim. Ou é possível que elas não precisem desse sintoma, por exemplo, se puderem falar das suas angústias com a vizinha, com o queixo apoiado no muro. Ou pode ser que ela tenha urticária, que também é uma forma de “botar para fora”, através da pele. Ou pode ser que elas chorem no meio da noite ou tenham enxaquecas. Ou pode ser que gritem, mordam ou façam terapia, etc. Vomitar é apenas uma das maneiras de reagir, na miríade de alternativas que a vida nos apresenta, e é apenas uma das mais facilmente utilizadas pelas grávidas, em função do estado hormonal alterado.
Maximilian ergue a taça e brinda.
— Bebo — diz ele — mas faço isso por amor à humanidade. Poderia estar sóbrio e atrapalhar a conversa de vocês, o que seria uma lástima.
Momentaneamente perdoo seus exageros etílicos. Lembrei-o de uma frase sua, quando juntos estávamos na residência: “O sintoma, muitas vezes, é o espelho do desejo embotado”, me disse, enquanto tomávamos cerveja preta em uma viela escura e soturna próxima ao hospital universitário.
— Além disso — retomou Nadine — o mal-estar provocado pela náusea não determina reflexões positivas, apenas desconforto. Que benefício psicológico poderia surgir disso? Que acréscimo de valor eu poderia trazer à minha vida por ter vomitado até virar o estômago do avesso?
Seu rosto se contorceu. Nadine sempre sofrera de transtornos pré-menstruais intensos, que incluíam cólicas uterinas, náuseas e vômitos insuportáveis. Nesse aspecto, ela carregava uma vantagem irretorquível. Sua careta era uma memória mímica de momentos de mal-estar.
— Nadine — disse eu — concordo com você, porém acredito que o sintoma produz, sim, uma possibilidade de reflexão e reavaliação. Pouca coisa na vida produz mais resultados no sentido criativo do que o mal-estar, a dor, a perda e o sofrimento. Nossa angústia surgiu quando diabolicamente nos separamos da unidade primitiva, e iniciamos nossa jornada em busca da recuperação do idílio perdido. Isso se deu através de uma dor, que criou o mundo como o conhecemos. Essa angústia de separação é a mãe de toda a ciência e todo o conhecimento. E de todo o horror.
Uma risada e um franzir de sobrancelhas de Maximilian. Ele repete mais uma de suas indefectíveis frases de efeito: “O gozo se goza, mas o sofrimento é que constrói”. O garçom se aproxima, e eu faço um gesto negativo com o indicador, dando a entender que Max já havia ultrapassado sua cota.
— Sigmund Freud — continuei eu — escreveu um texto chamado “O Mal-Estar na Civilização”, em que analisa a força repressiva do projeto civilizatório e as suas repercussões no proceder social. Ali ele tece sua análise da construção de uma cultura baseada na repressão e o que significa essa obliteração do desejo para cada um de nós. Uma de nossas ferramentas para lidar com a energia acumulada pela negação à livre manifestação do Id é o sintoma, que nos auxilia a desafogar essa pressão interna.
— O mal-estar é o gérmen da criatividade — disse Max, depois de sorver o último gole de cerveja.
Estaria “alto”, ou apenas fingindo uma bebedeira, para assim fugir à responsabilidade dos seus atos? A primeira opção me pareceu mais verdadeira, principalmente depois que ele se ergueu da cadeira do bar, caminhou alguns passos, olhou para trás apontando o indicador para os céus e finalmente disse:
— Ric, você não terá feito nada de importante na vida enquanto não tiver o direito de se comportar como um menino de nove anos.
— Posso contar uma história? — perguntei para Nadine, que ainda sorria da criancice de Max. — Talvez ela possa explicar o que quero dizer.
Nadine balançou a cabeça afirmativamente. Cruzei as pernas e repousei as mãos entrelaçadas sobre os joelhos.
* * *
Groddeck, psicanalista contemporâneo de Freud, dizia que toda a sintomatologia carrega consigo uma simbologia recôndita. Algo “escrito por detrás do véu que encobre o que é meramente manifesto”, como nos diz Maximilian. Aquilo que liga o sintoma ao seu sentido último, que quase sempre é invisível ao olho desavisado.
Pois uma vez eu estava de plantão na maternidade e me pediram para atender uma paciente que estava na internação obstétrica do hospital onde eu trabalhava. Era uma paciente com 20 semanas de gravidez e que aparentava ser muito jovem. Estava com vômitos incoercíveis. Sempre tive uma dúvida e uma questão pessoal com esse sintoma. Como eu já disse, Nadine, a gente aprende na faculdade que elas vomitam porque estão cheias de hormônios ditos “eméticos”, tipo estrogênio, progesterona, HPL, etc. Mas isso não me parecia suficiente. “Por que umas têm e outras não, já que todas estão cheias de hormônio?”, perguntava eu, o aluno chato. Diziam-me que cada uma tem a sua sensibilidade e etc. Isso eu já sabia. Mas será que o vômito não era um sintoma de algo mais profundo, emocional, psicológico? Lembrei-me de uma amiga minha que odiava o marido, e algum tempo antes de se separar este lhe implorou que fizessem amor. Ela aquiesceu por medo da reação do marido, mas tamanha era a repulsa que sentia por ele que logo após terminar o ato, ela… vomitou. Imaginei que o vômito dessa grávida poderia conter o mesmo tipo de mensagem. Quem sabe? Mas deixem que eu lhes conte a história…
Entrei no pequeno quarto do hospital militar. Era uma manhã fria na cidade. Lá estava ela, envolta num cobertor. Emagrecida, com olheiras e com o indefectível soro fisiológico, que era a sua ligação simbólica com o hospital, com o sistema, como bem pontuou Robbie Davis-Floyd em Birth as na American Rite of Passage. Olhou-me sem pressa. Seu olhar era de medo, de cansaço. Seu nome era, digamos, Beatriz.
— Oi — disse eu. — Sou o médico que vai atendê-la.
— Oi, doutor — respondeu ela.
Sua voz era sussurrada. Parecia fraquinha, débil. Não comia quase nada, e o pouco que conseguia era devolvido. Havia emagrecido muito desde o início da gravidez. Pedi licença e levantei o cobertor. Lá estava a barriguinha, saltando para fora do abdome encovado. “Engoliu um caroço de abacate”, diria a minha avó. Que será que faz essa mulher vomitar? Por que ela rejeita comida?
— Por que isso, Beatriz? Por que você está vomitando? — indaguei de supetão.
Às vezes entro “de sola”, para produzir um reboliço. Fazer uma pergunta dessas é um risco, porque a paciente pode não entender, pode achar que eu a estou culpando de algo. Tentei contornar isso com um olhar benevolente. Talvez eu pudesse mobilizá-la o suficiente para entender o que estava ocorrendo, e melhor, fazê-la entender. Poderia ser, imaginei eu, que, se ela pudesse entender onde estava encravado esse sintoma, o que ele representava e que lugar ocupava, não precisasse mais dele.
— Como assim, doutor? “Por quê?” Se eu soubesse não estaria aqui.
Sua postura foi, como previa, de defesa. Ok, plano dois: fazê-la entender que o que ela tem é mais do que aparece.
— Bem, eu acho que você sabe. Você está vomitando muito. Não está se nutrindo adequadamente. Ficamos preocupados e a internamos.
A mim parecia existir alguma coisa que a estava atrapalhando e ela tentava colocar para fora. Fazia o melhor que podia: vomitava sem parar. Mas será que essa seria a única saída?
— Doutor… Não consigo parar de vomitar. Não é culpa minha. Gostaria de parar, mas não consigo. Nada para lá dentro. Até água.
— Mas… o que você quer dizer com isso? — indaguei, depois de um silêncio proposital.
Ela ficou em silêncio. Parecia não entender o que eu queria.
Ok… sequência do plano dois. O que vem a seguir mesmo? Ah, lembrei. Resolvi fazer-lhe perguntas banais. Nome, idade, endereço, estado civil. Profissão, telefone, blá, blá, blá. Perguntei então da história obstétrica. Início menstrual, início das relações sexuais. Anticoncepcionais prévios à gestação.
— Este é o primeiro filho?
— Sim — aquiesceu ela.
— Primeira gravidez? — emendei.
Silêncio. Uns instantes mais me olhando. Parecia querer saber o que estava colado na minha retina. Olhou no fundo do meu olho procurando algo. Uma confiança? Um gancho para pendurar um segredo?
— Sim — respondeu em um quase sussurro. Seu olhar para baixo mostrava que eu estava próximo de um ponto importante.
— Primeira gravidez? — repeti. — Você teve algum aborto anterior a esta gestação?
Seus olhos marejaram. Tremeram-lhe os lábios. A boca lentamente se contorceu e as lágrimas correram pela face emagrecida. Uma dor surda a tomava. As mãos uniram-se ao peito. Mostravam que ali residia encravada uma mácula, um machucado, uma ferida espinhosa.
— Quer falar sobre isso, Beatriz?
Ela continuava chorando baixinho. Aprendi com Robbie que a maior ajuda que podemos dar a quem sofre é permitir que ela conte a sua história, sem interromper ou julgar. Essa história muitas vezes inicia-se com a transposição da pessoa para um momento no passado de muita dor, e essa dor vem à tona através das lágrimas, tristeza e melancolia. Não se deve interromper; tem que fluir. Chorou mais um pouquinho, e depois de se acalmar falou o que ocorria.
— Não é a minha primeira gravidez, doutor. Ninguém sabe disso. Eu fiz um aborto no passado. Tinha um namorado e era muito jovem. Não podia ter essa criança. Eu me culpo muito por isso, meu marido não sabe de nada. Ele é um homem religioso, jamais entenderia. Ele acha isso um crime. Desculpe…
Mais lágrimas. Dava pra se ver o que ela guardava dentro de si, e que doía tanto. Ela tentava se livrar da dor, da vergonha. Queria jogar longe um passado que a maltratava.
— Ok, minha flor. Posso claramente entender a sua dor. Mas tente entender as alternativas que você mesma cria para se harmonizar. Você pode continuar vomitando, e eu posso continuar dando soro e antieméticos. Mas não seria mais interessante tirar esse peso do seu peito? Não seria possível tirar essa mágoa, esse espinho que você carrega?
— Mas como tirar isso, doutor?
— Talvez se você contar a ele, não precise mais vomitar. Não sei se você consegue, pois posso imaginar como isso é difícil e dolorido. Mas me sentiria um péssimo médico se não lhe oferecesse essa alternativa. Você saberá o que fazer.
Ela baixou os olhos e ficou em silêncio. Não insisti. Sabia o peso daquela decisão. Saí do quarto e prescrevi a drogalhada de rotina. Antes lhe dei algumas orientações gerais, bati um papinho e terminei com um sorriso.
Muitas vezes, a função de um médico é apenas permitir que nosso olhar seja um regato no qual possam desaguar dores profundamente escondidas. Somos, em muitas ocasiões, aqueles que podem diminuir a pressão que um segredo, uma mágoa ou uma saudade produzem no peito de quem sofre. Talvez essa seja mesmo a essência da arte médica, mas que acabou perdida nos labirintos lucrativos da tecnocracia. Poucas vezes, escutei durante a minha formação médica a respeito das possibilidades terapêuticas incríveis produzidas pelo silêncio respeitoso. Apenas Max me falou sobre isso, mas quando eu já estava fora dos bancos universitários.
Lembrei-me de uma cena acontecida em um hospital da cidade alguns meses antes. Uma enfermeira que trabalhava no centro obstétrico de um hospital privado me disse que estava vomitando sem parar desde o início da gravidez. Estava igualmente sem saber o que fazer. Essa enfermeira era extremamente suave e carinhosa, mas o hospital em que trabalhava era um dos piores exemplos de tecnocracia, frieza e insensibilidade no trato com as gestantes. Ela me comentava isso com frequência, e sei o quanto isso a fazia sofrer. Diante das suas queixas, resolvi lhe perguntar:
— Lu, o que você está vomitando?
— Vomito qualquer coisa que coma — respondeu ela.
Olhei para ela com um olhar firme e decidido e repeti:
— Lu, o que você está realmente vomitando?
Ela paralisou seus belos olhos verdes no meu rosto e ficou em silêncio. Voltou seus olhos para baixo, e lançou-me um tímido sorriso. Deu meia volta e foi terminar suas atividades. Alguns meses depois, soube que ela havia tido seu filho de parto normal, e depois abandonou o hospital para se dedicar ao ensino de novas enfermeiras. Beatriz também possuía uma dor que a fazia vomitar, tentando com isso expulsar o que tanto a angustiava.
Na maioria das vezes, nos deixamos seduzir pelo brilho falso das modificações fugazes que as intervenções drogais ou autoritárias costumam produzir nos doentes. Entretanto, algumas raras vezes, o médico pode se tornar o catalisador de transformações profundas e curativas se souber — e puder — tangenciar o núcleo afetivo que desequilibra a saúde de um paciente. Esse momento é sempre um grande acontecimento, porque muitas vezes o médico quer escutar, mas o paciente não está preparado para falar. Outras vezes, que eu penso serem a imensa maioria, os pacientes entregam ao médico uma “pérola”, em forma de sintomas ou histórias, mas este está despreparado para a escuta esclarecedora. A psicanálise nos afirma que “o que o paciente traz como sintoma é, em verdade, seu maior tesouro”, e esse adágio podemos comprovar na prática, nos relatos diários das infinitas histórias contadas. Quantas vezes a chave que desvenda o grande mistério de uma dor não estava ali, o tempo todo, escondida nas fissuras de um discurso dissimulador, mas pedindo para ser revelada?
No outro dia, voltei pela manhã ao hospital. Fui fazer a ronda dos pacientes internados. Peguei a pasta de Beatriz e vi as letrinhas rabiscadas “C-A-J”. Cada uma delas com um risquinho vermelho. CAJ… Café, Almoço e Janta… Rabiscados! Então ela comeu!
Entrei no quarto de Beatriz e a encontrei vestida, sentada na cama. Estava com outro olhar. Sorriu timidamente quando entrei. Ao seu lado, o marido. Tinha um olhar duro, sóbrio, mas benevolente. Cumprimentou-me com um sorriso seco. A malinha pequena e simples estava ao lado da cama. Beatriz estava com um discreto batom vermelho, os cabelos molhados e um brilho no olhar. Olhou-me com um sorriso tímido, e disse:
— Acho que não preciso mais ficar no hospital, doutor.
Seu sorriso denunciava. Não precisei perguntar nada, apenas sorri para ela em cumplicidade velada. Nossos olhares se cruzaram mais uma vez e selaram aquele segredo.
— Podem me tirar esse soro? — disse ela, ainda sorrindo
— Claro, claro, Beatriz.
Saí da sala feliz, radiante. Ela disse! Ela teve coragem! Que mulher! A vida de um obstetra também tem esses dias legais.
